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domingo, 29 de outubro de 2017

A vida com Lacan - Catherine Millot

"Houve um tempo em que eu tinha a sensação de ter aprendido o ser de Lacan em sua essência. De ter uma espécie de intuição de sua relação com o mundo, um acesso misterioso ao lugar íntimo de onde emanava sua ligação com os seres e as coisas, e também com ele próprio. Era como se eu houvesse deslizado para dentro dele.
Essa sensação de apreender sua essência ia de par com a impressão de estar compreendida, no sentido de estar integralmente incluída nessa sua compreensão, cuja extensão me ultrapassava. Seu espírito - sua amplitude, sua profundidade -, seu espírito mental, englobava o meu como uma esfera que contivesse outra menor (...). Não ter nada a dissimular, nenhum mistério a preservar, dava-me uma total liberdade com ele, mas não só. Uma parte essencial de meu ser lhe era entregue, ele tinha sua guarda, eu me sentia aliviada. Vivi a seu lado anos a fio nessa leveza.
Um dia, contudo, ele manipulando as rodelas de barbante que ele tanto gostava de modelar e, de repente, me disse: "está vendo, isso é você". Eu era - como qualquer um, não importa quem - aquele real que escapava ao seu controle, que tanto mal lhe fazia. Vi-me bruscamente compelida a levar em conta o que em mim lhe resistia como só o real resiste.
Quando digo "seu ser", o que entendo por isso? Sua particularidade, sua singularidade, o que nele era irredutível, seu peso de real. Quando hoje tento apreender novamente esse ser, é seu poder de concentração que retorna, sua concentração quase permanente em um objeto de pensamento que ele nunca abandonava. Com o tempo, ele se simplificara ao extremo. De certa maneira, não era nada além disso, essa concentração no estado puro. Ela se confundia com seu desejo, o qual se tornava tangível.
Eu a encontrava em sua maneira de andar, projetado para a rente, a cabeça primeiro, como se carregado por seu peso, recuperando o equilíbrio no passo seguinte. Nessa própria instabilidade, contudo, via-se determinação, ele não se afastava uma polegada de seu caminho, ia até o fim, sempre em linha reta, indiferente aos obstáculos, que ele parecia ignorar e que, de todo modo, não lhe inspiravam qualquer consideração. Gostava de lembrar que era do signo de Capricórnio" (p.5-7).
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"O real é aquilo contra o qual nada podemos, com o que nos chocamos, é o intransponível, o impossível de contornar, de negociar. Para ele, tanto na vida como numa análise, tratava-se de alcança-lo, esse indestrutível núcleo d realidade, e tudo o que o isola, o mantém à distância ou máscara pertence à esfera da frivolidade" - (p.12).
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"Lacan tinha grande apreço pela Roma católica. A tal ponto que fomos visitar um cardeal amigo seu, com quem deixara um exemplar dos Escritos para que entregasse ao papa" - (p.17).
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"Nos primeiros tempos, Lacan, implicante, me dizia que as mulheres assemelhavam-se sempre a algum flagelo. Eu e meu gênero éramos uma inundação. In petto, eu ruminava que ele não erguia nenhum dique contra o pacífico dessa invasão" - (p.26).
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"O real é quando "os pinos não entram nos buraquinhos", ele gostava de dizer. Lacam exprimia frequentemente essa cólera no cotidiano, que fornecia diversos ensejos para al. Então ele nada tinha de teatral e geralmente não se dirigia a ninguém a não ser, digamos, à má vontade do real. Esperar fazia-o quicar de impaciência, fosse num sinal vermelho ou numa passagem de nível. Se demorassem a servi-lo num restaurante, ele reagia imediatamente soltando um grito estridente ou um suspiro semelhante a um grito. E se voltasse ao local, a presteza estava garantida" - (p.35-36).
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"Quando não fazia um monte de perguntas a respeito de um assunto que o intrigava, preferia ficar calado. Saindo de seu silêncio, intervinha com uma tirada brusca, não raro desconcertante: "Quando um homem não é mais um homem, sua mulher o esmaga", lançara subitamente. "Esmaga mesmo?", eu repeti, pasma. Sollers, por sua vez, entendera uma coisa completamente diferente: "Quando uma mulher não é mas uma mulher, ela esmaga seu homem" - (p.42).
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"Um dia, quando eu lhe falava do que vivenciava com o desconforto de ser mulher, ele me disse: "Você não é a única, isso não a torna menos sozinha". Ele não deixava sua plateia se iludir com uma esperança sobre o futuro terapêutico de seus doentes. Na discussão que se seguia à apresentação, depois que o doente saía, não hesitava em afirmar a respeito de um ou outro que ele estava "fodido". Às vezes, aliás, dizia-o ao próprio paciente, o que espantosamente tinha o efeito de aliviá-lo" - (p. 52).

(A vida com Lacan  - Rio de Janeiro: Zahar, 2017).

Sobre o livro:

Catherine Millot no Brasil: