"Raul e Marcela - dizia-se - não eram dois esposos, eram dois amantes. Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre marido e mulher e amante e amante. No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo consente e ordena - na produção dos filhos: "Crescei e multiplicai-vos!". Os esposos dignos devem respeitar-se até mesmo no delicioso momento em que os seus corpos se unem num feixe palpitante de carne e nervos. Devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros...
O amor dos amantes é, pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar as bocas, os seios, os corpos todos...É a liberdade na paixão e, como é liberdade, granjeou o ódio da "gente honesta".
Tudo isto é absurdo...tudo isto é verdadeiro. Que diferença pode haver entre a posse de duas criaturas unidas por um contrato grafado a tinta negra e a de outras a quem nada liga senão um sentimento de amor mútuo?
É por isto mesmo que os esposos que se amam como esposos, se não amam.
(...) Raul e Marcela amavam-se verdadeiramente; quer dizer: não se amavam como esposos (...).
A sua noite de núpcias não havia sido o vulgar estúpido e brutal momento psicológico - "enfim sós!" - episódio tragicômico lamentavelmente ridículo (...).
Bem diferente tinha sido a noite de noivos de Marcela e Raul. Espíritos desprendidos, francos e livres, não se envergonhavam de ser animais; possuíram-se encarando o ato como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens...Possuíram-se como amantes, não se possuíram como esposos..." -
(In: Loucura e O Incesto. Rio e Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p.30-1).
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