Ás vezes a convivência consigo mesmo se torna difícil. São aquelas horas perdidas na noite, em que uma vaga tristeza, um cansaço sem sono, uma grande saudade e uns tragos a mais ajudam a aprofundar uma depressão que já é quase estrutural.
Normalmente trato de dormir, sair, ler, tomar outros tragos, tirar o peso de cima.
Hoje é uma dessas noites. Depois de muito tempo pensando na vida, parece que a única coisa que devo fazer é escrever-te; afinal, pensar na vida hoje significa em grande medida pensar em ti.
A opção pela revolução é um elemento determinante nas coisas que faço, de uma maneira estrutural. Não que eu me considere um supermilitante, e que todos os meus atos de manhã a noite sejam reflexo da minha consciência bolchevique. O fato é que há muito tempo minha preparação principal e minha ocupação quase total se referem a um projeto revolucionário.
Também não quero dizer que todo o meu tempo eu dedico ao trabalho político, já que boa parte desse tempo eu dedico a nada. Depois de quase dois anos em Paris, consumindo-me no trabalho, na gráfica e em reuniões e mais reuniões de todos os tipos com produtividade política absolutamente insatisfatória, eu estava buscando uma alternativa.
Mudar de vida, de tipo de vida como única maneira de me inserir num projeto politico realmente sério e viável".
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(In. Filme Diário de uma busca - de Flávia Castro).
"Então, um dia, Olivia, a única italiana do prédio, habitado quase que só por porto-riquenhos, decidiu que seria minha amiga e começou a contar a história da sua vida em capítulos. Olivia era uma autêntica solteirona. Tinha uns sessenta anos, era baixa e gorda, dando a ideia de um tijolo. Seu cabelo era pintado de preto-azulado, e na rua ela usava uma capa preta horrível batendo nos tornozelos e uma boina escocesa vermelha (...). Toda vez que eu subia as escadas o apartamento de Olivia estava aberto, e ela me convidava para bater papo, o que significava que me contaria mais uma parte da história da sua vida.
(...) Na última vez em que fui lá, Olivia nem me ofereceu café solúvel antes de começar a falar, numa voz entrecortada, como se o ar estivesse preso no peito. Percebi que naquele dia chegaríamos ao ponto importante da sua história.
- Minha vida foi arruinada. Está vendo esses sapatos pretos horríveis? São sapatos ortopédicos. Você nunca notou como eu ando? Devagar, como o tique-taque do relógio. As crianças caçoavam de mim quando a gente ia para a escola. Eu nunca podia manter o mesmo paço que elas. Nunca me casei por causa dos meus pés. Falo três línguas mas nunca viajei. Desisti de ser religiosa porque sou muito amarga.
Naquela noite, fui acordada com um bater de asas histérico. Um pardal estava voando dentro da minha sala, batendo nas paredes, esbarrando a cabeça no teto. Como eu não conseguia ver o passarinho, muito menos pegá-lo, chamei Jason.
Ele encurralou o pardal na prateleira de baixo da estante de livros e pegou-o com as mãos em concha. Olhou para o bichinho um instante, fez um carinho na sua cabeça com o dedo, esticou a mão na janela e o passarinho saiu voando.
Quando voltei para a cama não consegui mais dormir. Fiquei pensando nos passarinhos que saíam dos ninhos voando e ficavam presos em algum lugar. Depois me lembrei dos pés de Olivia, que lhe haviam atrapalhado a vida. Na verdade, ela é que tinha atrapalhado sua vida pensando nos pés.
Durante metade da minha vida, desde que fiquei grávida, sempre pensei que Jason tinha atrapalhado a minha vida. Mas essa era uma forma de ver as coisas. Outra forma era achar que Jason havia enriquecido a minha vida, e talvez evitado que eu entrasse em mais encrenca. Com um filho para cuidar, por pior que eu agisse, tinha que manter pelo menos um pé no chão, sempre. Talvez eu tenha tido vantagem com isso. Talvez nunca tivesse oportunidade de ir para a faculdade se não fosse uma mãe vivendo à custa do seguro social. Talvez não me sentisse tão mais velha agora se não tivesse tido um filho; ao ser forçada a crescer depressa, me rebelei e me mantive criança muito mais tempo, o que contribuiu para minha vida boêmia (que começava a ficar fora de moda na metade da década de oitenta) e minha falta de dinheiro (idem), mas também manteve minhas perspectivas frescas, com amigas que queriam comprar Harley-Davidsons aos 45 anos de idade, e uma porção de interesses focalizados na alegria.
