A complexidade de Eros revela-se de forma pungente quando atentamos para o fato de que ele atravessa vários períodos da produção literária grega, sendo objeto de atenção de diversos tipos de relatos míticos. Eros figura desde a poesia arcaica de Hesíodo; passando pelos poetas líricos (...) pela poesia trágica,com Sófocles; até chegar aos discursos filosóficos de Platão, onde no Simpósio, ou Banquete, o deus é por excelência o objeto do festivo debate de idéias.
Como o quarto na linhagem de deuses primordiais, é tal qual seus antecessores Caos, Terra (Ghéia) e Tártaro, Eros não é gerado por dois seres sexuados, como o serão as demais divindades, especialmente as olímpicas. Eros surge do vazio, de Caos, ou de sua própria potência geradora. Tais divindades geram a partir de si próprias, dando-se elas mesmas à luz. Dessa reflexividade resulta que do um geram-se dois, onde o um é a marca do Todo, de plenitude, de abundância, da ausência da falta e privações, marca que se afasta do universo humano, mas que, ao mesmo tempo, marca uma de suas maiores aspirações ou, em um vocabulário psicanalítico, de suas pulsões.
Esse Eros primevo em muito difere de outro, mas tarde e mais comumente conhecido como Eros, filho de Afrodite (...). A origem desse segundo Eros dá notícia de divisões, de perdas, de relações que passam pela diferença sexual. Sua mãe, Afrodite, nasce dos testículos do pai, Uranos, atirados ao mar pelo filho Crónos (...). Filha da divisão, da castração, sua missão será atrair, aproximar, uir seres que estão igualmente marcados pela divisão, para que os dois possam gerar um, que é três.
Podemos ver, nessa dualidade de Eros, traços de algo que será muito caro a Freud em sua construção da Psicanálise: a dualidade pulsional. Dada a complexidade da teoria das pulsões, destacaremos aqui apenas alguns aspectos da relação dessa teorização que identificamos no pensamento mítico grego.O primeiro deles nos é dado pelo próprio Freud na conferência XXXII das Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933), quando diz que "a teoria das pulsões é nossa mitologia" e que as pulsões "são entidades míticas, magníficas em sua indeterminação". (...) Esse princípio energético, que ocupa a zona fronteiriça entre o somático e o psíquico (...) permanece até o final da obra de Freud sob a ótica de dois princípios basais: o das pulsões sexuais e o das pulsões de destruição. A esses dois princípios Freud vai chamar, respectivamente, de Eros e Tânatos. Remontando ao primeiro Eros, podemos encontrar as principais características que Freud atribuiu à última modalidade de dualismo pulsional. Antes de olharmos mais de perto, vejamos o segundo Eros.
Este, enquanto filho e servidor de Afrodite, partilha da função dela - a de aglutinar a multiplicidade de indivíduos; ou melhor, ele visa a unir os fragmentos dispersos, não de indivíduos (não-divididos), mas de seres divisos, castrados, como fora o pai de Afrodite. As ações do jovem Eros, portanto, pressupõem que haja falta, incompletude, para haver atração, desejo (que, em grego, chama-se também, e não gratuitamente, Eros). Temos essa idéia reiterada no Banquete, de Platão, ao situar a genealogia de Eros como filho de Penia, da Pobreza. O filósofo sublinha uma dimensão do amor que mais tarde, a psicanálise vai ecoar tanto com Freud quanto com Lacan, a dimensão narcísica, na medida em que, na relação amorosa, um busca no outro amado justamente o que lhe falta.
O primeiro Eros, por sua vez, mais do que evocar, parece encarnar uma "nostalgia por uma unidade perdida" (...). Sua autogênese é indicativa desse mo(vi)mento na medida em que nos revela traços que serão mais tarde (c.séc. VI a.C) explicitados pelo Eros órfico: ele é macho e fêmea ao mesmo tempo, com dois pares de olhos que podem olhar em todas as direções, além de muitas cabeças. Sendo Todo, tal Eros busca voltar à completude do Todo, busca a supressão de toda falta ou penúria, o retorno a um estado de satisfação plena. a esse tipo de movimento Freud caracterizou como o retorno ao estado inanimado, como supressão de qualquer nível de tensão ou como estado de Nirvana. E é justamente ele que está na visada da pulsão de morte, de Tânatos (Thánatos, morte em grego), como Freud também vai nomeá-la. (...) Eros é duplo, é aquele que engendra e desfaz, é o "tecelão de mitos", o mythóplokos, que, com sua astúcia, tece redes de sedução, de enganos; como também, em última instância, dá nome a essa outra força primordial que nos leva a buscar Nirvana.
Talvez por isso que Sófocles, em sua Antígona, o tenha descrito como "Eros invencível na batalha...Nenhum dos imortais te pode escapar, nem tampouco os mortais, e aquele que te possui é louco". Na visão trágica de Sófocles, Eros, aquele que ao mesmo tempo repousa "sobre o rosro de uma donzela", "promove a discórdia entre aqueles do mesmo sangue". Sobretudo, como imortal, Eros sobrepõe-se aos próprios imortais, é uma força que nem os não-mortais (os que negam a mortalidade) podem subjugar, aniquilar, matar. Sob a ótica trágica, podemos retomar o dualismo pulsional de Freud não mais em termos de "vida x morte", mas de vidamorte, e ressoar o Freud de Mais além do princípio do prazer. Há aí, fundamentalmente, um movimento pulsional por excelência, que busca a repetição de uma experiência primordial de satisfação. Isto é a primazia da pulsão de morte em sua complexidade dialética. Como encena a trágica figura de Antígon, e a psicanálise mais tarde reafirma, a reedição dessa satisfação total está paradoxalmente fadada ao fracasso, uma vez que seu objeto é desde sempre perdido (...).
O paradoxo, figura por excelência do inconsciente figura uma vez mais no pensamento mítico grego, que Heráclito expressou tão bem no fragmento 51: "Eles não compreendem como o que está em desacordo concorda consigo mesmo: há uma conexão de tensões opostas, como no caso do arco e da lira".
(In: Mito e Psicanálise. Ana Vicentini de Azevedo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p.27-32).
Nas figuras: Eros, deus do amor, palavra que em grego também define o desejo.
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