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domingo, 30 de janeiro de 2011

Viver - Clarice Lispector

"Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam mais fazer sentido (...). Satisfaço-me em ser.
Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma (...).
Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam (...).
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.
Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a esse fruto toda a sua polpa. O tempo não existe.
O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe mutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então - para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa - eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia da imobilidade eterna.
Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje (...). Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão da abelha do dia florescendo de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia".
(In: Um sopro de vida)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Do que não tem nome


"Acaricia-me com esta nobre ternura que só em ti encontrei". 
Um homem caminha.
Não sei o que veste, nem o que lhe vai na cabeça.
Sei da cadência de seus passos - que o deixa ofegante - capaz de conduzí-lo ao infinito...
Estará o suor a atravessar o seu corpo, ou o vento a brincar com seus cabelos?
Do oceano de seus olhos, das cerejas de seus lábios, e da alva seda que reveste a sua alma, disso sei.
O homem esbarra em alguém ao acaso; polidamente pede desculpas. A rua que pretende seguir quase lhe escapa, mas em tempo ele ergue o olhar, e se localiza.
O que pretende fazer, onde quer chegar?
Fosse nos primórdios da História, estaria ele a caçar um gigante com seus instrumentos de pedra talhada.
Hoje ele luta com a monstruosa rotina, e munido de seu ouro, prêmio muito aquém de suas vitórias, vai ao supermercado.
Tanta angústia, melancolia, loucura...lidou com os controversos desejos do sujeito faltante, enfrentou até mesmo a ira dos deuses com suas impiedosas tempestades...

Há de se pensar que do supermercado o homem trará algo para celebrar o seu dia de descanso, entretanto, trata-se de um ingrediente caro, parte de um prato elaborado, do qual não tomará parte.
"- Então vais comer isso? Que chique!
- Não, eu não como. É para minha família. Na hora, como outra coisa.
- E o que faço para te alimentar?"
Angustia-me pensar na possibilidade do prazer desempenhando papel coadjuvante em tua vida...
Que faço para te alimentar, meu nobre cavaleiro errante?
Se pudesse roubar o Céu, e estendê-lo sobre a Terra para que pousasses teus pés, eu o faria. 
Que faço para alimentar tua alma, tal como alimentas a minha com teu sorriso?
Em meu coração, o desejo da tua felicidade reinará para sempre soberano.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O sujeito interpassivo - Slavoj Zizek

É lugar-comum enfatizar como, com os novos meios eletrônicos, o consumo passivo de um texto ou obra de arte está ultrapassado: não mais apenas contemplo a tela, interajo com ela cada vez mais, entrando numa relação dialógica com ela (escolhendo os programas, participando de debates numa comunidade virtual, ou mesmo determinando diretamente o desfecho da trama nas chamadas "narrativas interativas").
(...) O outro lado dessa interatividade é a interpassividade. A contraparte da interação com o objeto (em vez do acompanhamento passivo do espetáculo) é a situação em que o próprio objeto tira de mim minha passividade, priva-me dela, de tal modo que é o objeto que aprecia o espetáculo em vez de mim, poupando-me da obrigação de me divertir. (...) Parece que, hoje, até a pornografia funciona cada vez mais de um modo interpassivo: filmes pornográficos não são mais fundamentalmente o meio para excitar o usuário para sua atividade masturbatória solitária - contemplar a tela em que a "ação ocorre" é suficiente, basta-me observar como os outros gozam em meu lugar. (...)
A interpassividade é o oposto da noção de Hegel de List der Vernunft (astúcia da Razão), em que sou ativo através do Outro: posso permanecer passivo, sentado confortavelmente em segundo plano, enquanto o Outro age por mim. Em vez de bater no metal com um martelo, a máquina pode fazer isso por mim; em vez de girar eu mesmo a roda do moinho, a água pode fazer isso: atinjo meu objetivo interpondo entre mim e o objeto sobre o qual trabalho um outro objeto natural. O mesmo pode acontecer no nível interpessoal: em vez de atacar diretamente o meu inimigo, instigo uma luta entre ele e outra pessoa, de modo a poder observar confortavelmente os dois se destruindo.

No caso da interpassividade, ao contrário, sou passivo através do Outro. Concedo ao Outro o aspecto passivo (gozar) de minha experiência, enquanto posso continuar ativamente empenhado (...posso tomar providências financeiras relativas à fortuna do falecido enquanto as carpideiras pranteiam por mim). Isso nos leva à noção de falsa atividade : as pessoas não agem somente para mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que alguma coisa aconteça, de modo que nada venha a mudar.
(...) Mesmo em grande parte da política progressista de hoje, o perigo não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ser ativo e participar. As pessoas intervêm o tempo todo, tentando "fazer alguma coisa", acadêmicos participam de debates sem sentido; a coisa realmente difícil é dar um passo atrás e retirar-se daquilo. Os que estão no poder muitas vezes preferem até uma participação crítica em vez do silêncio - só para nos envolver num diálogo, para se assegurar de que nossa passividade ameaçadora seja rompida. Contra esse modo interpassivo, em que somos ativos o tempo todo para assegurar que nada mudará realmente, o primeiro passo verdadeiramente decisivo é retirar-se para a passividade e recusar-se a participar. Esse primeiro passo limpa o terreno para uma atividade verdadeira, para um ato que mudará efetivamente as coordenadas da cena.