Jason tinha arruinado ou enriquecido a minha vida. A escolha era minha. A gente passa por umas coisas na vida que não pode controlar, portanto é melhor aprender com elas do que se deixar vencer por elas. Como Olivia, cheia de fel e amargura num apartamento branco brilhante, sozinha com passarinhos presos na janela".
(In. Os garotos da minha vida. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 193-195).
"Elisabeth: - Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.
Lota: - Mas por quê?
Elisabeth: - Porque quando eu não tenho o que quero eu me sinto sozinha e triste...e quando eu tenho o que quero tenho certeza que vou perder. E a espera é insuportável".
"Se aprende a palavra pensar, e sabe-se como usá-la, mas, dependendo das circunstâncias, não se pode descrevê-la".
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"E tem de errar muitas vezes, para não voltar a errar...".
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" - Pai, qual é o melhor modo de saber se alguém é digno de confiança?
- Pergunte: "O que você leu"? Se responder: " Homero, Shakespeare, Balzac", então não é digno de confiança. Mas se responder: "Depende do que você quer dizer com ler", então há esperança".
Link para o curta de Godard na íntegra e legendado no youtube:
"Eis uma história apaixonante acontecida com uma psicanalista já falecida. Ela ilustra de maneira exemplar como uma criancinha compreende e grava as palavras sonoras de uma língua desconhecida; como essas mesmas palavras reaparecem - anos mais tarde - no corpo dessa criança ao tornar-se adulta; e como, enfim, o psicanalista desse mesmo adulto pode, por sua vez, recolher essas palavras deixando-as inscreverem-se nele, em sua própria imagem de corpo de analista. Em primeiro lugar, devo esclarecer que pouco antes de sua morte, a psicanalista Muriel Cahen me pediu que expusesse publicamente a experiência que vou lhes contar; experiência fulgurante que atravessamos juntas, ela como analisanda, eu como sua psicanalista. Sabendo-se gravemente acometida pela doença de Hodgkin e submetida a um terrível tratamento químico à base de cortisona, ela veio me consultar depois que seu antigo analista preferiu não retomar seu tratamento. Recebi-a então durante seis meses; os últimos seis meses de sua vida. Apesar da consciência aguda de sua doença, ela ignorava o prognóstico irremediavelmente fatal que a condenava. Durante essa época extremamente dolorosa, sua atividade como psicanalista prosseguira sem descanso, com uma força e coragem admiráveis.
Um dia, durante uma sessão, ela apresentou um sonho em que as palavras bizarramente pronunciadas destacavam-se nitidamente do contexto geral do sonho. Mais que palavras, tratava-se de uma série de sons incompreensíveis. Lembro-me muito bem da exclamação que se seguiu ao relato de seu sonho: "Eu ignorava que era possível sentir a felicidade que senti nesse sonho e com uma sonoridade tão curiosa". Tenho o hábito de escrever tudo o que acontece e se diz em uma sessão de análise. É cômodo para mim, pois, se minha mão escreve, eu, por minha vez, fico completamente livre para pensar. Minha mão escreve, e eu penso. Então, naquele dia, registrei as palavras de sonoridade estranha. Antes do fim da sessão, lembrei-me de que Muriel, nascida em Londres, vivera os primeiros nove meses de sua vida na ìndia. Seu pai, funcionário inglês em missão nesse país, contratara uma moça hindu para cuidar do bebê. Pouco a pouco estabeleceu-se um tal laço afetivo entre a babá e a criança que o pai cogitava levar a jovem com eles para a Inglaterra. Esse plano verificou-se impossível, e a pequena Muriel teve de abandonar definitivamente sua primeira babá. Aparentemente, esse separação não marcara a criança.
A lembrança desses primeiros meses da vida de Muriel Cahen associou-se às palavras do sonho que eu registrava no papel. Quando a sessão terminou, e no momento da despedida, eu olhe disse, entregando-lhe o papel no qual transcrevera aqueles fonemas estranhos: "Eis a frase tal como a escutei e anotei. Seria mesmo curioso se os sons, ouvidos no sonho, fossem palavras derivadas da língua do país onde você viveu os primeiros meses". Essa idéia agradou-a tanto que ela foi consultar um residente hindu da cidade universitária que acabou apresentando-a a um compatriota que falava o dialeto da região onde o pai de Muriel exercera sua missão. Ao ler as palavras inscritas no papel, o estudante hindu começou a rir, explicando a Muriel que aquelas palavras correspondiam exatamente a uma expressão popular empregada pelas babás para ninar os bebês: "Os olhos da minha menininha são os mais belos que as estrelas". Alguns dias mais tarde, a doença de Muriel agravou-se com o surgimento de uma paraplegia indolor. Suas pernas não a carregavam mais, estavam tão imaturas quanto as de um bebê de colo (...). No sonho de Muriel, as palavras de sonoridade bizarra bão representavam justamente a articulação que liga a imagem do corpo do bebê - inacabada no nível do esquema corporal da bacia e das pernas - à imagem suporte da jovem hindu, verdadeira mãe portadora da criança antes que esta soubesse andar? Ora, a alegria indizível experimentada no sonho não passava do retorno da ternura fusional entre uma mãe portadora que fala e um bebê imaturo que sabe escutar" -
(In. A criança do espelho. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.56-9).
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No filme "O dia em que não nasci", a atleta alemã Maria, de passagem pelo aeroporto da Argentina, ouve uma mulher entonar uma canção de ninar em espanhol, e sem que compreenda, aquilo a abala profundamente; movida pelo que Freud chamaria de Unheimlich, Maria fica em Buenos Aires e empreende uma busca aparentemente sem sentido que acaba por revelar a sua verdadeira origem - Maria era filha de pais argentinos que haviam sido vítimas da ditadura de Pinochet, e fora adotada por alemães.
A primeira coisa agradável que me aconteceu em muito tempo.
A primeira pessoa cuja companhia eu suporto.
Toda a minha vida é uma desordem.
Uma nulidade" -
(Ben para Elaine).
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Curiosidade: "Quando o filme foi lançado em Portugal, os censores do então regime ditatorial cortaram o final. Ou seja, o longa terminava com Benjamin atrás do vidro da igreja, vendo Elaine se casar. A idéia era não deixar passar nenhum mau exemplo para a juventude - no caso, o da jovem abandonando o altar".
(Do Livreto "A primeira noite de um homem" - da cinemateca Veja. São Paulo: Editora Abril, 2008, p.51).
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O trecho censurado em Portugal:
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"The sound of silence", de Paul Simon and Garfunkel - tema do filme:
- Eles gostam do que a ciência nos dá, mas não das perguntas que ela faz.
- Eu tenho uma pergunta.
- Haaaaaa.....é por isso que você é um cientista.
- Eu estava fazendo meu projeto. E da primeira vez deu super certo. Mas da segunda vez não. Tipo, meio que funcionou, mas não deu, e eu não sei o porquê.
- Talvez não tenha entendido direito da primeira vez. As pessoas acham que a ciência está aqui [na mente], mas ela também está aqui dentro [do coração]. Na primeira vez, amava seu experimento?
- Vamos deixar uma coisa bem clara. Nunca vou ficar bem. Certo? Sou um caso perdido. Uma aberração, como você. Não esquenta. Acho que ser uma aberração é meio legal.
- É?
- É melhor do que ser uma ovelha como o resto deles. Por que todo mundo quer ser como todo mundo?
"Nossos corações não precisam de lógica. Eles podem amar, perdoar e aceitar o que nossas mentes não conseguem entender. Corações entendem de maneiras que a mente não consegue" - Lois Wilson
"Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.62).