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terça-feira, 3 de setembro de 2013

O inconsciente estético - Jacques Ranciere

Não se tratará, aqui, de psicanalisar Freud. As figuras literárias e artísticas por ele escolhidas não me interessam porque remeteriam ao romance analítico do Fundador.
Interessa-me saber a que servem de prova e o que lhes permite servir de... prova. Ora, em sua ampla generalidade, essas figuras servem para provar isto: existe sentido no que parece não ter, algo de enigmático no que parece evidente, uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe anódino. Tais figuras não são o material com que a interpretação analítica prova sua capacidade de interpretar as formações da cultura. Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante. Em suma, se o médico Freud interpreta fatos "anódinos", desprezados por seus colegas positivistas, e pode fazer com que esses "exemplos" sirvam à sua demonstração, é porque eles são em si mesmos testemunhos de um determinado inconsciente" - (p.10-1).
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"Tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. A grande regra freudiana de que não existem "detalhes" desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética. Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios.
Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo. (...) o romancista de Os miseráveis nos mergulha num esgoto que diz tudo, como um filósofo cínico, e reúne em pé de igualdade tudo aquilo que a civilização utiliza e rejeita, suas máscaras e insígnias, bem como seus utensílios cotidianos. O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos. Ele afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa ou o esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro, como farão o sonho ou o ato falho - mas também a mercadoria marxiana -, desde que sejam primeiro transformados em elementos de uma mitologia ou de uma fantasmagoria" - (p.36-8).
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"O inconsciente estético, consubstancial ao regime estético da arte, se manifesta na polaridade dessa dupla cena da palavra muda: de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira por um trabal...ho de decifração e de reescrita; do outro, a palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo, mesmo que essa voz anônima e esse corpo fantasmagórico arrastem o sujeito humano para o caminho da grande renúncia, para o nada da vontade cuja sombra schopenhaueriana pesa com toda força sobre essa literatura do Inconsciente" - (p.41).
 
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"a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho - bobo ou sujo por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da "fantasia", que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica" - (p.47-8).
 
(O inconsciente estético. Jacques Ranciere. São Paulo: Editora 34, 2009).



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