(...)Quando eu acredito através de outrem, ou tenho minhas crenças externalizadas no ritual que sigo mecanicamente, quando rio por meio de risada enlatada, ou faço o trabalho de luto através de carpideiras, estou realizando uma tarefa que diz respeito a meus sentimentos e crenças íntimos sem realmente mobilizar esses estados íntimos. (...) Ainda sim, seria errado qualificar meu ato de hipócrita, já que de outra maneira eu sinto isso: (...) eu rio "sinceramente" através da risada enlatada (a prova é o fato de que me sinto efetivamente aliviado).
O que isso significa é que as emoções que enceno através da máscara (a falsa persona) que adoto podem, de uma forma estranha, ser mais autênticas e verdadeiras do que admito sentir em meu foro íntimo. Quando construo uma falsa imagem de mim que me representa numa comunidade virtual de que participo (em jogos sexuais, por exemplo, um homem tímido muitas vezes adota na tela a persona de uma mulher promíscua e atraente), as emoções que sinto e finjo como parte de meu personagem não são simplesmente falsas: embora (o que considero como) meu verdadeiro eu não as sinta, elas são contudo verdadeiras em certo sentido. Suponhamos que, no fundo, eu seja um pervertidosádico que sonha em surrar outros homens e estuprar mulheres; como em minha interação com outras pessoas na vida real não me é permitido expressar esse verdadeiro eu, adoto uma persona mais humilde e polida. Neste caso, não se segue que meu verdadeiro eu está muito mais próximo do que adoto como um personagem fictício na tela e o eu de minhas interações na vida real é uma máscara? Paradoxalmente, é o próprio fato de eu estar ciente de que, no ciberespaço, eu me movo dentro de uma ficção que me permite expresar ali o meu verdadeiro eu - é isso, entre outras coisas, que Lacan tem em mente quando afirma que a "verdade tem a estrutura de ficção".
(...) O hiato entre minha identida psicológica direta e minha identidade simbólica ( a máscara ou título simbólico que uso, definindo o que sou para e dentro do grande Outro) é o que Lacan chama de "castração simbólica", (...) a castração que ocorre pelo próprio fato de eu ser apanhado na ordem simbólica, assumindo uma máscara ou título simbólico. A castração é o hiato entre o que sou imediatamente e o título simbólico que me confere certo status e autoridade. (...) a identidade simbólica conferida a nós é o resultado do modo como a ideologia dominante nos "interpela" - como ciddãos, democratas, cristãos. A histeria emerge quando um sujeito começa a questionar ou sentir desconforto em sua identidade simbólica: "Você me diz que sou amado - o que há em mim que me torna seu amado? O que vê em mim que o leva a me desejar desse modo?".
A realidade virtual simplesmente generaliza esse procedimentode oferecer um produto despojado de sua substância: fornece a própria realidade despojada de sua substância, do núcleo duro resistente do real - do mesmo modo como um café descafeinado tem cheiro e gosto de café real sem ser a coisa verdadeira, a realidade virtual é experimentada como realidade sem o ser. Tudo é permitido, você pode desfrutar tudo - com a condição de que tudo seja privado da substância que o torna perigoso.
(...) "Precisamente quando pareço expresar meu desejo mais íntimo e autêntico, o que eu quero já me foi imposto pela ordem patriarcal que me diz o que desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação é que eu rompa o cículo vicioso de meu desejo alienado e aprenda a formular meu desejo de maneira autônoma".
(...) Aceitar plenamente essa incoerência de nosso desejo, aceitar plenamente que é o desejo que sabota, ele mesmo, sua própria libertação é a lição amarga de Lacan (...) não há garantia para nosso desejo no grande Outro.
(In: Como ler Lacan. Slavoj Zizek. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.33-52).

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Lacan & o retorno a Freud - Slavoj Zizek

