Inda lembro...lá se vão vinte e um, talvez vinte e dois anos. Manhã ensolarada.
Era domingo, pois meu pai mergulhado na poltrona da sala e cercado de papéis por todos os lados, com uma calculadora no colo, refletia sobre complicadas operações de balanço da empresa onde trabalhava, que lhe pagava muito mal, razão de seu sorriso tão melancólico. Isso só vim a compreender anos mais tarde.
Minha mãe...bem, minha mãe não lembro ao certo onde estava.
Eu brincava com uma bola no quintal; chutava de um lado e depois corria, para pegá-la do outro; não me recordo o porquê de estar do lado de fora da casa, pois em geral eu me espalhava com meus lápis pelo chão da sala e coloria revistas infantis; do enorme esforço que fazia para brincar em silêncio, disso eu lembro.
Foi quando meu avô assomou no muro:
- Que fazes sozinha aí?
- Brincando, vô.
- Não parece, pois não estás com cara de feliz.
- Não?
- Quero que vá lá dentro, e avise tua mãe que vou te levar pra minha casa. Vamos passar um tempo lá.
Lembro de ter entrado e dito algo a minha mãe enquanto ela prendia o cabelo num coque (naquele tempo ela tinha cabelos); lembro da resposta ríspida, como quem não ouve ou não dá importância ao que está sendo dito.
Corri para os braços do meu avô;ele me colocou nas costas e me levou para a casa dele, a dois quarteirões dali (era o tempo em que morávamos separados).
Lá chegando, fomos riscar com giz de cera a parede da sala; eu adorava, e continuava, alheia aos protestos de minha avó, a riscar, riscar, riscar....meu avô me acompanhava.
- Deixe a menina ser livre...depois lavamos a parede, como sempre.
- Mas tu não vês que são apenas rabiscos?
- Não diga "apenas". Estamos nos comunicando.
Meu avô, que nunca havia lido Winnicott...
Minha avó, que odiava cozinhar, e cujo mal-humor era uma constante, serviu o almoço.
- Não será melhor avisar que a menina vai comer aqui? Não ficarão preocupados?
- Deixe a menina comer. Em tempo, virão atrás dela.
Enquanto comia, eu olhava intrigada para o meu avô misturando suco de laranja ao de manga. Naquela época, não havia Tangs nem Ades nem seja lá o que for de todos os sabores.
- Por que se contentar com um só, quando podemos experimentar todos? Era o que respondia meu avô a cara de nojo que fazia minha avó. Ele também costumava misturar coca-cola com suco de limão, décadas antes da multinacional comercializar tal produto. Devia ter patenteado a idéia, pois, para mim, aquilo era muito mais significativo que o escorredor de arroz do qual minha mãe falava tão maravilhada...
- Não costumam brincar contigo?
- Não, vovô. Acho que não gostam de mim.
- Bobagem. Eles são muito sérios, apenas isso. Eles tanto te amam que logo se darão conta da tua falta, e virão atrás de você. Aquilo que mais amamos é o que mais nos dá conta da falta...
Meu avô, que nunca havia lido Lacan...
Não sei como dar fim a esse texto...mas também, que mania esta do ser humano de colocar termo ao que não tem fim...talvez possa dizer, contudo, algo do muito que aprendi com meu avô: sentidos da alma, "sempre alertas"; do contrário, não se poderá chamar de vida seja lá o que for que estivermos experimentando...
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