Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador Poemas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Poemas. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

No tempo da minha memória somos pra sempre - Aline Bei

 


"Em são paulo

o Vento ganhou banho,

levou ponto,

tomou vacina.

e o veterinário disse que foi corajoso

meu ato

sorri sem jeito.


-ele ficou até com cara de menino - eu disse

passando a mão no pelo dele.

-não ficou? mas olha,

foi bom você ter falado nisso.

porque mesmo que não dê pra gente saber qual é a

idade exata dele,

dá pra saber que ele já é bem idoso.


- claro. - respondi.

entendendo que o tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.


em casa eu disse pro Vento

- Chegamos.


ele me ouviu de lado

batendo o rabo

no vaso

que espatifou no chão.


-deixa pra lá, depois eu limpo.


ele subiu no sofá,

se ajeitou como pode naquilo que, com certeza,

era a melhor cama que ele já teve, os olhos

derramando porto

mais que vinho.


- não me importo - eu disse pra ele - que seja breve o 

nosso encontro.

porque no tempo da minha

memória

somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como

uma canção.

as canções não morrem nunca porque elas moram

dentro das pessoas que gostam delas. você conhece

aquela da rua? se

essa rua

se essa rua fosse minha?

eu mandava eu mandava ladrilhar

com pedrinhas com pedrinhas de brilhante

para o meu

para o meu

Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque. que

se chama que se chama solidão.

dentro dele dentro dele mora um

Vento

que roubou

que roubou meu

coração " - (pp. 111-113).

(In. O peso do pássaro morto. Aline Bei. São Paulo: Editora Nós, 2017).

*

Comentário: Pelo grito nascemos. E na dor vivemos. Mas se tivermos sorte vamos morrendo um pouquinho por vez até chegar o dia em que para definitivamente de doer. Existem situações entretanto que abrem um buraco no eu por onde escorremos até não sobrar nada além de um autômato que espera o fim que venha formalizar a morte. Esta espera é pior que qualquer dor. "O peso do pássaro morto" faz Arte da dor....o tipo de Arte que nos ajuda a não morrer em vida. Que beleza.....


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A cinza das horas - Manuel Bandeira

 


Epígrafe

Sou bem nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

*

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

*

Turbiu, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó -

Ah, que dor!

Magoado e só,

- Só! - meu coração ardeu:

*

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

*

- Esta pouca cinza fria... (1917, p.25).


Desencanto

Eu faço versos como quem chora

De desalento...de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

*

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

*

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

*

- Eu faço versos como quem morre. (1912, p.27).


Desesperança

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo

Como dói um pesar em cada pensamento!

Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

*

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento

Que dá medo...O ar, parado, incomoda, angustia...

Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

*

Assim deverá ser a natureza um dia,

Quando a vida acabar e, astro acabado, a Terra

Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

*

O demônio sutil das nevroses enterra

A sua agulha de aço em meu crânio doído.

Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

*

Minha respiração se faz como um gemido.

Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,

Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

*

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,

Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:

E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

*

Vejo nele a feição fria de um desafeto.

Temo a monotonia e apreendo a mudança.

Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

*

- Ah, como dói viver quando falta a esperança! - (1912, p. 126).


(In. A cinza das horas. São Paulo: Global, 2013).

Obs:  "Cinza das horas" é o primeiro livro publicado de Manuel Bandeira. Abaixo a capa da primeira edição de 1917:



sexta-feira, 31 de julho de 2015

A vida bate - Ferreira Gullar

 Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
— a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida! 
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
(3/2/66)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Poemas de Wislawa Szymborska

Entre muitos
Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos
Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.
No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.
Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.
Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.
Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.
Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.
E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?
Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?
A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.
Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.
Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
*
A mulher de Lot
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
*
Uma certa gente
Uma certa gente fugindo de outra gente
em um certo país sob o sol
e algumas nuvens.
Deixam para trás um certo seu tudo
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.
Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.
É no silêncio que alguém cai de exaustão
é no alarido que alguém rouba de alguém o pão
e o filho morto de alguém é sacudido.
À sua frente uma estrada sempre errada
uma ponte, mas não a que precisam
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
No alto um avião que rodopia.
Viria a calhar certa invisibilidade
uma cinzenta rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou longo.
Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê?
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
serão quantos e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
*
Fim e Começo
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
*
A vida na hora
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Nao dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.

E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
*
 
Escrevendo um curriculo
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai,
esse por quem você se passa.

Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando o papel.

*
Sob uma estrela pequenina
Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

(In. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012).
 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A obscena senhora D - Hilda Hilst (trechos).


"...por que fecha sempre as janelas?
e por que devo abri-las?
e por que as abre de repente e assuta as gentes e grita?
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com benquenrença, aceitando o agrado dos outros?" 
*
"...Agonizava essa e eu encostava o ouvido à sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quando tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado.
Eu Hillé respondia esquece esquece, está tudo bem agora. Mentia."
*
"ás vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?
Sim
então, eu queria também, queria sim tocar teu medo, teu amor, tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?
Sim
Espera, que gritos são esses agora?
(...) Gritos como facas rombudas, soluços, me muero si, me muero, as pedras polidas, o frio, há anos que te procuro.
Eu também.
há anos que queria ter cordas, malhas de fio-ferida à minha volta, há anos que queria pertencer, ouviste?
Sim" .
 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"As coisas não existem..." - Hilda Hilst

"O que nós vemos das coisas são as coisas"
(Ferbnando Pessoa).

As coisas não existem.
O que existe é a idéia
melancólica e suave

que fazemos das coisas.

A mesa é feita de amor
e de submissão.
No entanto
Ninguém a vê
como eu a vejo.
Para os homens
é feita de madeira
e coberta de tinta.
Para mim também
mais a madeira
somente lhe protege o interior
e o interior é humano.

Os livros são criaturas
Cada página um ano de vida,
cada leitura um pouco de alegria
e esta alegria
é igual ao consolo dos homens
quando permanecem inquietos
em resposta às suas inquietudes.

As coisas não existem
A idéia, sim.

A idéia é infinita
igual ao sonho das crianças.

(In. Baladas. São Paulo: Globo, 2003, p. 91-2).

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Terceira - Anna Akhmatova

"A mim, como a um rio,
A época severa desviou-me.
A mim substituíram-me a vida. Para outro curso,
Passou a fluir perto de outro,
E eu as minhas margens não conheço,
Oh, quantos espetáculos eu perdi,
E a cortina erguia-se sem mim
E sem mim caía. Quantos amigos
Meus nenhuma vez na vida encontrei,
E quantos contornos de cidades
Aos meus olhos poderiam fazer vir lágrimas,
Mas eu conheço uma única cidade no mundo
E às cegas encontrá-la-ia no sono.
E quantos versos não escrevi,
 E o seu coro secreto vagueia em meu redor,
E, talvez ainda em qualquer altura
Me estrangulem...
Por mim são conhecidos os princípios e os fins,
E a vida depois do fim, e algo
Que não vale a pena lembrar agora.
E uma mulher qualquer o meu
Lugar único ocupou,
Leva o meu nome legítimo,
Tendo-me deixado a alcunha, da qual,
Eu fiz, julgo, tudo o que foi possível.
Eu não me deito, ah, no meu túmulo.
*
Mas por vezes o travesso vento primaveril,
Ou a combinação das palavras num livro de acaso,
Ou o sorriso de alguém puxam-me de repente
Para a vida que não se realizou.
Nesse ano teria acontecido isso e aquilo,
Nessoutro - isto: viajar, ver, pensar
E lembrar, e em novo amor
Entrar, como num epselho, com a consciência obtusa
Da traição e com, ontem não a tinha,
Uma pequena ruga...
Mas se eu olhasse de algures
Para a minha vida de agora,
Teria finalmente conhecido a inveja...
*
(2/9/1945 - Leningrado)



(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.77).

Sobre os anos 10 - Anna Akhmatova

E nenhuma infância cor-de-rosa
Nem pequeninas sardas, nem ursinhos, nem anéis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras de rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio
Ou o reflexo em expelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raízes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
"Ela chegou, ela por si própria chegou!"
Mas eu olhava com espanto
E pensava: "Perderam o juízo!"
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicômio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu - mas continuava a tortura da felicidade!"
*
(4/7/1955 - Moscovo).
(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.85).

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Eu não possuo o meu corpo - Fernando Pessoa

Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir
com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso
possuir com ela? Não compreendo o meu espírito -
como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo, nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras,
sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por
dentro.
Conhece alquém as fronteiras à sua alma, para que
possa dizer - eu sou eu?
Mas eu sei que o que sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o
mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que
somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu
compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o
inclues em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o
sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes
não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?

(In. Fernando Pessoa. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva: 2011, p.51).


Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida,
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

(In. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 50).

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Ruína - Manoel de Barros

Fauno, cavalo e pássaro - Picasso

Um monge descabelado me disse no caminho: "Eu
queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha idéia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo". E o monge se calou descabelado.
(In. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p.385-6).

Cartaz das XII Jornadas da FCCLRJ - "O amor e suas Letras".

"A maior riqueza do homem é a sua incompletude..." - Manoel de Barros


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc.etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(In. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p.374).


terça-feira, 18 de junho de 2013

"...as colinas de meu corpo..." - Manoel de Barros


Para quem guardei na minha carne
As cicatrizes das batalhas perdidas? E os sulcos
Regados pelas chuvas de abril? Para que
Guardei as colinas do meu corpo? Senão
Para ele caminhar... E as mãos de aurora
Senão para ele acariciar? E meus cabelos negros?
Ai, não sei (...).
Estou, como pétalas noturnas,
Para os astros. Minha boca silenciosa.
Ficarei inclinada levemente para ele
Como torre. Inclinada para sua violência.
Ele me fará frutificar como as árvores na chuva.
Florescer entre pedras, aves e astros. Abrir-me
Como as rosas da noite, ao luar.
Ele terá o meu corpo, minha vida, meus sonhos.
Ele terá minhas cicatrizes.
E as colinas de meu corpo. Lívida,
Lívida ele me possuirá.


(In. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 52-3).


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Entrada - Manoel de Barros

"Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastexcia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem (...). Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Artistóteles. Dou quatro exemplos: 1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada tenho profundidades"

(In. Manoel de Barros. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p.7).

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Bem no fundo - Paulo Leminski


"no fundo, no fundo
brm lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja qem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos para passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas".


(In. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 195).


domingo, 19 de maio de 2013

Pé de página


"O mundo se abriu na tarde em que, pé ante pé, subiste as escadas, me encontrando na soleira.
A vida desbotou na manhã em que, sentindo falta do habitual, refizeste tuas malas.
Curiosamente, neste mesmo dia, me advertiste que as coisas não podem se dar sempre à mesma maneira.
Paradoxos à parte, minhas lágrimas nunca tiveram o propósito de dissuadir-te.
Sei do não-lugar que ocupo em tua vida, mas ainda não aprendi a silenciar a dor que me causa a tua partida".


terça-feira, 16 de abril de 2013

Soneto de Homenagem - Antero de Quental

 
Cena do filme - As Pontes de Madison

"Se há nesta vida um Deus para os acasos,
Que pela humanidade o bem reparte
Que te dê da fortuna a melhor parte
Que venturas te dê, sem lei nem prazos.
...

Eu, de alegrias tenho os olhos rasos
de lágrimas, querida, ao vir brindar-te
Quando vejo que até para saudar-te,
As flores se debruçam sobre os vasos.

O meu brinde é sumário, curto e breve
Se o nome que se quer, quando se escreve
Move-se a pena com traços ideais.

Um anjo como tu, quando se brinda
Tem-se a missão cumprida e a festa finda
Quebra-se a taça e não se bebe mais".


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Maysa por Manuel Bandeira

Hoje completam 36 anos sem a diva (1936-1977)
*
"Um dia pensei um poema para Maysa
Maysa não é isso
Maysa não é aquilo
Como é então que Maysa me comove me sacode me buleversa me hipnotiza?
Muito simplesmente
Maysa não é isso mas Maysa tem aquilo
Maysa não é aquilo mas Maysa tem isto
Os olhos de Maysa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos
A boca de Maysa é isto isso e aquilo
Quem fala mais em Maysa a boca ou os olhos?
Os olhos e a boca de Maysa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maysa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão
A boca de Maysa escanteia e os olhos de Maysa ficam sérios
Meu Deus como os olhos de Maysa podem ser sérios e como a boca de Maysa pode ser amarga!
Boca da noite (mas de repente alvorece num sorriso infantil e nefano)”
Cacei imagens delirantes
Maysa podia não gostar
Cassei o poema.
Maysa reapareceu depois de longa ausência
Maysa emagreceu
Está melhor assim?
Nem melhor nem pior
Maysa não é um corpo
Maysa são dois olhos e uma boca
Essa é a Maysa da televisão
A Maysa que canta
A outra eu não conheço não
Não conheço de todo
Mas mando um beijo para ela"
*
Documentário Maysa em Maricá, produzido pela Tv Cultura disponível no youtube:




quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Eterna mágoa - Augusto dos Anjos

 "O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!".
 
Mais sobre Augusto dos Anjos em: