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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (III)

Para o pequeno Grenoille, o estabelecimento de Madame Gailard foi uma benção. Provavelmente não teria sobrevivido em nenhum outro lugar. Mas aí, junto a essa mulher tão pobre por dentro, deu-se bem. Quem, como ele, tinha sobrevivido ao proóprio nascimento no lixo não se deixava expulsar tão facilmente do mundo. Era capaz de comer sopa aguada dias e dias, sobrevivia com o leite mais diluído, suportava os legumes e as carnes mais podres. Ao longo da infância, sobreviveu ao sarampo, disenteria, varicela, cólera, a uma queda de seis metros num poço ea queimadura no peito com água fervente. É verdade que trazia disso cicatrizes, arranhões, feridas e um pé meio aleijado que o fazia capengar, mas sobreviveu. Era duro como uma bactéria resistente e auto-suficiente como um carrapato colado numa árvore, que vive de uma gotinha de sangue sugada ano passado. Precisava de um mínimo de alimentação e vestimenta para o corpo. Para a alma, não precisava de nada. Calor humano, dedicação, delicadeza, amor - (...) eram completamente dispensáveis para Grenoille. Ou então, assim nos parece, ele as tinha tornado dispensáveis simplesmente para poder sobreviver. O grito depois do seu nascimento, o grito sobre a mesa de limpar peixe, o grito com o que ele se tinha feito notar e e levado a mãe ao cadafalso, não fora um grito instintivo de compaixão e amor. Fora bem pensado, quase se poderia dizer um grito maduramente pensado e pesado, com que o recém-nascido se decidira contra o amor e, mesmo assim, a favor da vida. Nas circunstâncias, isto era impossível sem aquilo e, se a criança tivesse exigido ambos, então teria, sem dúvida, fenecido miseravelmente. Também teria podido, no entanto, escolher naquela ocasião a segunda possibilidade que lhe estava aberta, calando e legando o caminho do nascimento para a morte sem desvio pela vida, e assim teria poupado a si e ao mundo uma porção de desgraças. Mas, para se omitir tão humildemente, teria sido necessário um mínimo de gentileza inata, e isto Grenoille não possuía. Foi um monstro desde o início. Ele se decidiu em favor da vida por pura teimosia e maldade.
Obviamente, não se decidiu, é claro, como se decide um adulto, usando razão e experiência mais ou menos grandes, para escolher entre as diferentes opções. Decidiu-se de um modo vegetativo, assim como um feijão jogado fora decide se deve germinar ou deixar para lá.
Ou como um carrapato em cima de uma árvore, ao qual a vida não oferece outra coisa senão uma hibernação permanente (...).
Esse carrapato era Grenoille. Vivia encapsulado em si mesmo, à espera de melhores tempos. Ao mundo não dava senão as suas fezes; nenhum sorriso, nenhum grito, nenhum brilho nos olhos, nem sequer um cheiro próprio. Qualquer outra mulher teria repelido esse menino monstruoso. Mas não Madame Gaillard. Ela não sentia que ele não tinha chiero nenhum, e ela não esperava qualquer manifestação afetiva dele, pois a sua própria afetividade estava bem lacrada".
(In: Perfume - a história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.24-6).

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