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domingo, 12 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (II)

"...Não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou fenecer, que não fosse acompanhada de fedor.
Naturalmente, em Paris o fedor era maior, pois Paris era a maior cidade da França. E em Paris, por sua vez, um lugar havia onde o fedor imperava de modo infernal, entre a Rue aux Fers e a Rue de la Ferronnerie, ou seja, no Cimetière des Innocents. Ao longo de oitocentos anos, tinham sido para ali trazidos os mortos do hospital Hôtel-Dieu e das comunidades eclesiais das redondezas; ao longo de oitocentos anos, carretas traziam ali, dia após dia, cadáveres às dúzias, jogados em longas covas; ao longo de oitocentos anos, acumulados nas criptas e ossários, camadas e mais camadas de ossinhos. E só mais tarde, às vésperas da Revolução Francesa, depois que algumas das covas haviam desabado rigorosamente e o fedor do saturado cemitério havia levado os moradores das cercanias não mais a meros protestos, mas a verdadeiros levantes, é que ele foi finalmente fechado e transferido, tendo os milhões de ossos e crânios sido enterrados nas catacumbas de Montmartre e, no seu lugar, surgiu uma praça com uma feira livre.
Bem ali, no lugar mais fedorento de todo o reino, foi que nasceu Jean Baptiste Grenoille, a 17 de julho de 1738. Era um dos dias mais quentes do ano. O calor pairava como chumbo por todo o cemitério e empurrava para as ruas vizinhas os gazes da putrefação que cheiravam a uma mistura de melões podres e chifre queimado. Quando as dores começaram, a mãe de Grenoille estava numa peixaria da Rue aux Fers e escamava pescadas, as quais acabara de viscerar. Os peixes, presumidamente recolhidos do Sena naquela manhã, já fediam tanto que o seu fedor se sobrepunha ao dos cadáveres. Mas a mãe de Grenoille não percebia nem o cheiro dos peixes nem o dos cadáveres, pois o seu nariz era praticamente insensível a odores e, além disso, doía-lhe o corpo, e a dor tirava-lhe toda sensibilidade para sensações externas. Queria só uma coisa: que a dor cessasse, e deixar para trás o quanto antes o horror do parto. Era o seu quinto. Os quatro anteriores ou semimortos, pois a carne ensaguentado que dela saíra não se diferenciava muito das vísceras dos peixes que lá estavam atiradas pelo chão, e também não vivia muito mais tempo, e à noite era jogado tudo junto em carretas e levado para o cemitério ou lá para baixo do rio. Assim deveria também ocorrer hoje. A mãe de Grenoille era uma mulher ainda jovem, nos meados dos vinte anos, que além de gota e de sífilis e de uma leve tísica, não tinha nenuma doença grave; esperava ainda viver muito tempo, talvez uns cinco ou dez anos, e até um dia casar e ter de verdade filhos, como a honrada esposa de um artesão enviuvado ou coisa parecida...
A mãe de Grenoille queria que tudo já estivesse acabado. E quando as dores se tornaram mais intensas, ela se acocorou debaixo da mesa de limpar peixe e lá pariu, como já das quatro outras vezes, e cortou com a faca de peixe o cordão dessa "coisa recém-nascida". Em seguida, porém, por causa do calor e do mau cheiro, que ela só percebia como algo insuportável, anestésico (...) ela desmaiou, caiu de lado, resvalou debaixo da mesa para o meio da rua e lá ficou, com a faca na mão (...); lentamente, ela recobra os sentidos.
O que lhe teria acontecido? Nada. O que estaria fazendo com a faca? Nada. De onde viria o sangue de sua saia? Dos peixes.
Ela se levanta, joga fora a faca e vai se lavar.
Nesse instante, contrariando as expectativas, a "coisa recém-nascida" começa a chorar debaixo da mesa de limpar peixe. Procura-se, encontra-se o bebê num enxame de moscas e entre vísceras e cabeças de peixe, é puxado para fora. Ex-officio ele é entregue a uma ama, a mãe é presa. E porque ela é ré confessa e sem delongas reconhece que por certo teria deixado a coisa perecer, como aliás já fizera com quatro outros, é processada, condenada por múltiplo infanticídio e, poucas semanas mais tarde, é decapitada na Place de Grève".
(In: O perfume - história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.11-3).


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