Lacan iniciou o seu "retorno a Freud" com a leitura linguística de todo o edifício psicanalítico, sintetizada no que é talvez sua fórmula isolada mais conhecida: "o inconsciente está estruturado como uma linguagem". A percepção predominante do inconsciente é a de que ele é o domínio das pulsões irracionais, algo oposto ao eu consciente e racional. Para Lacan, essa noção do inconsciente pertence à Lebensphilosophie (filosofia de vida) romântica e que nada tem a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tamanho escândalo não por afirmar que o eu racional está subordinado ao domínio muito mais vasto dos instintos irracionais cegos, mas porque demonstrou como o próprio inconsciente obedece à sua própria gramática e lógica: o inconsciente fala e pensa. O inconsciente não é terreno esclusivo das pulsões violentas que devem ser domadas pelo eu, mas o lugar onde uma verdade traumática fala abertamente. Aí reside a versão de Lacan do moto de Freud Wo es war, soll ich werden (Onde isso estava, devo eu advir): não "O eu deveria continuar o isso", o lugar das pulsões inconscientes, mas "Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade". O que mes espera "ali" não é uma Verdade profunda com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportável com a qual devo aprender a viver.
Como, então, as idéias de Lacan diferem das escolas psicanalíticas convencionais de pensamento e do próprio Freud? Com relação a outras escolas, a primeira coisa que chama a atenção é o teor filosófico da teoria de Lacan. Para ele, fundamentalmente, a psicanálise não é uma teoria e técnica de tratamento de distúrbios psíquicos, mas uma teoria e prática que põe os indivíduos diante da dimensão mais radical da existência humana. Ela não mostra a um indivíduo como ele pode se acomodar às exigências da realidade social; em vez disso, explica de que modo, antes de mais nada, algo como "realidade" se constitui. Ela não capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Na visão de Lacan, formações patológicas como neuroses, psicoses e perversões têm a dignidade de atitudes filosóficas fundamentais em face da realidade. Quando sofre de uma neurose obsessiva, essa "doença" colore toda a minha relação com a realidade e define a estrutura global da minha personalidade. A principal crítica de Lacan a outras abordagens psicanalíticas diz respeito à sua orientação clínica: para Lacan, o objetivo do tratamento psicanalítico não é o bem-estar, a vida social bem-sucedidada ou a realização pessoal do paciente, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas e os impasses essenciais de seu desejo.
Com relação a Freud, a primeira coisa que chama a atenção é que a chave usada por Lacan em seu "retorno à Freud" vem de fora do campo da psicanálise: para descerrar os tesouros secretos de Freud, Lacan arregimentou uma tribo variada de teorias, da linguística de Ferdinand de Saussure à teoria matemática dos conjuntos e às filosofias de Platão, Kant, Hegel e Heidegger, passando pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Disto decorre que a maior parte dos conceitos essenciais de Lacan não tem um equivalente na própria teoria freudiana: Freud nunca menciona a tríade do imaginário, simbólico e real, nunca fala sobre "o grande Outro" como a ordem simbólica, fala de "eu", não de "sujeito". Lacan usa esses termos importados de outras disciplinas como instrumentos para fazer distinções que já estão implicitamente presentes em Freud, mesmo que ele não tivesse conhecimento delas. Por exemplo, se a psicanálise é a cura pela fala, se trata distúrbios patológicos somente com palavras, tem de se basear numa certa noção da fala. A tese de Lacan é que Freud não estava ciente da noção de fala implicada por sua própria teoria e prática, e que só podemos desenvolver essa noção se nos referirmos à linguistica saussuriana, à teoria dos atos da fala e à dialética hegeliana do reconhecimento.
O "retorno a Freud" de Lacan forneceu um novo alicerce teórico para a psicanálise, com imensas consequências também para o tratamento analítico. Controvérsia, crise e até escândalo acompanharam Lacan ao longo de toda a sua carreira. Ele não só foi obrigado a se desvincular da Associação Internacional de Psicanálise em 1963, como suas idéias provocativas incomodaram muitos pensadores progressistas, de marxistas críticos a feministas. Embora seja usualmente percebido na academia ocidental como um tipo de pós-modernista ou desconstrucionalista, Lacan escapa dos limites indicados por esses rótulos. Ao longo de toda a sua vida ele foi superando rótulos associados ao seu nome: fenomenologista, hegeliano, heideggeriano, estruturalista, pós-estruturalista; não admira, uma vez que o traço mais importante de seu ensinamento é a auto-crítica permanente.
Lacan era um leitor e intérprete voraz; para ele, a própria psicanálise é um método de leitura de textos, orais (a fala do paciente) ou escritos. Não há maneira melhor de ler Lacan, então, que praticar seu modo de leitura e ler os textos de outros com Lacan.
(...) Em suas Notas para uma definição de cultura,T.S. Eliot observa que há momentos em que a única escolha se dá entre sectarismo e descrença, momentos críticos em que a única maneira de manter uma religião viva é levar a cabo uma dissidência sectária de seu corpo principal. Por meio dessa dissidência sectária, dissociando-se do cadáver em deterioração da Associação Internacional de Psicanálise, Lacan manteve o ensinamento freudiano vivo. Cinquenta anos depois, compete a nós fazer o mesmo com Lacan (Zizek, 2010, p.9-13).

domingo, 23 de janeiro de 2011

Tua voz - Cassimiro de Abreu

A tua voz vem d´alma, fresca e pura
Como um bafo de infante adormecido:
Se cantas - dás um raio de ventura,
Se choras, tudo chora ao teu gemido!

Quando me deixas, longo tempo ainda
Ouço-te a fala, música divina,
Que sai sorrindo dessa boca linda,
Harpa mimosa que só Deus afina.

A tua voz me alegra e me embriaga:
Assim a brisa, de perfumes rica,
Sussurra nos rosais, suspira e afaga...
Passa, é verdade; mas o aroma fica!

sábado, 22 de janeiro de 2011

Soneto VII - Fagundes Varela

Ah! Quando face a face te contemplo
E me queimo na luz do teu olhar
E no mar de tu´alma afogo a minha
E escuto-te a falar.

Quando bebo no teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras.

Tenho medo de ti! Sim, tenho medo
Porque pressinto as garras da loucura
E me arrefeço aos gelos do ateísmo
Soberba criatura!

Oh! Eu te adoro como adoro a noite
Por alto mar sem luz, sem claridade
Entre as refegas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

Como adoro as florestas primitivas
Que aos céus levantam perenais folhagens
Onde se embalam nos coqueiros presas
As redes dos selvagens!

Como adoro os desertos e as tormentas
O mistério do abismo e a paz dos ermos
E a poeira dos mundos que prateia
A abóbada sem termos!

Como tudo que é vasto, eterno e belo
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito!


sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Coletânia de referências de Lacan sobre linguagem e poesia

Foi Lacan quem propôs o "inconsciente estruturado como uma linguagem" no seu retorno à Freud, quando os fundamentos da Psicanálise estavam sendo desvirtuados por psicoterapias superficiais que não correspondiam ao complexo e intenso trabalho de um  processo de análise.
Lacan sabia que a verdade do sujeito era da ordem do inconsciente; este, que não pertencia  nem a um, nem ao outro, mas que se estruturava no "entre-dois" proporcionado pela linguagem; lá onde se fazia o furo, nos interstícios do discurso, mas metáforas e metonímias das formações do inconsciente, lá estaria o desejo do homem.
Para aprofundar seus estudos acerca da Psicanálise, Lacan recorreu a grandes expoentes da linguística e semiótica, tais como Saussurre e Levi-Strauss; mas também voltou o olhar para apogeu das criações humanas: as Artes.
Lacan apreciava a boa música, era colecionador de belíssimas pinturas e frequentava o teatro, mas sua predileção era pela Literatura, que por se utilizar tão habilmente das metáforas e metonímias da linguagem  antevia a postulação do inconsciente. Fiel ao que Freud afirmara, de que na matéria com a qual a Psicanálise lidava, o artista sempre a precedia, Lacan pontuou no texto Lituraterra que sem lançar mão de qualquer conhecimento pré-concebido, era pela verdade do que os textos literários veiculavam que esperava.  
Curiosamente, a paixão de Lacan por línguas e pela Literatura foi bem anterior ao seu envolvimento com as questões psicanalíticas, e mesmo à sua formação em Medicina; é no colégio que ele terá destaque nos seus estudos de latim e alemão, e que estreitará o contato com grandes escritores, entre os quais James Joyce, que era um dos seus favoritos.
O legado de Lacan é marcado por referências a clássicas histórias e poesias da Literatura; só para se ter uma idéia, um de seus primeiros seminários é articulado em torno de um conto de Allan-Poe, "A carta roubada".
Na tese de doutorado que Maritza Magalhães Garcia apresentou ao departamento de Psicologia da PUC do Rio de Janeiro em março de 2010, entitulada "Da metáfora ao literal: Jacques Lacan com Arnaldo Antunes", há um extenso anexo que demonstra as referências de Lacan à linguagem, literatura, poesia. Abaixo colocarei alguns trechos; o anexo completo, que vale a pena ser lido, está disponível no link:

