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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Antes que anoiteça - Reinaldo Arenas

 
Antes que, tal como naquele período negro da História, o divergente tenha suas palavras sufocadas por uma estratégia silenciadora do particular, estratégia desejante que haja uma massa sem qualquer saliência que seja mais fácil de afagar ou lançar pra longe. Antes que uma estratégia dolorosamente totalizante se aproprie do mais estranho em nós mesmos, daquilo que carrega o germen da subversão. Antes que esta estratégia violentamente persecutória, movida por ideais quaisquer, sejam eles religiosos, políticos ou sociais, suplante o "ir e vir" ou a conquista da eletricidade, obrigando o sujeito a se embrenhar nas matas selvagens, donde só pode contar com a condescendência da luz solar para escrever o que lhe resta, seja razão ou loucura, antes que o negro torne a visão inoperante.
"Antes que anoiteça", leia a autobiografia de Reinaldo Arenas, que não bastando se sentir exilado de si mesmo, teve que se exilar de sua ilha natal por conta de uma sexualidade chamada de estrangeira pelo outro.
Se você não é socialista....leia. Se é, leia mais ainda. E antes de aceitar a advertência de qualquer um que lhe diga: "Não leia este traidor!" reflita se não é uma traição não estar sensível a angústia de um sujeito por conta da sua escuta estar atravessada por ideologias, traição que não é maior para com o outro do que é para você. Não perca de vista aquele famoso trecho que virou adágio da carta de Rimbaud.
 
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Trechos de "Antes que anoiteça", de Reinaldo Arenas:
 
"Acredito que o esplendor da minha infância tenha sido único, pois se desenvolveu na mais absoluta miséria, mas também na mais absoluta liberdade; em campo aberto, cercado de árvores, bichos, aparições e pessoas que eram indiferentes em relação a mim. Minha existência não era sequer justificada, e ninguém se importava. Isso facilitava enormemente minhas fugas, sem que ninguém se preocupasse com o local do meu esconderijo ou com a hora da minha volta" (p.22).
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"Acho que a época mais fértil da minha criação foi a infância; foi um mundo de criatividade. Para preencher aquela solidão tão profunda que eu experimentava em meio a tanto ruído, povoei todo o campo, aliás bastante raquítico, com personagens e aparições quase míticas e sobrenaturais. Uma das personagens que eu via com enorme clareza todas as noites era um velho que rolava um aro, debaixo a imensa mata que crescia em frente à casa. Quem era aquele velho? Por que ficava rolando aquele aro que parecia uma roda de bicicleta? Era o horror que me aguardava? O horror que aguardava toda a vida humana? Era a morte? A morte sempre esteve muito próxima de mim; tem sido uma companheira tão fiel que às vezes lamento ter que morrer, pois então talvez a morte me abandone" (pp.23-4).
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"Sempre achei que minha família, incluindo minha mãe, considerava-me um ser estranho, meio doido ou louco; completamente fora do contexto de suas vidas. Com certeza, tinham toda razão" (p.36).
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"O mar é nossa selva e nossa esperança" (p.341).
 
(In. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2009).
 
Trecho do filme "Antes que anoiteça", estrelado por Javier Bardem, baseado na obra do escritor cubano:
 
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quarta-feira, 9 de julho de 2014

Só garotos - Patti Smith

 
 
"Só garotos" é um livro em que Patti Smith conta do seu encontro com Robert Mapplethorpe, encontro que rendeu uma jornada para além das vivências sexuais, das infinitas possibilidades e finitas impossibilidades do amor.
Quando Patti e Robert se esbarraram eles eram apenas "garotos" e o germe que faria deles donos de um estilo único estava a espreita de florescer. Em comum havia a paixão pela pintura, poesia, música e tudo que dissesse respeito as agonias ínverbalizáveis do ser humano.
Eles compartilharam vivências peculiares e cuidaram um do outro. Mantiveram-se juntos mesmo quando a vida os lançou em caminhos diferentes. O que tiveram não  foi uma dita "parte importante" da vida de cada um...não, foi mais. Foi algo fermentador da maturação de cada um enquanto sujeito, foi o que os fortaleceu para se empossarem plenamente da existência. Não foi "parte da vida" pois foi a própria vida. Foi "para além" da vida. Foi o que deu a certeza para o que era uma suspeita de ambos: a arte como única saída viável para a sufocante absurdidade das conveniências mundanas.
Patti desde cedo não se rendeu. Ela foi a garotinha que não viu sentido em repetir as ladainhas que a sua mãe lhe impingia todas as noites antes de dormir; para ela rezar de acordo com sentenças ditadas era tão pecaminoso quanto crer em um Deus com o qual não pudesse ser sincera. Patti ousou criar seu próprio modo de conversar com Deus, e aí vemos o primeiro vestígio da artista.
Mais tarde, quando uma gravidez inesperada a assaltou, Patti não quis sequestrar a liberdade de um jovem parceiro em troca de reconhecimento social, tal como os "bons costumes" previam. Ela deu vida à filha e a deixou a salvo sem sacrificar a felicidade de outrem.
Patti seguiu adiante. Saiu de casa, morou na rua, roubou pincéis.
 Escapou de um curso universitário medíocre e usou, sem se permitir ser usada, de empregos que garantiam parcamente suas necessidades básicas enquanto ela corria atrás do que queria.
Robert também não se rendeu. Ele, que tinha do "bom e do melhor" (menos amor) com os pais, que lhe pagavam os estudos e esperam que ele se tornasse um profissional gráfico de sucesso, pai de família e dito cidadão respeitável, também saiu de casa. Passou fome, teve febre, e sobreviveu de migalhas até encontrar na fotografia o seu modo de estar dignamente no mundo.
No meio do caminho de Patti e Robert houve pedras, diversas pedras...daquelas grandes e brutas. Mas no meio do caminho de Patti e Robert houve Patti....e houve Robert, para lapidar uma vida possível.
"Só garotos" é a inesquecível narrativa de Patti sobre este caminho.
 
 
Trecho do livro:
 
"A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.
 
Querido Robert,
Sempre que estou na cama acordada me pergunto se você também está acordado na cama. Você está com alguma dor ou se sentindo sozinho? Você me tirou do período mais negro da minha juventude, dividindo comigo o mistério sagrado do que é ser artista. Aprendi a ver com você e nunca faço um verso ou desenho uma curva que não venha do conhecimento que consegui durante o nosso valioso tempo juntos. O seu trabalho, oriundo de uma fonte fluida, remonta à canção nua da sua juventude. E você fala em ficar de mãos dadas com Deus. Lembre-se, aconteça o que acontecer, você sempre esteve segurando essa mão, aperte-a com força Robert, não solte.
Na outra tarde, quando você dormiu no meu ombro, eu também cochilei. Mas antes pensei em dar uma olhada nas suas coisas e no seu trabalho e, passando por anos de trabalho na minha cabeça, vi que, de todos os seus trabalhos, você ainda é o mais bonito. O trabalho mais lindo de todos.
Patti".
 
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(Só Garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 252).
 
 
 
 
 


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Amor, poesia, sabedoria - Edgar Morin

 
 
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"Terminarei fornecendo à pesquisa sobre o amor a fórmula de Rimbaud, a da pesquisa de uma verdade que se situe, simultaneamente, numa alma e num corpo" .
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"A autenticidade do amor não consiste apenas em projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro".
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"A totalidade é a não-verdade" .
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"Mas o amor é paradoxal como a vida e, por isso, há amores que duram, do mesmo modo que dura uma vida".
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Ebook disponível no link:
 

A queda - Albert Camus (trechos)


