Pesquisar este blog

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Mamãe & eu & Mamãe - Maya Angelou (trechos)

"Com frequência me perguntam como consegui vir a ser o que sou. Como eu, nascida negra num país branco, pobre numa sociedade em que a riqueza é adorada e buscada a todo custo, mulher em um ambiente que apenas grandes embarcações e algumas locomotivas são favoravelmente descritas com o pronome feminino - como consegui tornar-me Maya Angelou?
Muitas vezes senti vontade de citar Topsy, a menina negra de A cabana do Pai Tomás. Eu me senti tentada a dizer: "Num sei. Eu cresci, só isso". Mas nunca usei essa resposta, por diversos motivos. Primeiro, porque li esse livro no início da minha adolescência e fiquei constrangida coma garota negra ignorante. Segundo, eu sabia a mulher que me tornei por causa da avó que eu amava e da mãe que vim a adorar.
O amor das duas me instruiu, educou e libertou. Morei com a minha avó paterna dos três aos treze anos de idade. Minha avó nunca me deu um beijo durante todos esses anos. Porém, sempre que havia visitas, ela me intimava a ficar na frente delas (...). "Certo, irmã, põe aí 242, depois 380, depois 174, depois 419; agora some tudo". Falava para as visitas: "Agora prestem atenção. Seu tio Willie já cronometrou o tempo dela. Ela consegue terminar em dois minutos. Esperem só".
Quando eu respondia, ela sorria, toda orgulhosa. "Viram? Minha professorinha".
O amor cura. Cura e liberta. Eu uso apalavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias" - pp.7-8.
*
"Senti saudades, mas saia que estavam no melhor lugar para vocês. Eu teria sido uma péssima mãe. Não tinha a menor paciência. Maya, quando você tinha mais ou menos dois anos, você me pediu alguma coisa. Eu estava ocupada conversando, daí você bateu na minha mão, e, sem pensar duas vezes, te dei um tapa tão forte que você caiu da varanda. Isso não significa que eu não te amava; só significa que eu não estava preparada para ser mãe. Estou te explicando isso, não pedindo desculpas. Todos nós estaríamos arrependidos se eu tivesse ficado com vocês" pp.29-30 [Vivian Baxter explicando para a filha Maya o porquê de ter deixado ela e o irmão na casa da avó para que esta os criasse].
*
"A única maneira de alguém tirar vantagem e vocês é se vocês acharem que podem conseguir alguma coisa de graça" -p.32
*
"Pensei em minha mãe e percebi que ela era impressionante. Ela nunca me fez sentir como se tivesse envergonhado nossa família. O bebê não fora planejado e eutéria que repensar meus planos de estudos, mas, para Vivian Baxter, isso era simplesmente a vida sendo o que é. Ter um filho sem se casar não tinha sido errado. Era apenas algo ligeiramente inconveniente" - p.71
*
"Vivian me deu tudo o que podia dar (...). Não refletiu que, sendo ela uma mulher, não poderia ser um homem, que como mãe, era incapaz de ser pai" - p.164

(In. Mamãe & eu & Mamãe. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018).

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

A formatura - Maya Angelou (trecho)