"O significante é o material audivel, que nem por isso quer dizer o som".
"A palavra, desde que se instaura, se desloca na dimensão da verdade. Só que, a palavra não sabe que é ela que faz a verdade (...) é em relação a verdade que se situa tudo o que é emitido". (In: Os escritos técnicos de Freud).
*
"A análise, como alerta Lacan, "não é da ordem da inspiração poética. Cabe ao psicanalista buscar mais o sentido do que o inefável. O que quer dizer o sentido?", pergunta Lacan. "O sentido é que o ser humano não é o senhor desta linguagem primordial e primitiva. Ele está jogado aí, ele está preso em sua engrenagem"". (In: O eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise).
*
"(...) basta escutar a poesia, o que sem dúvida aconteceu com F. de Saussurre, para que nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo discurso revele alinhar-se nas diferentes pautas de uma partitura". (In: A instância da letra ou a razão desde Freud).
  *
""A metáfora não é uma injeção de sentido - como se isso fosse possível, como se os sentidos estivessem em algum lugar, fosse onde fosse, num reservatório". Se a palavra pode trazer um sentido novo, é mais na qualidade de significante que por portar uma significação". (In: As formações do inconsciente).

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Poema da amante - Adalgisa Nery

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam
Em todas as sombras que choram
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida
Em todos os caminhos do medo
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas
Desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira lágrima.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o Universo cair sobre mim
Suavemente.

Lou Andreas Salomé

"Somente aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o passar do tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser entendido como uma força vital".



quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Estâncias - Fagundes Varela

O que adoro em ti não são teus olhos
Teus lindos olhos de mistério
Por cujo brilho os homens deixaram
Da Terra inteira o mais soberbo império.
O que adoro em ti não são teus lábios
Onde perpétua juventude mora
E encerram mais perfumes que os vales
Por entre as pompas festivais d´aurora.
O que adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o mármore descorara
E ao contemplar a esplêndida harmonia
Fidias o mestre seu cinzel quebrara.
O que adoro em ti, ouve, é tu´alma
Pura como o sorrir de uma criança
Os carinhos ingênuos de teus olhos
Onde celestes gozos transparecem!...
Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me a pensar além dos mundos
Quando abaixando tuas pálpebras te calas.

Imagens: filme "Diário de uma paixão".

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Do visionismo de meu avô

Inda lembro...lá se vão vinte e um, talvez vinte e dois anos. Manhã ensolarada.
Era domingo, pois meu pai mergulhado na poltrona da sala e cercado de papéis por todos os lados, com uma calculadora no colo, refletia sobre complicadas operações de balanço da empresa onde trabalhava, que lhe pagava muito mal, razão de seu sorriso tão melancólico. Isso só vim a compreender anos mais tarde.
Minha mãe...bem, minha mãe não lembro ao certo onde estava.
Eu brincava com uma bola no quintal; chutava de um lado e depois corria, para pegá-la do outro; não me recordo o porquê de estar do lado de fora da casa, pois em geral eu me espalhava com meus lápis pelo chão da sala e coloria revistas infantis; do enorme esforço que fazia para brincar em silêncio, disso eu lembro.
Foi quando meu avô assomou no muro:
- Que fazes sozinha aí?
- Brincando, vô.
- Não parece, pois não estás com cara de feliz.
- Não?
- Quero que vá lá dentro, e avise tua mãe que vou te levar pra minha casa. Vamos passar um tempo lá.
Lembro de ter entrado e dito algo a minha mãe enquanto ela prendia o cabelo num coque (naquele tempo ela tinha cabelos); lembro da resposta ríspida, como quem não ouve ou não dá importância ao que está sendo dito.
Corri para os braços do meu avô;ele me colocou nas costas e me levou para a casa dele, a dois quarteirões dali (era o tempo em que morávamos separados).
Lá chegando, fomos riscar com giz de cera a parede da sala; eu adorava, e continuava, alheia aos protestos de minha avó, a riscar, riscar, riscar....meu avô me acompanhava.
- Deixe a menina ser livre...depois lavamos a parede, como sempre.
- Mas tu não vês que são apenas rabiscos?
- Não diga "apenas". Estamos nos comunicando.
Meu avô, que nunca havia lido Winnicott...
Minha avó, que odiava cozinhar, e cujo mal-humor era uma constante, serviu o almoço.
- Não será melhor avisar que a menina vai comer aqui? Não ficarão preocupados?
- Deixe a menina comer. Em tempo, virão atrás dela.
Enquanto comia, eu olhava intrigada para o meu avô misturando suco de laranja ao de manga. Naquela época, não havia Tangs nem Ades nem seja lá o que for de todos os sabores.
- Por que se contentar com um só, quando podemos experimentar todos? Era o que respondia meu avô a cara de nojo que fazia minha avó. Ele também costumava misturar coca-cola com suco de limão, décadas antes da multinacional comercializar tal produto. Devia ter patenteado a idéia, pois, para mim, aquilo era muito mais significativo que o escorredor de arroz do qual minha mãe falava tão maravilhada...
- Não costumam brincar contigo?
- Não, vovô. Acho que não gostam de mim.
- Bobagem. Eles são muito sérios, apenas isso. Eles tanto te amam que logo se darão conta da tua falta, e virão atrás de você. Aquilo que mais amamos é o que mais nos dá conta da falta...
Meu avô, que nunca havia lido Lacan...
Não sei como dar fim a esse texto...mas também, que mania esta do ser humano de colocar termo ao que não tem fim...talvez possa dizer, contudo, algo do muito que aprendi com meu avô: sentidos da alma, "sempre alertas"; do contrário, não se poderá chamar de vida seja lá o que for que estivermos experimentando...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O estruturalismo

