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domingo, 30 de setembro de 2012

Por isso não pensou no suicídio... - Mário de Sá Carneiro

"Pela primeira vez chorou; chorou não por Leonor, mas pela ruína total e sem remédio da sua vida inteira. porque era assim: a partir daquele momento toda a sua vida desabara convertida num montão de escombros. Debaixo dos destroços, ele jazia sepultado - morrera também. Por isso não pensou no suicídio: existem angústias tão desoladoras, tão infinitamente cruéis, que nós temos a sensação nítida - mas é verdade, temos a sensação nítida - de que já passamos para além da morte. Em muitos dias da vida, por coisas de bem menor importância, por mil complicações enervantes e mesquinhas, lembramo-nos de desertar com uma bala - chegamos até a pegar no revólver. Porém, em face duma catástrofe horrível, de tal modo horrível que nunca admitimos a hipótese de a vermos consumada, não pensamos nem por um segundo nessa libertação. Não pensamos porque a nossa dor foi tamanha que mesmo na morte não acharíamos refúgio para ela - a nossa dor foi tamanha que realmente morremos já. E como morremos já, não importa que continuemos vivos. Demais, ao peso dessa angústia, toda a vontade ficou abolida. Ora, digam o que disserem, ainda é imprescindível uma grande força de vontade para desfecharmos uma pistola sobre nós próprios, para nos precipitarmos duma ponte, para embocarmos um frasco de veneno.
(...)Embora dum escritor, estas palavras por acaso são sinceras: tenho vinte e dois anos, e não creio em coisa alguma; olho em volta de mim e não vejo nada que me atraia, nada que me encante, nada para que viva. Sinto, verdadeiramente sinto, que me barraram todo o corpo com uma camada de gesso muito espessa que me prende os movimentos, me anquiolha os músculos.
Para a doença física em que a vida se me tornou, só existe um remédio: o aniquilamento. No entanto, nunca terei a força de vontade necessária para absorver esse temível elixir. Os meus amigos podem estar perfeitamente descansados. Apesar de tudo, continuarei vivendo: apesar de nada me distrair, não deixarei de frequentar os teatros; apesar de não crer em coisa alguma, irei compondo mais livros, sempre mais livros, na conquista ´vã duma quimera de ouro... Gritando sem cessar a minha desgraça, amaldiçoando a existência, irei gozando o que nela houver de bom - como a outra gente afinal. E escrevi tudo isto...
Literatura, meus amigos, literatura...".

(In: Loucura ...e O Incesto. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p.119-121).
*
Mário de Sá Carneiro, poeta português, melhor amigo de Fernando Pessoa, suicidou-se em 1916 aos vinte e cinco anos. Abaixo, segue trecho da carta de despedida que escreveu ao amigo:
 
"Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]".
 
Para saber mais:


domingo, 23 de setembro de 2012

Possuíram-se como amantes - Mário Sá-Carneiro

"Raul e Marcela - dizia-se - não eram dois esposos, eram dois amantes. Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre marido e mulher e amante e amante. No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo consente e ordena - na produção dos filhos: "Crescei e multiplicai-vos!". Os esposos dignos devem respeitar-se até mesmo no delicioso momento em que os seus corpos se unem num feixe palpitante de carne e nervos. Devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros...
O amor dos amantes é, pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar as bocas, os seios, os corpos todos...É a liberdade na paixão e, como é liberdade, granjeou o ódio da "gente honesta".
Tudo isto é absurdo...tudo isto é verdadeiro. Que diferença pode haver entre a posse de duas criaturas unidas por um contrato grafado a tinta negra e a de outras a quem nada liga senão um sentimento de amor mútuo?
É por isto mesmo que os esposos que se amam como esposos, se não amam.
(...) Raul e Marcela amavam-se verdadeiramente; quer dizer: não se amavam como esposos (...).
A sua noite de núpcias não havia sido o vulgar estúpido e brutal momento psicológico - "enfim sós!" - episódio tragicômico lamentavelmente ridículo (...).
Bem diferente tinha sido a noite de noivos de Marcela e Raul. Espíritos desprendidos, francos e livres, não se envergonhavam de ser animais; possuíram-se encarando o ato como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens...Possuíram-se como amantes, não se possuíram como esposos..." -
 
(In: Loucura e O Incesto. Rio e Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p.30-1).


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Dentro, fora - Jacques Lacan

"...o exterior, para o sujeito, é inicialmente dado não como alguma coisa que se projeta a partir de seu interior, de suas pulsões, mas como a sede, o lugar onde se situa o desejo do Outro, e onde o sujeito tem que ir encontrá-lo" -
(Jacques Lacan. Seminário V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p.283).

Quintana no Paraíso

(Na estação Paraíso do metrô/SP).

sábado, 15 de setembro de 2012

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Sobre o 11 de setembro

No momento em que pensamos nos termos: "É verdade, a queda do WTC foi uma tragédia, mas não podemos nos solidarizar inteiramente com as vítimas, pois isso significaria apoiar também o capitalismo americano", já estamos diante da catástrofe ética: a única atitude aceitável é a solidariedade incondicional com todas as vítimas. A atitude ética correta é aqui substituída pela matemática moralizadora da culpa e do horror, que perde de vista um ponto importante: a morte terrível de todo indivíduo é absoluta e incomparável" - 
(Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 68).

