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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A cachorra - Pilar Quintana (trecho)

 

"Rogelio era um negro grande e musculoso, com uma cara zangada permanente. Quando Damaris chegou em casa com a cachorra, ele estava do lado de fora, limpando o motor da roçadeira. Nem sequer se deu o trabalho de cumprimentá-la e disparou:

- Outro cachorro? Nem pense que eu vou cuidar dele.

- `Por acaso alguém pediu alguma coisa a você? - retrucou Damaris, seguindo direto para o casebre.

A seringa não funcionou. O braço de Damaris era forte, porém desajeitado, e os seus dedos tão gordos como o resto de sua pessoa. Cada vez que empurrava, o êmbolo ia até o final e o jorro de leite saía com tudo do focinho da cachorra, derramando-se por todo lado. Como a cachorra não sabia lamber, Damaris não podia lhe dar o leite em uma vasilha, e as mamadeiras vendidas no povoado eram para bebês humanos, grandes demais. Seu Jaime lhe recomendou que usasse um conta-gotas, e ela tentou fazer isso, mas bebendo dessa forma a cachorra não encheria a barriga nunca. Então ela teve a ideia de embeber pão no leite e deixar que a cachorra o sugasse. Essa foi a solução: ela o devorou inteiro.

O casebre onde moravam não ficava na praia, e sim em um rochedo de mata onde as pessoas brancas da cidade tinham casas de veraneio grandes e bonitas, com jardins, caminhos de pedras e piscinas. Para chegar ao povoado, descia-se por uma escadaria comprida e íngreme que, como chovia muito, tinham que esfregar com frequência para retirar a lama e par que não ficasse escorregadia. Depois era preciso atravessar a angra, um braço de mar largo e caudaloso como um rio, que se enchia e esvaziava com a maré.

Naqueles dias a maré estava alta pela manhã, de modo que, para comprar o pão para a cachorrinha, Damaris tinha que se levantar na primeira hora, sair do casebre já carregando o remo, descer a escada com ele no ombro, empurrar a canoa desde o cais, colocá-la na água, remar até o outro lado, amarrar a canoa a um coqueiro, levar o remo no ombro até a casa de algum pescador que morasse junto à angra, pedir ao pescador, sua mulher ou às crianças que cuidassem dela, ouvir as lamúrias e as histórias do vizinho e atravessar meio povoado a pé, até a venda de seu Jaime...E a mesma coisa na volta. Todos os dias, mesmo sob a chuva.

Durante o dia, Damaris levava a cachorra enfiada no sutiã, entre os seios macios e fartos, para mantê-la quentinha. à noite, deixava-a na caixa de papelão que seu Jaime tinha dado a ela, com uma garrafa de água quente e a camiseta usada por ela naquele dia, para que não sentisse falta de seu cheiro.

O casebre em que moravam era de madeira e estava em mau estado. Quando caía uma tempestade, tremia com os trovões e balançava com o vento, a água entrava pelas goteiras do teto e pelas frestas nas tábuas das paredes, tudo ficava frio e úmido, e a cadela punha-se a choramingar. Fazia muito tempo que Damaris e Rogelio dormiam em quartos separados, e nestas noites ela se levantava depressa, antes que ele pudesse dizer ou fazer algo. Tirava a cachorra da caixa e ficava com ela na escuridão, acarinhando-a, morta de susto por causa das explosões dos raios e da fúria do vendaval, sentindo-se diminuta, menor e menos importante no mundo do que um grão de areia do mar, até que a cachorra se aquietava.

  Também a acarinhava de dia, à tarde, depois que acabava as tarefas da manhã e o almoço, e sentava-se em uma cadeira de plástico para assistir às novelas com ela no colo. Quando estava no casebre, Rogelio a via passando os dedos pelo dorso da cachorra, mas não fazia nem dizia nada".

(In. A cachorra. Pilar Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, pp.16-18).


Mais sobre o livro:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Autobiografia - Woody Allen

 


"Acabou que ter dois pais amorosos me deixou surpreendentemente neurótico. O porquê eu não sei.