"E era mesmo importante, oh se era! Haveria brancos a assistir, e dois ou três falariam sobre Deus e o lar, o estilo de vida sulista, e Mrs. Parsons, a mulher do director, tocaria a marcha da cerimónia, enquanto os finalistas da primária desfilariam pelas coxias e se sentariam abaixo do estrado. Os finalistas do liceu esperariam nas salas de aulas vazias para depois fazerem a sua entrada triunfal.
(...)
O meu trabalho, por si só, granjeara-me um lugar cimeiro e eu seria uma das primeiras a subir ao estrado da cerimónia de final de ano (...). Nem faltas, nem atrasos, e o meu trabalho curricular estava entre os melhores do ano. Conseguia recitar a Constituição mais depressa do que o Bailey. 
(...)
A banda da escola começou a tocar uma marcha e todas as turmas desfilaram como tinham ensaiado. (...)
Donleavy olhou para o público uma vez (...), ajustou os óculos e começou a ler um molho de papéis.
Alegrava-se por estar ali e ver o trabalho realizado, exactamente como nas outras escolas.
(...)
Contou-nos as maravilhosas mudanças que nos esperavam, a nós, crianças de Stamps. Já tinham sido aprovados melhoramentos para a Escola Central (como é óbvio, a escola de brancos era a Central), que entrariam em vigor no início do ano seguinte. Um artista muito conhecido viria de Little Rock dar aulas de educação visual. O laboratório ia receber novíssimos microscópios e equipamento de química. Mr. Donleavy não nos deixou muito tempo sem saber quem é que tornara possíveis esses melhoramentos na Escola Central. E que nós não seríamos ignorados no esquema geral de melhoria que ele tinha em mente.
Disse que tinha referido a pessoas das altas esferas que um dos melhores jogadores da equipa de futebol da Escola Agrária e Técnica de Arkansas tinha estudado na óptima Escola Profissional do Condado de Lafayette. Aqui, ouviram-se menos ámens. Os que interromperam ficaram a pairar com o peso e a insipidez do hábito.
Em seguida pôs-se a elogiar-nos. Contou o quanto enaltecera o facto dos melhores jogadores de basquetebol da Universidade de Fisk ter encestado a sua primeira bola aqui mesmo, na Escola Profissional do Condado de Lafayette.
Os miúdos brancos iam poder tornar-se Galileus e Madames Curies e Edisons e Gauguins, e os nossos rapazes (as raparigas nem sequer eram incluídas nos planos) tentariam ser Jesse Owenses e Joe Louises.
Owens e o Bombardeio Negro eram grandes heróis do nosso mundo, masque direito tinha um funcionário do ensino do reino branco  de Little Rock de decidir que esses dois homens seriam os nossos únicos heróis? Quem é que resolveu que para Henry Read poder comprar um mísero microscópio e se tornar cientista teria de trabalhar como George Washington Carver, a engraxar sapatos? 
(...)
As palavras mortas do fulano caíram como tijolos no auditório e muitas delas - demasiadas - aterraram-me na barriga. Constrangida pelas boas maneiras que tinha aprendido à força, eu não podia olhar para trás, mas à minha direita e à minha esquerda, a orgulhosa turma que terminava ocurso em 1940 tinha deixado cair a cabeça. Todas as meninas da minha fila tinham arranjado uma coisa nova para fazer com os seus lencinhos. Umas dobravam os quadradinhos minúsculos em laços românticos, outras em triângulos, mas a maior parte amassava-os e depois alisava-os no colo amarelo.
(...)
A cerimônia de fim de curso, esse momento mágico de sussurros, folhos, prendas, felicitações e diplomas, acabou para mim antes mesmo de proferirem o meu nome. O que eu conquistara não era nada. Os mapas meticulosos, desenhados a tinta de três cores diferentes, aprender a soletrar palavras decassilábicas, decorar todo O Rapto de Lucrécia... não servira para nada. Donleavy desmascarara-os.
Éramos criadas e lavradores, biscateiros e lavadeiras, e qualquer aspiração a algo mais do que isso não passava de uma farsa e uma presunção.
(...)
Era horrível ser negra e não ter controlo nenhum sobre a minha vida. Era brutal ser jovem e já me terem domado para ficar sossegadinha a ouvir acusações feitas contra a minha cor, sem hipótese de me defender. Devíamos estar mortos, todos nós (...). Enquanto espécie, éramos uma abominação. Todos nós".
(In. Maya Angelou. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona: 2017, pp.173-183).

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Sei porque canta o pássaro na gaiola - Maya Angelou (trecho)

"Esse incidente tornou-se uma das pequenas lendas de Stamps. Uns anos antes de o Bailey e eu chegarmos à povoação, um homem foi perseguido por ter agredido sexualmente uma mulher branca. Quando tentava fugir, correu para dentro da Loja. A Mãezinha e o Tio Willie esconderam-no atrás do guarda-fatos até ser noite, deram-lhe mantimentos para uma viagem e mandaram-no ir à sua vida. Foi, no entanto, detido, e no tribunal, quando foi interrogado acerca dos seus movimentos no dia do crime, respondeu que, quando soube que andavam à sua procura, se refugiou na Loja de Mrs. Henderson.
O juiz pediu para convocarem Mrs. Henderson para ser ouvida e, quando a Mãezinha chegou e disse que era Mrs. Henderson, o juiz, o meirinho e outros brancos presentes na sala riram-se. O juiz tinha cometido uma gafe ao chamar "senhora" a uma mulher negra, mas ele era de Pine Bluff e nem lhe passou pela cabeça que a proprietária de uma loja na tal vila pudesse ser negra. Os brancos divertiram-se durante muito tempo à custa desse incidente, e os negros acharam que o corrido era prova do valor e excelência da minha avó" - (p.52).
*
   "As pessoas de Stamps costumavam dizer que os brancos da nossa terra eram tão preconceituosos, que um negro nem sequer podia comprar gelado de baunilha. A não ser em 4 de Julho. Nos outros dias, tinha que se contentar com chocolate" - (p.53).
*
"Mas, acima de tudo, o que suscitava mais inveja era a riqueza que lhes consentia o desperdício. Tinham tanta roupa que até davam vestidos em perfeito estado, só ligeiramente puídos debaixo dos braços, à turma de costura da nossa escola, para que as meninas mais velhas pudessem treinar.
Embora houvesse sempre generosidade no bairro negro, ela assentava na dor do sacrifício. O que quer que os negros dessem a outros negros provavelmente era tão desesperadamente necessário para quem dava como para quem recebia. Isto levava a que o dar e o receber fossem um intercâmbio precioso.
Eu não compreendia os brancos, nem porque tinham eles o direito de esbanjar dinheiro daquela maneira. Claro está que sabia que Deus também era branco, mas ninguém me convenceria nunca de que era preconceituoso" - (p.53).
*
"Mas que mãe e filha se compreendem mutuamente ou sequer se compadecem da sua falta de compreensão recíproca?" -(p.72).


(In. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona, 2017).