"Se os proxenetas e os ladrões fossem sempre condenados em toda parte, as pessoas de bem, meu caro senhor, julgar-se-iam todas e incessantemente inocentes. E, no meu entender - pronto, pronto já chega lá! - é, sobretudo isso que é preciso evitar".
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"Conheci um homem que deu vinte anos de sua vida a uma desmiolada, por quem tudo sacrificou, as amizades, o trabalho, a própria decência de sua vida, para uma noite conhecer que nunca a havia amado. Ele se entediava, nada mais. Entendia-se... como a maior parte das pessoas. Havia construído, peça por peça, uma vida de complicações e dramas. É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros".
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"Talvez não amemos a vida o bastante. Já reparou que só a morte desperta nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos nossos mestres que já não falam mais, que estão com a boca cheia de terra...! A homenagem vem, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez tivessem esperado de nós a vida inteira. Mas sabe por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples. Em relação a eles, já não há obrigações. Deixam-nos livres, podemos dispor de nosso tempo, encaixar a homenagem entre o coquetel e uma doce amante: em resumo, nas horas vagas. Se nos impusessem algo, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, não é o morto recente que nós amamos em nossos amigos, o morto doloroso, nossa emoção, enfim, nós mesmos".
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"Fazia a guerra por meios pacíficos e obtinha, enfim, pelo desinteresse, tudo que cobiçava. Por exemplo, nunca me lamentava de terem esquecido a data de meu aniversário; as pessoas chegavam a se surpreender, com uma ligeira dose de admiração, de minha discrição no caso. Mas a razão de meu desinteresse era ainda mais discreta: eu desejava ser esquecido para poder lamentar-me disso a mim mesmo. Vários dias antes da data, entre todas gloriosa, que eu conhecia bem, ficava à espreita, atento para nada deixar escapar que pudesse despertar a atenção e a memória daqueles cuja falha eu contava (não tive um dia a intenção de alterar um calendário?). Uma vez bem demonstrada minha solidão, podia então entregar-me aos encantos de uma tristeza viril".
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"A libertinagem nada tem de frenético, ao contrário do que se pensa. É apenas um longo sono".
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"O ato de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, aí a vaidade se exibe ou, então, aí se revela a verdadeira generosidade".
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"Para deixar de ser duvidoso, é preciso, pura e simplesmente, deixar de ser".
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"Sim, caro amigo, o casamento burguês colocou nosso país de chinelos e em breve vai leva-lo às portas da morte".
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"Cada homem é testemunha do crime de todos os outros, eis minha fé e minha esperança".
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"Que importa, afinal? As mentiras não conduzem finalmente ao caminho da verdade? E minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tendem todas ao mesmo fim, não têm o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas, se, em ...ambos os casos, são representativas do que fui e do que sou? Pode-se, às vezes, ver com mais clareza em quem mente do que em quem fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto".
 
 
Ebook disponível no link:
 
 
 
 



terça-feira, 22 de abril de 2014

Esperança do mundo - Albert Camus


"No mosteiro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio guarnecido de arcadas, tomado por flores vermelhas, pelo sol e por abelhas amarelas e pretas. Em um canto, um regador verde. Por toda parte, o zunido de moscas. Temperado de calor, o pequeno jardim fumega suavemente. Sentado no chão, eu penso nos franciscanos cujos aposentos vi há pouco, cuja inspiração percebo agora, e sinto realmente que, se eles têm razão, é junto de mim que eles têm razão. Atrás da parede em que me apoio, sei que existe a colina que resvala em direção à cidade e essa dádiva de toda Florença com seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação desses homens. E deposito todo meu orgulho em acreditar que ele também é o meu e o de todos os homens de minha raça - que sabem que uma pobreza extrema encontra sempre o luxo e a riqueza do mundo. Se eles se despem, é por uma vida maior ( e não por uma outra vida). É o único sentido que posso atribuir à palavra "desnudamento". "Estar nu" conserva sempre um sentido de liberdade física e esse acordo da mão e das flores, esse entendimento amoroso da terra e do homem liberado do humano, ah eu bem que me converteria se essa já não fosse minha religião.
Hoje, me sinto livre em relação ao meu passado e ao que perdi. Só quero esse aperto e esse espaço fechado - esse fervor lúcido e paciente. E como pão quente que se aperta e que se reduz a quase nada, eu quero apenas ter minha vida nas mãos, como aqueles homens que souberam encerrar suas vidas entre flores e colunas. E ainda essas longas noites de trem nas quais se pode falar consigo mesmo e se preparar para viver, de si para si, e a paciência admirável de retomar ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. Lamber a vida como um torrão doce, moldá-la, afiá-la, amá-la enfim, como se busca a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquilo ou aquela que conclui, que detém, com o que se partirá e que fará dali em diante todo o colorido do nosso olhar. Eu bem que poderia parar aí, encontrar finalmente o termo de um ano de vida desenfreada e louca. Essa presença de mim diante de mim mesmo - meu esforço é levá-la até o limite, mantê-la diante de todas as faces de minha vida, mesmo ao preço da solidão, que eu sei agora o quanto é difícil suportar. Não ceder: tudo está ali. Não consentir, não trair. Toda minha violência me ajuda nisso e, no  ponto em que ela me leva, meu amor me reencontra e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
Sempre que cedemos (que eu cedo) às próprias vaidades, sempre que pensamos e vivemos para "parecer", nos traímos. Todas as vezes, sempre foi a desgraça de querer parecer que me diminuiu diante do verdadeiro. Não precisamos nos entregar aos outros, mas somente àqueles que amamos. Pois nesse caso não se trata mais de se entregar para parecer, mas somente para oferecer. Quando é necessário, um homem tem muito mais força do que parece. Ir até o limite é saber guardar seu segredo. Eu sofri por ser sozinho, mas, por ter guardado meu segredo, venci o sofrimento de ser sozinho. E hoje não conheço maior glória que viver sozinho e ignorado. Escrever, minha alegria profunda" Consentir ao mundo e ao prazer - mas somente no desnudamento. Eu não queria ser digno de amar a nudez das praias se não soubesse ficar nu diante de mim mesmo. Pela primeira vez, o sentido da palavra felicidade não me parece duvidoso. É um pouco o contrário do que se entende pelo banal "eu sou feliz".
Certa continuidade no desespero acaba por gerar a alegria. E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm seu aposento o crânio que alimenta suas meditações, com Florença pela janela e a morte sobre a mesa. Em minha opinião, se eu me sinto em um ponto decisivo da minha vida, não é por causa do que adquiri, mas do que perdi. Sinto que tenho uma extrema e profunda força. É graças a ela que devo viver, da maneira como desejo. Se hoje me encontro tão distante de tudo, é porque não tenho outra capacidade além de amar e admirar. Vida com a aparência de lágrimas e sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como eu gosto e desejo, me parece que ao acariciá-la, todas as forças do desespero e do amor se conjugarão.
Hoje não é como uma hesitação entre sim e não. Mas hoje é sim e é não. Não e revolta diante de tudo o que não são lágrimas e e sol. Sim para a minha vida da qual sinto pela primeira vez a promessa por vir. Um ano fervilhante e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta diante de meu passado e de mim mesmo. Aí está minha pobreza e única riqueza. É como se eu recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência de minhas capacidades e, o desprezo de minhas vaidades e essa febre, lúcida, que me lança diante de meu destino".


(Anotação feita em 15/09/1937 - do caderno: Esperança do mundo (1935-37). São Paulo: Hedra, 2014, p.66-69.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Galopando insana pela casa - Hilda Hilst


S.O.S! Help! Socorro! Aiuto! Aide!
Tô no poço, no bueiro, na cova ainda não, mas tô por perto, e tô olhando o meu retrato aqui na sala, eu aos 26 (todo mundo pergunta quando entra: quem é?) e ao contrário daquele de Dorian Gray o meu é lindo e mais pro "Dorian Gay", e eu na carne, velhíssima, tristíssima, paupérrima, amarela... Comprem alguma coisa minha, meu dedo mindinho por exemplo, que tem uma "anomalia de distribuição de sulcos" segundo meu admirável professor de biologia, que me fazia decorar tudo aquilo de anélias platelmintes nematelmintes artrópodas moluscas moluscoideias. Então comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu abismo de ser e de ter sido, meu lado compassivo, o fervoroso de mim que foi perdido, minha boca aberta (ou comprem meus dentes, ao menos para sorrir amarelo), comprem minhas frases (se as houver) na agonia visceral d despedida, e se eu nada disser comprem o silêncio do poeta, ou minha pele manchada, égua vermelhusca e manca galopando insana pela casa. Comprem minha mesa, minha terra, meu lápis, meu sovaco claro, meus poemas primeiros, meus versos derradeiros, ah sim, minha garganta preclara, meus rutilantes neurônios, minhas rugas magras, comprem comprem! Tô inteirinha à venda, negada!
Estamos todos à venda, os escritores, nesta terra de bolas ladrões eleições presidentes doutores, terra onde a apalavra vale menos que um gato putrefato, onde um poema no jornal só serve para uma eventual escarrada, onde um livro só é lido se for de um pulha rábula, ou se for um guia para tua melhor trepada.
Mas a verdade é que há este amanhecer, estes lilases orvalhados pela cara, este porre patético, eu e meu jovem e sóbrio amigo que chamo de Vivo, também ele um poeta, que para me arrancar desta noite de sombras e de mitos, leu para mim, este seu poema, enquanto eu maldizia a mim mesma e a Deus:

Deixa-me tatear teu hálito
obscuro que estou
de todos os sentidos.
Deixa-me (ao menos) concluir
que esta ilusão de formas
é apenas munha inconclusa
maneira de ocultar-te.
Deixa-me (em sigilo)
beirar a secura do teu corpo
- o abismo de tocar-te.

P.S: Dialogozinho eotérico à maneira da URV:
Depois disso ela morreu, é?
"Não sei ao certo. Mas alguém teve a liberdade de enterrá-la" (frase atribuída ao pai de James Joyce).
E "Gloomy Sunday" pra vocês também".
*
(crônica escrita no domingo, 13/3/94).

(In: Cascos & Carícias & Outras crônicas. Rio de Janeiro: Globo, 2006, p. 202-204).

segunda-feira, 10 de março de 2014

Poemas de Wislawa Szymborska

Entre muitos
Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos
Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.
No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.
Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.
Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.
Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.
Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.
E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?
Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?
A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.
Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.
Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
*
A mulher de Lot
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
*
Uma certa gente
Uma certa gente fugindo de outra gente
em um certo país sob o sol
e algumas nuvens.
Deixam para trás um certo seu tudo
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.
Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.
É no silêncio que alguém cai de exaustão
é no alarido que alguém rouba de alguém o pão
e o filho morto de alguém é sacudido.
À sua frente uma estrada sempre errada
uma ponte, mas não a que precisam
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
No alto um avião que rodopia.
Viria a calhar certa invisibilidade
uma cinzenta rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou longo.
Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê?
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
serão quantos e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
*
Fim e Começo
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
*
A vida na hora
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Nao dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.

E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
*
 
Escrevendo um curriculo
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai,
esse por quem você se passa.

Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando o papel.

*
Sob uma estrela pequenina
Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

(In. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012).
 

Hemingway & Gellhorn - o Filme (trecho).


"O homem pode ser estruído mas não derrotado. Se ainda está de pé, ele pode lutar".
*
"Escrever é como ir à missa. Deus se aborrece se você não aparecer".
*
 "Martha...você tem que ficar comigo. A felicidade em pessoas inteligentes é a coisa mais rara que eu conheço".

Trailer do filme:


Sobre o filme:



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Memorial do convento - Saramago (trechos)


"...e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os olhos, olhos que não te viram, coração que sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí estiver..." (p.53).


"Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios" - ( p.70).


"Dormiu cada qual como pôde, com seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal" - ( p.121)
 
 
"Já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades, porém, estando deitados, assistem as vontades e as almas ao gosto dos corpos, ou talvez ainda se agarrem mais a eles para tomarem parte no gosto, difícil é saber que parte há em cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma quando Blimunda levanta as saias e Baltasar descalça as bragas, se está a vontade ganhando ou perdendo quando ambos suspiram e gemem, se ficou o corpo vencedor ou vencido quando Baltasar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando" - ( 137-8).
*
"Durante muitas horas desse dia não verá Baltasar o rosto de Blimunda, ela sempre adiante, avisando se tem de voltar-se, é um estranho jogo o destes dois, nem um quer ver, nem o outro quer ser visto, parece tão fácil, e só eles sabem quanto lhes custa não se olharem. Por isso, lá pelo fim do dia, quando Blimunda já tiver comido e os seus olhos regressarem à comum humanidade, Baltasar poderá sentir acordar o seu próprio e entorpecido corpo, menos cansado da caminhada que de não ser olhado" - (p.179).
 

"Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas"
*
"Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda" .

(In. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989).

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Teorema - Pasolini ( trecho).

 "Não me reconheço mais.
O que me tornava igual aos outros foi destruído.
Eu era como os outros, talvez, com muitos defeitos... os meus e os do meu mundo.
Você me tirou da ordem natural das coisas.
E, enquanto você estava perto, eu não tinha percebido.
Agora entendo que você vai embora. E perder você me conscientizou da minha diferença.


O que será de mim?
O futuro será como viver perto de um outro "eu"  que não tem nada a ver comigo.
Devo chegar ao fundo dessa diferença que você me revelou e que é a minha íntima e equidistante natureza?
Mas, se não quero, tudo isso não vai me colocar contra tudo e contra todos?





Sobre o filme:
*


Trailer do filme:



sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A obscena senhora D - Hilda Hilst (trechos).


"...por que fecha sempre as janelas?
e por que devo abri-las?
e por que as abre de repente e assuta as gentes e grita?
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com benquenrença, aceitando o agrado dos outros?" 
*
"...Agonizava essa e eu encostava o ouvido à sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quando tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado.
Eu Hillé respondia esquece esquece, está tudo bem agora. Mentia."
*
"ás vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?
Sim
então, eu queria também, queria sim tocar teu medo, teu amor, tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?
Sim
Espera, que gritos são esses agora?
(...) Gritos como facas rombudas, soluços, me muero si, me muero, as pedras polidas, o frio, há anos que te procuro.
Eu também.
há anos que queria ter cordas, malhas de fio-ferida à minha volta, há anos que queria pertencer, ouviste?
Sim" .
 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Flores raras - filme (trecho)

"Elisabeth: - Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.
Lota: - Mas por quê?
Elisabeth: - Porque quando eu não tenho o que quero eu me sinto sozinha e triste...e quando eu tenho o que quero tenho certeza que vou perder. E a espera é insuportável".

Trailer do filme:

Cena do filme:

Reportagem sobre o filme: