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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Galopando insana pela casa - Hilda Hilst


S.O.S! Help! Socorro! Aiuto! Aide!
Tô no poço, no bueiro, na cova ainda não, mas tô por perto, e tô olhando o meu retrato aqui na sala, eu aos 26 (todo mundo pergunta quando entra: quem é?) e ao contrário daquele de Dorian Gray o meu é lindo e mais pro "Dorian Gay", e eu na carne, velhíssima, tristíssima, paupérrima, amarela... Comprem alguma coisa minha, meu dedo mindinho por exemplo, que tem uma "anomalia de distribuição de sulcos" segundo meu admirável professor de biologia, que me fazia decorar tudo aquilo de anélias platelmintes nematelmintes artrópodas moluscas moluscoideias. Então comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu abismo de ser e de ter sido, meu lado compassivo, o fervoroso de mim que foi perdido, minha boca aberta (ou comprem meus dentes, ao menos para sorrir amarelo), comprem minhas frases (se as houver) na agonia visceral d despedida, e se eu nada disser comprem o silêncio do poeta, ou minha pele manchada, égua vermelhusca e manca galopando insana pela casa. Comprem minha mesa, minha terra, meu lápis, meu sovaco claro, meus poemas primeiros, meus versos derradeiros, ah sim, minha garganta preclara, meus rutilantes neurônios, minhas rugas magras, comprem comprem! Tô inteirinha à venda, negada!
Estamos todos à venda, os escritores, nesta terra de bolas ladrões eleições presidentes doutores, terra onde a apalavra vale menos que um gato putrefato, onde um poema no jornal só serve para uma eventual escarrada, onde um livro só é lido se for de um pulha rábula, ou se for um guia para tua melhor trepada.
Mas a verdade é que há este amanhecer, estes lilases orvalhados pela cara, este porre patético, eu e meu jovem e sóbrio amigo que chamo de Vivo, também ele um poeta, que para me arrancar desta noite de sombras e de mitos, leu para mim, este seu poema, enquanto eu maldizia a mim mesma e a Deus:

Deixa-me tatear teu hálito
obscuro que estou
de todos os sentidos.
Deixa-me (ao menos) concluir
que esta ilusão de formas
é apenas munha inconclusa
maneira de ocultar-te.
Deixa-me (em sigilo)
beirar a secura do teu corpo
- o abismo de tocar-te.

P.S: Dialogozinho eotérico à maneira da URV:
Depois disso ela morreu, é?
"Não sei ao certo. Mas alguém teve a liberdade de enterrá-la" (frase atribuída ao pai de James Joyce).
E "Gloomy Sunday" pra vocês também".
*
(crônica escrita no domingo, 13/3/94).

(In: Cascos & Carícias & Outras crônicas. Rio de Janeiro: Globo, 2006, p. 202-204).

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A obscena senhora D - Hilda Hilst (trechos).


"...por que fecha sempre as janelas?
e por que devo abri-las?
e por que as abre de repente e assuta as gentes e grita?
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com benquenrença, aceitando o agrado dos outros?" 
*
"...Agonizava essa e eu encostava o ouvido à sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quando tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado.
Eu Hillé respondia esquece esquece, está tudo bem agora. Mentia."
*
"ás vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?
Sim
então, eu queria também, queria sim tocar teu medo, teu amor, tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?
Sim
Espera, que gritos são esses agora?
(...) Gritos como facas rombudas, soluços, me muero si, me muero, as pedras polidas, o frio, há anos que te procuro.
Eu também.
há anos que queria ter cordas, malhas de fio-ferida à minha volta, há anos que queria pertencer, ouviste?
Sim" .
 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"As coisas não existem..." - Hilda Hilst

"O que nós vemos das coisas são as coisas"
(Ferbnando Pessoa).

As coisas não existem.
O que existe é a idéia
melancólica e suave

que fazemos das coisas.

A mesa é feita de amor
e de submissão.
No entanto
Ninguém a vê
como eu a vejo.
Para os homens
é feita de madeira
e coberta de tinta.
Para mim também
mais a madeira
somente lhe protege o interior
e o interior é humano.

Os livros são criaturas
Cada página um ano de vida,
cada leitura um pouco de alegria
e esta alegria
é igual ao consolo dos homens
quando permanecem inquietos
em resposta às suas inquietudes.

As coisas não existem
A idéia, sim.

A idéia é infinita
igual ao sonho das crianças.

(In. Baladas. São Paulo: Globo, 2003, p. 91-2).