Pesquisar este blog

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cesare Pavese por Natalia Ginzburg


 "Pavese cometia erros mais graves que os nossos. Porque os nossos erros eram gerados por impulso, imprudência, estupidez e candura; e os erros de Pavese, ao contrário, nasciam da prudência, da astúcia, do raciocínio e da inteligência. Nada é tão perigoso quanto essa espécie de erro. Podem ser mortais, como foram para ele, porque é difícil voltar pelos caminhos em que se errou por astúcia. Os erros que se cometem por astúcia envolvem-nos estreitamente: a astúcia finca em nós raízes mais profundas do que a irreflexão ou a imprudência: como se desprender desses laços tão tenazes, tão apertados, tão profundos? A prudência, o raciocínio, a astúcia, têm o rosto da razão: o rosto, a voz amarga da razão, que argumenta com seus argumentos infalíveis, aos quais não há nada a responder, só a concordar.

Pavese matou-se num verão em que nenhum de nós estava em Turim. Preparara e maquinara as circunstâncias que diziam respeito à sua morte, como alguém que prepara e predispõe o curso de um passeio ou de uma noitada. Não gostava de que houvesse nos passeios e nas noitadas nada de imprevisto ou de casual. Quando ele, eu, os Balbo e o editor íamos passear na colina irritava-se muito se algo desviava o curso predisposto por ele, se alguém chegava tarde ao encontro, se mudávamos o programa de repente, se se juntava a nós uma pessoa imprevista, se uma circunstância fortuita nos levava a comer, em lugar do restaurante que ele escolhera previamente, na casa de algum conhecido encontrado inesperadamente pelo caminho. O imprevisto incomodava-o. Não gostava de ser pego de surpresa.

Falara em se matar durante anos. Nunca ninguém acreditou nele. Quando vinha à nossa casa, minha e de Leone, comendo cerejas, e os alemães tomavam a França, já então falava nisso. Não pela França, não pelos alemães, não pela guerra assaltando a Itália. Tinha medo da guerra, mas não o suficiente para se matar por causa dela. Porém, continuou tendo medo da guerra, mesmo depois que a guerra tinha acabado havia muito tempo: como de resto todos nós. Pois logo que a guerra terminou, aconteceu de voltarmos imediatamente a ter medo de uma nova guerra, e a pensar sempre nisso. E ele temia uma nova guerra mais do que nós todos. E nele o medo era maior do que em nós: nele, o medo era o turbilhão do imprevisto e do incognoscível, que parecia horrendo à lucidez de seu pensamento; águas escuras, turbulentas  venenosas nas margens despojadas de sua vida.

No fundo, não tinha nenhum motivo real para se matar. Mas juntou mais motivos e calculou a soma deles, com fulminante exatidão, e juntou-os novamente e novamente viu, assentindo com seu sorriso maligno, que o resultado era idêntico e portanto exato. Olhou até além de sua vida, nos nossos dias futuros, olhou como iriam se comportar as pessoas em relação aos seus livros e à sua memória. Olhou para além da morte, como os que amam a vida e não sabem apartar-se dela, e mesmo pensando na morte não vão imaginando a morte, mas a vida. Ele, no entanto, não amava a vida, e aquele seu olhar para além da própria morte não era amor pela vida, mas um cálculo cuidadoso de circunstâncias para que nada, nem mesmo depois de morto, pudesse pegá-lo de surpresa" - (pp.216-218).

(In. Natália Ginzburg. Léxico familiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).

Nenhum comentário:

Postar um comentário