Eu fui o sol das cinco irmãs de minha irmã, o único varão, o queridinho dessas doces fofoqueiras que babavam sobre mim. Nunca fiquei sem uma refeição, nem careci de roupas ou abrigo, nunca fui acometido por nenhuma doença séria, como a pólio, que assolava a cidade. Eu não tinha síndrome de Down como um moleque da minha sala, nem era corcunda como o pequeno Jenny ou sofria de alopecia como o Schartz. Eu era saudável, popular, bem atlético, sempre o primeiro a ser escolhido nas esquipes esportivos. Jogava bola, corria e, ainda assim, acabei me tornando nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um misantropo, claustrofóbico, isolado, amargurado, um pessimista impecável. Algumas pessoas veem o copo meio vazio; outras veem meio cheio. Eu sempre vi o caixão meio cheio. Das milhares de reações naturais do corpo, eu consegui evitar quase todas, exceto a número 682: o mecanismo de negação. Minha mãe falava que não conseguia entender. Dizia que eu era um garotinho doce e animado até uns cinco anos, quando mudei para um moleque feio, azedo, chato e de ovo virado.

Mas não há trauma na minha vida, nada de terrível que tenha ocorrido e me transformado de um garotinho sardento sorridente vestindo calções e sempre com uma vara de pesca em uma das mãos num lorpa cronicamente insatisfeito. Especulo que, por volta dos cinco anos, eu tenha tomado consciência da moralidade e percebido que, afe, u não pedi isso. Nunca concordei em ser finito. Se você não se importar, quero meu dinheiro de volta. Conforme fiquei mais velho, não apenas a extinção, mas também a falta de sentido da existência se tornaram mais claras para mim. Eu me deparei com a mesma pergunta que incomodava o antigo príncipe da Dinamarca: por que sofrer com os tiros e flechadas quando posso apenas molhar meu nariz, enfiá-lo numa tomada e nunca mais ter que lidar com  a ansiedade, o sofrimento ou o frango cozido da minha mãe? Hamlet escolheu não fazer isso porque temia o que poderia acontecer no além. E então, dada minha profunda falta de apreço pela condição humana e seu doloroso absurdo, por que seguir com isso? No fim, eu não pude achar uma razão lógica e finalmente cheguei à conclusão de que, como humanos, simplesmente somos programados para resistir à morte. O sangue vence o cérebro. Não há razão lógica par se prender à vida, mas quem se importa com o que a cabeça diz quando o coração te pergunta: "Viu a Lola naquela minissaia?". Por mais que eu resmungue, reclame e insista firmemente que a vida é um pesadelo sem sentido de sofrimento e lágrimas, se um homem entrasse na sala com uma faca para nos matar, nós insistentemente reagiríamos. Nós o agarraríamos e lutaríamos com cada grama de nossa energia para desarmá-lo e sobreviver. (Pessoalmente, eu correria). Isso, eu insisto, é uma propriedade estrita de nossas moléculas. Agora, você já deve ter percebido que não apenas não sou um intelectual, como também não sou uma companhia divertida nas festas" (pp.15-16).


(In. Autobiografia. Rio de Janeiro: Globo Livros: 2020).

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cesare Pavese por Natalia Ginzburg


 "Pavese cometia erros mais graves que os nossos. Porque os nossos erros eram gerados por impulso, imprudência, estupidez e candura; e os erros de Pavese, ao contrário, nasciam da prudência, da astúcia, do raciocínio e da inteligência. Nada é tão perigoso quanto essa espécie de erro. Podem ser mortais, como foram para ele, porque é difícil voltar pelos caminhos em que se errou por astúcia. Os erros que se cometem por astúcia envolvem-nos estreitamente: a astúcia finca em nós raízes mais profundas do que a irreflexão ou a imprudência: como se desprender desses laços tão tenazes, tão apertados, tão profundos? A prudência, o raciocínio, a astúcia, têm o rosto da razão: o rosto, a voz amarga da razão, que argumenta com seus argumentos infalíveis, aos quais não há nada a responder, só a concordar.