O homem adormecido, de Salvador Dali

O estruturalismo foi o ponto de vista epistemológico, cujo apogeu se deu na França nos anos 60, que nortearia as atividades de pesquisa nos campos das ciências humanas e sociais (...). A atividade estruturalista parte da observação de que nada significa por si mesmo, que todo conhecimento num dado sistema é determinado por todos os outros conceitos no mesmo sistema e que só será inequívoco depois de integrado em sua estrutura particular. Além disso, toda significação resulta de uma relação: os fatos são parte de um todo e só em relação a ele podem ser apreciados (Longo, 2006, p.38).

Saussure

Saussure tinha o objetivo de construir uma linguística da língua e não da fala. Era o momento de a fala (ou discurso), cujo senhor é o indivíduo, ser questionada. Emergem as questões relativas ao sujeito que produz o discurso, tornando-se impossível separar a subjetividade do discurso. É justamente a época em que se postula o descentramento do sujeito.
Sob essa perspectiva, o estruturalismo recebe a acolhida da geração que tinha como mestres, entre outros, Marx, Sartre e Freud.
Marx
Com Marx, essa geração aprendeu a conceber o pensamento como um acontecimento que retira da realidade histórica seus motivos e sua força, ou seja, pensar é fornecer estatuto teórico à análise dos movimentos reais da existência para esclarecê-la e transformá-la.
Sartre
Com Sartre, a geração aprendeu que não há mais essência humana preexistente que unifique o curso dos acontecimentos, ou seja, não há mais subjetividade primeira que seja o lugar da verdade, uma vez que a realidade não é o objeto da consciência, mas o lugar de sua emergência e de sua transformação. O existencialismo ateu de Sartre vai justamente promover o homem a articulador de sua própria existência, visto que a essência humana não lhe é dada: ele que a construa segundo os ditames de sua consciência livre.
Freud
Com Freud, emerge a ferída narcísica: a revelação da existência do inconsciente faz cair por terra o sujeito centrado na consciência. Ao contrário, o eu está submetido à força inconsciente que determina o modo de existência da expécie humana. A questão inconsciente refere-se à Outra cena, heterogênea à consciência por sua própria estrutura. O homem se dá conta de que não é capaz de intervir ativamente em seu destino e de que está imerso em sentidosescorregadios. Em outras palavras, está destinado a se abrigar na linguagem (Longo, 2006, p.39-40).
O etnólogo belga Claude Levi-Strauss inaugura a abordagem estruturalistsa na análise antropológica a partir de sua leitura de Saussure, utilizando as categorias e dicotomias que Saussure usa para erigir sua antropologia estrutural (...). Levi-Strauss efetua o descentramento do homem branco, europeu, civilizado, descendente de gregos excepecionais, e faz isso ao desvelar pontos de identificação desse homem com povos "exóticos", com culturas "primitivas", cujos rituais muito se assemelhavam aos dos "civilizados". É o começo de um novo modo de olhar a cultura (...).
Seria também o começo de um novo olhar para a psicanálise por meio dos estudos de Jacques Lacan, em franca ascensão nos anos 60. Em uma volta à letra de Freud, dada a sua insistência sobre a importância da linguagem, Lacan pode fazer uso dos linguistas estruturalistas de sua época e de outras passadas, e afirmar categoricamente que o sujeito é dependente da linguagem. De saída, esse fato dilui a questão da "verdade", visto que a linguagem é criação humana, ficção.


Lacan

O homem, portanto, gira em torno da língua, sem centro, sem purificação de linguagem que a torne transparente à verdade, sem a promessa de redução da polissemia, sem unidade de sentido. A partir do estruturalismo, a linguagem como discurso torna-se o único testemunho objetivo da identidade de um sujeito, cuja única saída é viver no vigor de sua ambiguidade.

(In: Longo, Leila. Linguagem & Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p.38-41).


sábado, 8 de janeiro de 2011

Freud - a conquista do proibido

"Ora, essas coisas psicanalíticas são compreensíveis se forem relativamente completas e detalhadas, exatamente como a própria análise só funciona se o paciente descer das abstrações substitutivas até os mais ínfimos detalhes. Disso resulta que a discrição é incompatível com uma boa exposição sobre a psicanálise. É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio.  Sem alguma destas ações criminosas, não se pode fazer nada direito".
Mezan apud Freud à Oskar Pfister (2003, p.11).