Oscar Wilde



segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Bansky & Stendhal

 
"A Revolução virá, mas não há razão para se rejeitar as alegrias da existência" - Stendhal 

domingo, 9 de setembro de 2012

Nossa aurora virá - David Rudskin

 
"Cuida da flama, até que possamos despertar novamente, seguros.
A flama está em nossas mãos, a confiamos a ti, este nosso demônio sagrado da ingovernabilidade.
Cuida da flama e descansaremos em paz.
Criança, sê estranha, obscura, verdadeira, impura e dissonante.
Cuida da nossa flama".


sábado, 8 de setembro de 2012

Perfect sense - filme (trecho)

"Aceitação.
Perdão.
Amor.
Está escuro agora, mas sentem a respiração um do outro e sabem tudo que precisam saber.
Eles se beijam.
E sentem as lágrimas do outro em suas bochechas.
E se houvesse restado alguém para vê-los, teriam parecido simples amantes acariciando os rostos um do outro.
Corpos colados.
Olhos fechados.
Insconscientes do mundo ao redor.
Porque é assim que a vida passa.
Assim".
 
Trailer disponível no youtube:


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A origem do drama trágico alemão - Walter Benjamin

 
"O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro"- (p.17).
*
"...o ser humano é belo para aquele que ama, e não em si. E a explicação está no fato de o seu corpo se representar numa ordem superior à do belo. O mesmo se passa com a verdade: ela não é bela em si, mas para aquele que a busca. Poderá haver nisto uma pontinha de relativismo, mas nem por isso a beleza que deve ser inerente à verdade se torna um epíteto metafórico. Pelo contrário, a essência da verdade como essência do reino das ideias que se representa garante que o discurso sobre a beleza da verdade jamais poderá ser afetado. De fato, aquele momento de representação é por excelência o refúgio da beleza. O belo permanece na esfera da aparência, palpável, enquanto se reconhecer abertamente como tal. Manifestando-se como aparência, e seduzindo enquanto não quiser ser mais do que isso mesmo, atrai a perseguição do entendimento e torna reconhecível a sua inocência apenas no momento em que se refugia no altar da verdade. Eros segue-o nesta sua fuga, não como perseguidor, mas como amante; e de tal modo que a beleza, para se manter aparência, foge sempre dos dois, do entendimento por temor e do amante por angústia. E só este pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça" - (p.19)
*
"A verdade nunca se manifesta em relação, e muito menos numa relação intencional. O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional (...). O procedimento que lhe é adequado não será, assim, de ordem intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento nela. A verdade é a morte da intenção"- (Walter Benjamin. A origem do drama trágico alemão. São Paulo: Autêntica, 2011, p.24)
  

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Lá na Palestina

"Nos han robado la tierra y la seguridad. Nos han puesto en campos de angustia y de prohibición. Nos han ametrallado en todos los sitios. Nos han prohibido los derechos humanos. Nos han querido torturar y rendirnos. Y han ignorado que somos siempre como un volcán Y resurgirán de nosotros hombres, donde no los haya" -  
(tradução da incrição em um muro na Palestina).

Mais Zizek

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A tinta que falta - Slavoj Zizek

"Numa antiga anedota que circulava na hoje falecida República Democrática Alemã, um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: "Vamos combinar um código: se um carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira". Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa - o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha". Neste caso, a estrutura é mais refinada do que indicam as aparências: apesar de não ter como usar o código combinado para indicar que tudo o que está dito é mentira, mesmo assim ele consegue passar a mensagem; como? Pela introdução da referência ao código, como um de seus elementos, na própria mensagem codificada. Evidentemente, este é o problema padrão da autoreferência: como a carta foi escrita em tinta azul, todo o seu conteúdo não teria de ser verdadeiro? A resposta é que o fato de a mensagem ter mencionado a inexistência de tinta vermelha indica que ela deveria ter sido escrita em vermelho. O interessante é que esta menção à inexistência de tinta vermelha produz o efeito da verdade independentemente da sua própria verdade literal: ainda que houvesse tinta vermelha, a mentira de ela não existir é a única forma de transmitir a mensagem verdadeira naquela condição específica de censura.
Não é esta a matriz de uma crítica eficaz da ideologia - não somente em condições "totalitárias" de censura, mas, talvez ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? Começa-se pela concordância com relação à existência de todas as liberdades desejadas - e então simplesmente se acrescenta que a única coisa em falta é a "tinta vermelha": sentimo-nos livres pela falta de uma língua em que articular nossa não liberdade. Esta falta de tinta vermelha significa que atualmente todos os termos usados para descrever o presente conflito - "guerra contra o terrorismo", "democracia e liberdade", "direitos humanos", etc. - são temros falsos, que mistificam nossa percepção da situação em vez de nos permitir pensála. Neste sentido preciso, nossas "liberdades" servem para mascarar e manter nossa infelicidade mais profunda. Cem anos atrás, ao enfatizar a aceitação de algum dogma fixo como a condição da verdadeira liberdade, Gilbert Keith Chesterton percebeu claramente o potencial antidemocrático do princípio de liberdade de pensamento:
Em termos gerais, podemos afirmar que o livre pensamento é a melhor d etodas as salvaguardas contra a liberdade. Aplicada conforme o estilo moderno, a emancipação da mente do escravo é a melhor forma de evitar a emancipação do escravo. Basta lhe ensinar a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar.
E não seria isso enfaticamente verdadeiro com relação à época pós-moderna, em que existe a liberdade de desconstruir, duvidar, distanciar-se? Não devemos esquecer de que a afirmação de Chesterton é a mesma afirmação feita por Kant em seu "O que é o Iluminismo?": "Pense o quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!". A única diferença é que Chesterton é mais específico, e esclarece o paradoxo implícito oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de pensamento não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta (...)".
(Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real. Boitempo, 2004, p. 15-7).