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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Terceira - Anna Akhmatova

"A mim, como a um rio,
A época severa desviou-me.
A mim substituíram-me a vida. Para outro curso,
Passou a fluir perto de outro,
E eu as minhas margens não conheço,
Oh, quantos espetáculos eu perdi,
E a cortina erguia-se sem mim
E sem mim caía. Quantos amigos
Meus nenhuma vez na vida encontrei,
E quantos contornos de cidades
Aos meus olhos poderiam fazer vir lágrimas,
Mas eu conheço uma única cidade no mundo
E às cegas encontrá-la-ia no sono.
E quantos versos não escrevi,
 E o seu coro secreto vagueia em meu redor,
E, talvez ainda em qualquer altura
Me estrangulem...
Por mim são conhecidos os princípios e os fins,
E a vida depois do fim, e algo
Que não vale a pena lembrar agora.
E uma mulher qualquer o meu
Lugar único ocupou,
Leva o meu nome legítimo,
Tendo-me deixado a alcunha, da qual,
Eu fiz, julgo, tudo o que foi possível.
Eu não me deito, ah, no meu túmulo.
*
Mas por vezes o travesso vento primaveril,
Ou a combinação das palavras num livro de acaso,
Ou o sorriso de alguém puxam-me de repente
Para a vida que não se realizou.
Nesse ano teria acontecido isso e aquilo,
Nessoutro - isto: viajar, ver, pensar
E lembrar, e em novo amor
Entrar, como num epselho, com a consciência obtusa
Da traição e com, ontem não a tinha,
Uma pequena ruga...
Mas se eu olhasse de algures
Para a minha vida de agora,
Teria finalmente conhecido a inveja...
*
(2/9/1945 - Leningrado)



(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.77).

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