"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violácio, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo..." - (p.7).
"...meu irmão chorava a minha demência, discretamente, longe de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho da lúcida escuridão; eu quis dizer para ele "tempere nesta mão a viz potente, a ternura contida, a palavra certa, corra com ela meus cabelos, afague-os, proteja minha nuca..." - (p. 73-4).
"Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto?" - (p.84).
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"...quantas mulheres, quantos varões, quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!" - (p.88).
"...nenhum espaço existe se não for fecundado, como quem entra na mata virgem e se aloja no seu interior, como quem penetra num círculo de pessoas em vez de circundá-lo timidamente de longe..." - (p. 87).
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"...que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória..." - (p.97).
"Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome, explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos" gritei de minha boca escancarada, expondo a textura da minha língua exuberante..." - (p. 107).
"...eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!) e que fora de mim eu não conhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva..." (p.109).
"...eu não sabia que o amor requer vigília: não há paz que não tenha um fim, supremo bem, um termo, nem taça que não tenha um fundo de veneno; era a minha sabedoria corrente, mas que frivolidade a minha, alguém mais forte do que eu é que puxava a linha e, menino esperto e sagaz, eu tinha caído na propalada armadilha do destino: enfiou seus longos braços no fruto do meu saco, pinçou nos finos dedos o fundo, e súbito, num fechar d´olhos, virou meu doce mundo pelo avesso" - (p. 114).
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"...desde menino, eu não era mais que uma sombra feita à margem do destino, também eu complicava os momentos de um trajeto: construía uma trilha sinuosa com grãos de milho até a peneira, embora a linha que decidisse, escondida sob a areia, corresse esticada numa só reta; por que então esses caprichos, tantas cenas, empanturrar-nos de expectativas, se já estava decidida a minha sina?" - (p.117).
(In. Lavoura Arcaica. Raduan Nassar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
Muito bom!
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