Como diz um provérbio francês que Freud gostava de citar, para fazer uma omelete é preciso quebrar ovos (Mezan, 2003, p.18).
(...) [Freud] habitou a mesma casa por quarenta e sete anos; teve seis filhos de seu único casamento; (...) não teve casos de amor; tirou férias regularmente durante mais de cinquenta verões; e de modo geral teve uma vida nem mais nem menos sobressaltada do que a de tantos outros burgueses de sua geração (Ibidem, p.27-8).
 Freud & Martha
(...) sempre foi agnóstico, e só se casou no cerimonial religioso porque o casamento civil não era reconhecido pela lei austríaca. Aliás, sua noiva, de família estritamente ortodoxa, recebe desde o início do namoro cartas detalhadas a respeito da questão religiosa: para Freud, estava fora de cogitação curvar-se a rituais que considerava obsoletos e constrangedores. Por outro lado, a leitura precoce da Bíblia deixou nele profundas marcas: identificava-se com José (o intérprete de sonhos) e sobretudo com Moisés, a quem dedicará dois textos fundamentais (O Moisés de Michelangelo e Moisés e o Monoteísmo) (Ibidem, p.34).
(...) a seus olhos, o judaísmo - mesmo abandonado como conjunto de crenças e de práticas - favorecia o espírito científico. (...) A este aspecto soma-se a disponibilidade para se colocar na oposição, isto é, para aceitar com equanimidade sua exclusão da maioria. Independência de julgamento e tenacidade são, pois, as qualidades que Freud atribui à sua origem judaica, e que considera terem sido indispensáveis para a criação de sua disciplina (Ibidem p. 38-9).
(...) Por importante que seja o elemento judaico em sua formação, é impossível deixar de lado a educação ocidental por ele recebida, no ginásio austríaco e na Universidade de Viena.
Esta educação enfatiza dois elementos: a cultura humanística e a ciência, e ambos foram avidamente absorvidos por Freud. Seus escritos são pontilhados de citações da literatura poética, dramática e novelesca, que conhecia bem; entre os autores que admirava, figuram os clássicos gregos e latinos, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Heine, Schiller, além de numerosos escritores contemporâneos, como Stefan Zweing, Arthur Schnitzler, Thomas Mann, Henrik Ibsen, Émile Zola e outros. Na obra destes homens, encontrou não apenas um prazer estético, mas ainda inquietações universais, modelos para o seu estilo - de uma clareza e de uma precisão extraordinárias - e, como dirá muitas vezes, a descrição dos processos mais obscuros da alma humana, que, em seu entender, prefiguram muitas das descobertas da psicanálise (Ibidem, p. 48).

O paradoxo da psicanálise é que nela se acede ao universal através do cuidado extremo prestado à natureza singular de cada experiência psicanalítica. Nisto ela se diferencia das ciências da natureza e se assemelha a disciplinas como a história ou a crítica literária: assim como os processos universais da luta de classes ou da criação artística, o complexo de Édipo ou a transferência só existem incarnados em entidades individualmente específicas, nas quais se manifestam de modo sempre singular (...). O inconsciente não é nem "subjetivo" nem "objetivo" no sentido positivista, e sim uma entidade que estilhaça estas divisões estanques e contribui para que a critiquemos e as superemos (Ibidem, p.51-3).

(...) Freud se enganava ao pensar que bastaria comunicar ao paciente o sentido inconsciente de suas palavras para curá-lo de seus sintomas neuróticos; na verdade, esta comunicação tem que ser feita no momento adequado, quando o paciente pode aceitar a interpretação e elaborá-la por si mesmo. o grande problema da técnica psicanalítica é saber discernir este "momento adequado", sem o que a interpretação só aumenta as resistências (Ibidem, p.76-7).
"(...) não se pode distinguir um fato realmente ocorrido de uma ficção investida afetivamente".
Freud à Fliess
A tarefa primordial da civilização consiste em proteger os homens da violência da natureza e da violência inerente às pulsões do inconsciente, que também são, de certo modo, um "fragmento da natureza". Para tanto, ela impõe restrições ao desejo individual e o obriga a tolerar uma certa quantidade de renúncia, posto que a realização simultânea e imediata de todos os desejos conduziria à aniquilação da espécie humana. Em particular, os desejos sexuais e agressivos têm de ser submetidos a controles cuja severidade é variável segundo as civilizações, mas que envolvem uma dose indispensável de repressão, a qual pode atingir níveis alarmantes e engendrar, como no caso da civilização moderna um sofrimento desnecessário que se manifesta como neurose.
Para consolar o homem desta frustração inevitável, a civilização proporciona vias de escape para o desejo, especialmente a religião, a filosofia e a arte, cujo fundamento último é a faantasia, na qual prevalece o princípio do prazer (Ibidem, p.133-4).
E se ele [Freud] caracteriza o trabalho do artista como sendo de natureza a permitir ao destinatário da obra a fruição não culposa de suas próprias fantaisas, conduzindo assim a um levantamento relativo da repressão, tampouco é possível ignorar que o convite do psicanalista à livre-associação envolve promessas que, afinal, não deixam de ter um sentido semelhante...(Ibidem, p.143-4).
Freud & Ana
(...) olhar pelo buraco da fechadura é sempre arriscado - e indiscreto. Mas a indiscrição nem sempre é falta grave: afinal, sem se ser um pouco criminoso, um pouco malandro e um pouco ousado, "não se pode fazer nada direito" (Ibidem, p.152).
(Renato Mezan em "Freud: a conquista do proibido". São Paulo: Ateliê, 2003).

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Mito & Psicanálise - Eros

A complexidade de Eros revela-se de forma pungente quando atentamos para o fato de que ele atravessa vários períodos da produção literária grega, sendo objeto de atenção de diversos tipos de relatos míticos. Eros figura desde a poesia arcaica de Hesíodo; passando pelos poetas líricos (...) pela poesia trágica,com Sófocles; até chegar aos discursos filosóficos de Platão, onde no Simpósio, ou Banquete, o deus é por excelência o objeto do festivo debate de idéias.
Como o quarto na linhagem de deuses primordiais, é tal qual seus antecessores Caos, Terra (Ghéia) e Tártaro, Eros não é gerado por dois seres sexuados, como o serão as demais divindades, especialmente as olímpicas. Eros surge do vazio, de Caos, ou de sua própria potência geradora. Tais divindades geram a partir de si próprias, dando-se elas mesmas à luz. Dessa reflexividade resulta que do um geram-se dois, onde o um é a marca do Todo, de plenitude, de abundância, da ausência da falta e privações, marca que se afasta do universo humano, mas que, ao mesmo tempo, marca uma de suas maiores aspirações ou, em um vocabulário psicanalítico, de suas pulsões. 
Esse Eros primevo em muito difere de outro, mas tarde e mais comumente conhecido como Eros, filho de Afrodite (...). A origem desse segundo Eros dá notícia de divisões, de perdas, de relações que passam pela diferença sexual. Sua mãe, Afrodite, nasce dos testículos do pai, Uranos, atirados ao mar pelo filho Crónos (...). Filha da divisão, da castração, sua missão será atrair, aproximar, uir seres que estão igualmente marcados pela divisão, para que os dois possam gerar um, que é três.
Podemos ver, nessa dualidade de Eros, traços de algo que será muito caro a Freud em sua construção da Psicanálise: a dualidade pulsional. Dada a complexidade da teoria das pulsões, destacaremos aqui apenas alguns aspectos da relação dessa teorização que identificamos no pensamento mítico grego.O primeiro deles nos é dado pelo próprio Freud na conferência XXXII das Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933), quando diz que "a teoria das pulsões é nossa mitologia" e que as pulsões "são entidades míticas, magníficas em sua indeterminação". (...) Esse princípio energético, que ocupa a zona fronteiriça entre o somático e o psíquico (...) permanece até o final da obra de Freud sob a ótica de dois princípios basais: o das pulsões sexuais e o das pulsões de destruição. A esses dois princípios Freud vai chamar, respectivamente, de Eros e Tânatos. Remontando ao primeiro Eros, podemos encontrar as principais características que Freud atribuiu à última modalidade de dualismo pulsional. Antes de olharmos mais de perto, vejamos o segundo Eros.

Este, enquanto filho e servidor de Afrodite, partilha da função dela - a de aglutinar a multiplicidade de indivíduos; ou melhor, ele visa a unir os fragmentos dispersos, não de indivíduos (não-divididos), mas de seres divisos, castrados, como fora o pai de Afrodite. As ações do jovem Eros, portanto, pressupõem que haja falta, incompletude, para haver atração, desejo (que, em grego, chama-se também, e não gratuitamente, Eros). Temos essa idéia reiterada no Banquete, de Platão, ao situar a genealogia de Eros como filho de Penia, da Pobreza. O filósofo sublinha uma dimensão do amor que mais tarde, a psicanálise vai ecoar tanto com Freud quanto com Lacan, a dimensão narcísica, na medida em que, na relação amorosa, um busca no outro amado justamente o que lhe falta.

O primeiro Eros, por sua vez, mais do que evocar, parece encarnar uma "nostalgia por uma unidade perdida" (...). Sua autogênese é indicativa desse mo(vi)mento na medida em que nos revela traços que serão mais tarde (c.séc. VI a.C) explicitados pelo Eros órfico: ele é macho e fêmea ao mesmo tempo, com dois pares de olhos que podem olhar em todas as direções, além de muitas cabeças. Sendo Todo, tal Eros busca voltar à completude do Todo, busca a supressão de toda falta ou penúria, o retorno a um estado de satisfação plena. a esse tipo de movimento Freud caracterizou como o retorno ao estado inanimado, como supressão de qualquer nível de tensão ou como estado de Nirvana. E é justamente ele que está na visada da pulsão de morte, de Tânatos (Thánatos, morte em grego), como Freud também vai nomeá-la. (...) Eros é duplo, é aquele que engendra e desfaz, é o "tecelão de mitos", o mythóplokos, que, com sua astúcia, tece redes de sedução, de enganos; como também, em última instância, dá nome a essa outra força primordial que nos leva a buscar Nirvana.
Talvez por isso que Sófocles, em sua Antígona, o tenha descrito como "Eros invencível na batalha...Nenhum dos imortais te pode escapar, nem tampouco os mortais, e aquele que te possui é louco". Na visão trágica de Sófocles, Eros, aquele que ao mesmo tempo repousa "sobre o rosro de uma donzela", "promove a discórdia entre aqueles do mesmo sangue". Sobretudo, como imortal, Eros sobrepõe-se aos próprios imortais, é uma força que nem os não-mortais (os que negam a mortalidade) podem subjugar, aniquilar, matar. Sob a ótica trágica, podemos retomar o dualismo pulsional de Freud não mais em termos de "vida x morte", mas de vidamorte, e ressoar o Freud de Mais além do princípio do prazer. Há aí, fundamentalmente, um movimento pulsional por excelência, que busca a repetição de uma experiência primordial de satisfação. Isto é a primazia da pulsão de morte em sua complexidade dialética. Como encena a trágica figura de Antígon, e a psicanálise mais tarde reafirma, a reedição dessa satisfação total está paradoxalmente fadada ao fracasso, uma vez que seu objeto é desde sempre perdido (...).
O paradoxo, figura por excelência do inconsciente figura uma vez mais no pensamento mítico grego, que Heráclito expressou tão bem no fragmento 51: "Eles não compreendem como o que está em desacordo concorda consigo mesmo: há uma conexão de tensões opostas, como no caso do arco e da lira".
(In: Mito e Psicanálise. Ana Vicentini de Azevedo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p.27-32).

Nas figuras: Eros, deus do amor, palavra que em grego também define o desejo.
  

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Freud - Criador da Psicanálise

Neste breve relato escrito por Marco A. Coutinho Jorge & Nadiá P. Ferreira, é possível ter contato com a vida de Sigmund Freud - desde o seu nascimento até a morte no exílio -, o contexto histórico e social do surgimento e desenvolvimento da Psicanálise, além dos tópicos essenciais deste saber que marcou a trajetória da humanidade, dentre eles: "os sonhos: via régia para o inconsciente", "a peste e o sexual (onde a prática psicanalítica é distinguida da clínica médica, fala-se de fantasia inconsciente e pulsão), "a clínica da histeria" (onde Freud trata de mulheres com questões sexuais importantes, começando com a hipnose, passando pelo método catártico e culminando na prática da associação livre), e o desenvolvimento da sexualidade (conferindo-se um amplo destaque ao Complexo de Édipo, desde suas raízes mitológicas até as distinções entre meninos e meninas na vivência do complexo).
Ao final, é apresentada uma breve cronologia da vida de Freud e são indicadas leituras para o aprofundamento do tema; apesar de ser um livro de bolso com 61 páginas tratando de um tema tão amplo, não apresenta linguagem rebuscada, e os conceitos não são apresentados de forma superficial, de modo a prejudicar o entendimento da teoria. Excelente leitura para introdução ou revisão de conhecimentos.
A seguir, destaco alguns trechos:
Breve introdução
A vida de Sigmund Freud foi um evento que marcou a história da humanidade. Ele descobriu que o homem é regido por forças que escapam à consciência, algo de que o ser humano tanto se gaba para diferenciar seu gênero de todas as espécies animais e que, no entanto, é apenas a ponta de um imenso iceberg chamado inconsciente.
Assim como Copérnico demonstrou que a Terra não é o centro do universo e Darwin retirou o homem do centro da criação, Freud descentrou a razão: o inconsciente é a Outra Cena que revela que o ser humano não possui domínio de si mesmo. a existência de um pensamento inconsciente, operando continuamente, redimensiona de modo radical o cogito cartesiano: como sustentar que "penso, logo sou", se há algo que pensa em mim e, mais do que isso, trama à minha revelia? Logo, eu não penso, e sim "sou pensado"...
O inconsciente apresenta uma realidade sexual, e a sexualidade, que desde Aristóteles pertencia ao campo da bestialidade, se tornou a partir de Freud não só a pedra angular da constituição da subjetividade, mas também da cultura. Todas as criações humanas, sem exceção - os esportes, as artes, as ciências etc. -, estão ancoradas num desejo sexual indestrutível que constitui o núcleo do inconsciente (Coutinho e Ferreira, 2010, p.7-8).
O nome Freud tem a mesma raiz da palavra freude, que em alemão significa prazer, regozijo, e se origina de Freid, que é o nome da bisavó materna do pai de Freud (...). Em 6 de maio de 1856, nasceu o primogênito, aquele que iria inventar a psicanálise, recebendo o nome de Schlomo Sigismund. O  primeiro nome, Scholomo, dadoem homenagem ao avô paterno, nunca foi usado por Freud. o segundo, Sigismund, foi alterado por ele, que retirou duas letras, passando a assinar Sigmund Freud. Sem dúvida, Freud foi um filho amado pelo pai e o predileto de sua mãe, que o chamou durante toda a vida de "meu Sigi de ouro" (Jorge e Ferreira, 2010, p.13-4).
A clínica psicanalítica desde sempre - ao contrário da clínica médica, que se baseava essencialmente no olhar - retira toda a sua eficácia da escuta de uma fala, na qual a verdade aparece em seu estado nascente. o saber em jogo na experiência da análise é um saber que se caracteriza por estar intimamente associado à verdade do sujeito, não é um saber acadêmico nem doutrinário, mas um saber singular. Esta revelação exige que o analista não só esteja sempre estudando a teoria da psicanálise, mas também que a coloque em suspenso, quando está escutando o seu paciente. Freud sugere que o analista deve tomar cada novo paciente como se fosse o primeiro e escutá-lo em sua radical singularidade. O que isto significa? A singularidade remete para a reconstituição, aqui e agora, da história de um sujeito. Freud recomenda ao psicanalista uma atenção flutuante, isto é, ele não deve a priori privilegiar nada em sua escuta (Jorge e Ferreira, 2010, p.20).

Jacques Lacan, em sua releitura de Freud, sublinhou extensamente essa posição do analista e afirmou, no final da vida, que era de seus analisandos que aprendia tudo, que aprendia o que era a psicanálise (...). A atenção flutuante é o correlato, no analista, da regra fundamental da associação livre, segundo a qual o analisando é convidado a falar tudo o que lhe passa na cabeça, sem exercer o rivo da censura. Lacan interpretou a atenção flutuante como uma ignorância douta, expressão que por seu caráter paradoxal revela a dificuldade inerente à posição do analista no tratamento. Trata-se de uma ignorância que não exclui o saber na teoria, mas que destaca a posição de escuta de um Outro saber, o saber inconsciente, que tem como característica principal a ruptura com toda forma de saber consciente. Em uma análise, tanto o analista, em sua escuta, quanto o analisando, em sua fala, são surpreendidos com a revelação da verdade inerente aosaber inconsciente (Jorge e Ferreira, 2010, p.20-1).
(...) De Cromwell [Oliver Cromwell], Freud citou certa vez uma passagem que considerava como uma verdadeira bússola para a condução das análises de seus pacientes: nós nunca vamos tão longe do que quando não sabemos aonde vamos (Jorge e Ferreira, 2010, p.37).