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domingo, 12 de março de 2017

Para educar crianças feministas - um manifesto

"3. Terceira sugestão: Ensine a ela que "papéis de gênero" são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa "porque você é menina".
"porque você é menina" nunca é razão para nada. Jamais.
Lembro que me diziam quando era criança para "varrer direito, como uma menina". O que significava que varrer tinha a ver com ser mulher. Eu prefiria que tivessem dito apenas para "varrer direito, pois assim vai limpar melhor o chão". E prefiria que tivessem dito a mesma coisa para os meus irmãos.
Ultimamente ocorreram uns debates nas redes sociais nigerianas sobre as mulheres e a cozinha, que diziam que as esposas precisam cozinhar para os maridos. É engraçado, quero dizer, engraçado como uma coisa triste, que em 2016 ainda estejamos falando de cozinhar como uma espécie de "teste de boa esposa" para as mulheres.
Saber cozinhar não é algo que vem pré-instalado na vagina. Cozinhar se aprende. Cozinhar - o serviço doméstico em geral - é uma habilidade que se adquire na vida, e que teoricamente homens e mulheres deveriam ter. É também uma habilidade que às vezes escapa tanto aos homens quanto às mulheres.
Também temos de questionar a ideia do casamento como um prêmio para as mulheres, pois é o que está na base desses debates absurdos. Se pararmos de condicionar as mulheres a verem o casamento dessa forma, não precisaremos discutir tanto se uma esposa precisa cozinhar para ganhar esse prêmio.
Acho interessante como o mundo começa a inventar papéis de gênero desde cedo. Ontem fui a uma loja infantil para comprar uma roupa para Chizalum. Na seção das meninas, havia umas coisas pálidas espantosas, em tons de rosa desbotado. Não gostei. A seção dos meninos tinha roupas num tom azul forte e vibrante. Como achei que o azul ia ficar lindo em contraste com a pele morena dela - e sai melhor nas fotos -, comprei uma roupinha azul. A moça do caixa me disse que era o presente ideal para um garotinho. Falei que era para uma menininha. Ela fez uma cara horrorizada: "Azul para uma menina?".
Fico imaginando quem foi o gênio do marketing que inventou essa dualidade rosa-azul. Havia também uma seção de "Gênero neutro", com uma infinidade de cinzassem graça. "Gênero neutro" é uma bobagem, porque tem como premissa a ideia do masculino como azul e do feminino como rosa, sendo o "gênero neutro" uma categoria própria. Por que não organizar as roupas infantis por idade e expô-las em todas as cores? Afinal, todos os bebês têm o corpo parecido.
Olhei a seção de brinquedos, também organizada por gênero. Os brinquedos para meninos geralmente são "ativos", pedindo algum tipo de "ação" - trens, carrinhos -, e os brinquedos para meninas geralmente são "passivos", sendo a imensa maioria bonecas. Fiquei impressionada com isso. Eu não tinha percebido ainda como a sociedade começa tão cedo a inventar a ideia do que deve ser um menino e do que deve ser uma menina. Eu gostaria que os brinquedos fossem divididos por tipo, não por gênero.
(...)
 Se não empregarmos a camisa de força do gênero nas crianças pequenas, daremos a elas espaço para alcançar todo o seu potencial. Por favor, veja Chizalum como indivíduo. Não como uma menina que deve ser de tal ou tal jeito. Veja seus pontos fortes e seus pontos fracos de maneira individual. Não a meça pelo que uma menina deve ser. Meça-a pela melhor versão de si mesma.
Uma jovem nigeriana uma vez me contou que passou muitos anos se comportando "como menino" - gostava de futebol e não achava graça em vestidos -, até que a mãe a obrigou a abandonar seus interesses "de menino" e agora ela agradece à mãe por ajuda-la a começar a se comportar como menina. A história me deixou triste. Fiquei imaginando o que ela teve de abafar e silenciar dentro de si, o que sua personalidade perdeu, pois aquilo que a moça chamava de "se comportar como um menino" era, na verdade, se comportar como ela
mesma.
(...)
Os estereótipos de gênero são tão profundamente incutidos em nós que é comum os seguirmos mesmo quando vão contra nossos verdadeiros desejos, nossas necessidades, nossa felicidade. É muito difícil desaprende-los, e por isso é importante cuidar para que Chizalum rejeite esses estereótipos desde o começo. Em vez de deixa-la internalizar essas ideias, ensine-lhe autonomia. Diga-lhe que é importante fazer por si mesma e se virar sozinha. Ensine-a a consertar as coisas quando quebram. A gente supõe rápido demais que as meninas não conseguem fazer várias coisas. Deixe-a tentar".
*
(In. Chimanda Ngozi Adichie.  Para educar crianças feministas - um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 21-28).


quinta-feira, 9 de março de 2017

A vida invisível de Eurídice Gusmão

 
"Foi uma cerimônia simples, seguida por uma festa simples, e por uma lua de mel complicada. O lençol não ficou sujo, e Antenor se indignou.
"Por onde raios você andou?"
"Eu não andei por canto algum".
"Ah, andou, mulher".
"Não, não andei".
"Não me venha com desculpas, você sabe muito bem o que deveríamos ter visto aqui".
"Sim, eu sei, minha irmã me explicou".
"Vagabunda. Eu me casei com uma vagabunda".
"Não fale assim, Antenor".
"Pois eu falo e repito. Vagabunda, vagabunda, vagabunda".
Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração.
Nas semanas seguintes a coisa se acalmou, e Antenor achou que não precisava devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito. Além do mais, o incidente da noite de núpcias serviu para deixa-lo mais alto, fazendo com que precisasse baixar a cabeça ao se dirigir à esposa. Lá de baixo Eurídice aceitava. Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras "Do lar".
Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! 
Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!
Responsável pelo aumento de cem por cento do núcleo em menos de dois anos, Eurídice achou que era hora de se aposentar da parte física de seus deveres matrimoniais. Tentou explicar a decisão para Antenor, através de umas indisposições que passou a ter, nas horas soltas das manhãs de sábado e naqueles momentos escuros, depois das nove da noite. Mas Antenor não queria saber de não me toques. Ele era um homem de hábitos e de rotinas, como aquela que envolvia achegar-se à camisola da mulher e afundar o nariz no macio do pescoço branco. Eurídice então se fez ouvir de outras formas. Ganhou um monte de quilos que falavam por si, e gritavam para Antenor se afastar.
Ela emendava o café da manhã no lanche das dez, o almoço no lanche das quatro e o jantar na ceia das nove (...). Quando viu que estava no ponto, que era o ponto de fazer o marido nunca mais se aproximar, adotou formas saudáveis de alimentação. Fazia dieta nas manhãs de segunda-feira e no intervalo entre as refeições.
O peso de Eurídice se estabilizou, bem como a rotina da família Gusmão Campelo. Antenor saía para o trabalho, os filhos saíam para a escola e Eurídice ficava em casa, moendo carne e remoendo os pensamentos estéreis que faziam da sua uma vida infeliz. Ela não tinha um emprego, ela já tinha ido para a escola, e como preencher as horas do dia depois de arrumar as camas, regar as plantas, varrer a sala, lavar a roupa, temperar o feijão, refogar o arroz, preparar o suflê e fritar os bifes?
Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.
E foi assim que concluiu que não deveria pensar".
 
 
 
(In. Maria Batalha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 9-11).


Em busca do real perdido - Alain Badiou

"E então lamento ter de dizer aqui que o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a palavra "democracia" é uma palavra admirável, e será preciso retomá-la e redefini-la, de um jeito ou de outro. Mas a democracia de que estou falando é a que funciona em nossas sociedades de maneira institucional, estatal, regular, normatizada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora da morte de Molière - que o capitalismo é esse mundo que está sempre representando uma peça cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem representada, é a melhor peça de que o capitalismo é capaz. Os espectadores e os participantes em geral aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é que é um rito para o qual são convocados e ao qual se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a democracia imaginária que é representada e, por baixo, o processo mundializado do capitalismo e da pilhagem imperial que prossegue, com seu real impalpável, cuja descrição não serve para nada. Enquanto essa peça durar e um vasto público continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou seja, a capacidade de dividi-lo, de obriga-lo a uma cisão de si mês que seja ativa e que prometa sua dissipação, sua destruição, permanecerá politicamente inacessível. Porque se essa peça é a peça do semblante democrático, se ela é a máscara que fornece ao capitalismo imperial a cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, nenhuma possibilidade de arrancar essa máscara, de interromper essa peça de teatro, está na ordem do dia, então alguma coisa  permanece politicamente inacessível para qualquer empreendimento político de acesso ao real nu".
 
(In. Alain Badiou. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica: 2017, pp. 25-26).