Lacan iniciou o seu "retorno a Freud" com a leitura linguística de todo o edifício psicanalítico, sintetizada no que é talvez sua fórmula isolada mais conhecida: "o inconsciente está estruturado como uma linguagem". A percepção predominante do inconsciente é a de que ele é o domínio das pulsões irracionais, algo oposto ao eu consciente e racional. Para Lacan, essa noção do inconsciente pertence à Lebensphilosophie (filosofia de vida) romântica e que nada tem a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tamanho escândalo não por afirmar que o eu racional está subordinado ao domínio muito mais vasto dos instintos irracionais cegos, mas porque demonstrou como o próprio inconsciente obedece à sua própria gramática e lógica: o inconsciente fala e pensa. O inconsciente não é terreno esclusivo das pulsões violentas que devem ser domadas pelo eu, mas o lugar onde uma verdade traumática fala abertamente. Aí reside a versão de Lacan do moto de Freud Wo es war, soll ich werden (Onde isso estava, devo eu advir): não "O eu deveria continuar o isso", o lugar das pulsões inconscientes, mas "Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade". O que mes espera "ali" não é uma Verdade profunda com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportável com a qual devo aprender a viver.
Como, então, as idéias de Lacan diferem das escolas psicanalíticas convencionais de pensamento e do próprio Freud? Com relação a outras escolas, a primeira coisa que chama a atenção é o teor filosófico da teoria de Lacan. Para ele, fundamentalmente, a psicanálise não é uma teoria e técnica de tratamento de distúrbios psíquicos, mas uma teoria e prática que põe os indivíduos diante da dimensão mais radical da existência humana. Ela não mostra a um indivíduo como ele pode se acomodar às exigências da realidade social; em vez disso, explica de que modo, antes de mais nada, algo como "realidade" se constitui. Ela não capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Na visão de Lacan, formações patológicas como neuroses, psicoses e perversões têm a dignidade de atitudes filosóficas fundamentais em face da realidade. Quando sofre de uma neurose obsessiva, essa "doença" colore toda a minha relação com a realidade e define a estrutura global da minha personalidade. A principal crítica de Lacan a outras abordagens psicanalíticas diz respeito à sua orientação clínica: para Lacan, o objetivo do tratamento psicanalítico não é o bem-estar, a vida social bem-sucedidada ou a realização pessoal do paciente, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas e os impasses essenciais de seu desejo.
Com relação a Freud, a primeira coisa que chama a atenção é que a chave usada por Lacan em seu "retorno à Freud" vem de fora do campo da psicanálise: para descerrar os tesouros secretos de Freud, Lacan arregimentou uma tribo variada de teorias, da linguística de Ferdinand de Saussure à teoria matemática dos conjuntos e às filosofias de Platão, Kant, Hegel e Heidegger, passando pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Disto decorre que a maior parte dos conceitos essenciais de Lacan não tem um equivalente na própria teoria freudiana: Freud nunca menciona a tríade do imaginário, simbólico e real, nunca fala sobre "o grande Outro" como a ordem simbólica, fala de "eu", não de "sujeito". Lacan usa esses termos importados de outras disciplinas como instrumentos para fazer distinções que já estão implicitamente presentes em Freud, mesmo que ele não tivesse conhecimento delas. Por exemplo, se a psicanálise é a cura pela fala, se trata distúrbios patológicos somente com palavras, tem de se basear numa certa noção da fala. A tese de Lacan é que Freud não estava ciente da noção de fala implicada por sua própria teoria e prática, e que só podemos desenvolver essa noção se nos referirmos à linguistica saussuriana, à teoria dos atos da fala e à dialética hegeliana do reconhecimento.
O "retorno a Freud" de Lacan forneceu um novo alicerce teórico para a psicanálise, com imensas consequências também para o tratamento analítico. Controvérsia, crise e até escândalo acompanharam Lacan ao longo de toda a sua carreira. Ele não só foi obrigado a se desvincular da Associação Internacional de Psicanálise em 1963, como suas idéias provocativas incomodaram muitos pensadores progressistas, de marxistas críticos a feministas. Embora seja usualmente percebido na academia ocidental como um tipo de pós-modernista ou desconstrucionalista, Lacan escapa dos limites indicados por esses rótulos. Ao longo de toda a sua vida ele foi superando rótulos associados ao seu nome: fenomenologista, hegeliano, heideggeriano, estruturalista, pós-estruturalista; não admira, uma vez que o traço mais importante de seu ensinamento é a auto-crítica permanente.
Lacan era um leitor e intérprete voraz; para ele, a própria psicanálise é um método de leitura de textos, orais (a fala do paciente) ou escritos. Não há maneira melhor de ler Lacan, então, que praticar seu modo de leitura e ler os textos de outros com Lacan.
(...) Em suas Notas para uma definição de cultura,T.S. Eliot observa que há momentos em que a única escolha se dá entre sectarismo e descrença, momentos críticos em que a única maneira de manter uma religião viva é levar a cabo uma dissidência sectária de seu corpo principal. Por meio dessa dissidência sectária, dissociando-se do cadáver em deterioração da Associação Internacional de Psicanálise, Lacan manteve o ensinamento freudiano vivo. Cinquenta anos depois, compete a nós fazer o mesmo com Lacan (Zizek, 2010, p.9-13).
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