Pavese matou-se num verão em que nenhum de nós estava em Turim. Preparara e maquinara as circunstâncias que diziam respeito à sua morte, como alguém que prepara e predispõe o curso de um passeio ou de uma noitada. Não gostava de que houvesse nos passeios e nas noitadas nada de imprevisto ou de casual. Quando ele, eu, os Balbo e o editor íamos passear na colina irritava-se muito se algo desviava o curso predisposto por ele, se alguém chegava tarde ao encontro, se mudávamos o programa de repente, se se juntava a nós uma pessoa imprevista, se uma circunstância fortuita nos levava a comer, em lugar do restaurante que ele escolhera previamente, na casa de algum conhecido encontrado inesperadamente pelo caminho. O imprevisto incomodava-o. Não gostava de ser pego de surpresa.

Falara em se matar durante anos. Nunca ninguém acreditou nele. Quando vinha à nossa casa, minha e de Leone, comendo cerejas, e os alemães tomavam a França, já então falava nisso. Não pela França, não pelos alemães, não pela guerra assaltando a Itália. Tinha medo da guerra, mas não o suficiente para se matar por causa dela. Porém, continuou tendo medo da guerra, mesmo depois que a guerra tinha acabado havia muito tempo: como de resto todos nós. Pois logo que a guerra terminou, aconteceu de voltarmos imediatamente a ter medo de uma nova guerra, e a pensar sempre nisso. E ele temia uma nova guerra mais do que nós todos. E nele o medo era maior do que em nós: nele, o medo era o turbilhão do imprevisto e do incognoscível, que parecia horrendo à lucidez de seu pensamento; águas escuras, turbulentas  venenosas nas margens despojadas de sua vida.

No fundo, não tinha nenhum motivo real para se matar. Mas juntou mais motivos e calculou a soma deles, com fulminante exatidão, e juntou-os novamente e novamente viu, assentindo com seu sorriso maligno, que o resultado era idêntico e portanto exato. Olhou até além de sua vida, nos nossos dias futuros, olhou como iriam se comportar as pessoas em relação aos seus livros e à sua memória. Olhou para além da morte, como os que amam a vida e não sabem apartar-se dela, e mesmo pensando na morte não vão imaginando a morte, mas a vida. Ele, no entanto, não amava a vida, e aquele seu olhar para além da própria morte não era amor pela vida, mas um cálculo cuidadoso de circunstâncias para que nada, nem mesmo depois de morto, pudesse pegá-lo de surpresa" - (pp.216-218).

(In. Natália Ginzburg. Léxico familiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).

A cinza das horas - Manuel Bandeira

 


Epígrafe

Sou bem nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

*

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

*

Turbiu, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó -

Ah, que dor!

Magoado e só,

- Só! - meu coração ardeu:

*

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

*

- Esta pouca cinza fria... (1917, p.25).


Desencanto

Eu faço versos como quem chora

De desalento...de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

*

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

*

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

*

- Eu faço versos como quem morre. (1912, p.27).


Desesperança

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo

Como dói um pesar em cada pensamento!

Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

*

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento

Que dá medo...O ar, parado, incomoda, angustia...

Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

*

Assim deverá ser a natureza um dia,

Quando a vida acabar e, astro acabado, a Terra

Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

*

O demônio sutil das nevroses enterra

A sua agulha de aço em meu crânio doído.

Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

*

Minha respiração se faz como um gemido.

Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,

Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

*

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,

Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:

E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

*

Vejo nele a feição fria de um desafeto.

Temo a monotonia e apreendo a mudança.

Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

*

- Ah, como dói viver quando falta a esperança! - (1912, p. 126).


(In. A cinza das horas. São Paulo: Global, 2013).

Obs:  "Cinza das horas" é o primeiro livro publicado de Manuel Bandeira. Abaixo a capa da primeira edição de 1917: