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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Holocausto brasileiro - Daniela Arbex (trecho)

"Antônio Gomes da Silva, sessenta e oito anos, foi um dos pacientes encaminhados para o hospital, aos vinte e cinco anos. Há poucos registros sobre o passado de Cabo, como Antônio foi apelidado. O que se conta sobre ele é que o desemprego se somou à bebedeira em sua prisão. Hoje, passados mais de quarenta anos do episódio, o Cabo não sabe mais o motivo pelo qual foi mandado para o Colônia pela caneta de um delegado no dia 3 de janeiro de 1969.
- Não sei por que me prenderam. Cada um fala uma coisa. Mas, depois que perdi meu emprego, tudo se descontrolou. Da cadeia, me mandaram para o hospital, onde eu ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavanderia. Vinha tudo num caminhão, mas acho que eles queriam economizar. No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acostumava. Se existe inferno, o Colônia era esse lugar.
Antônio fala baixo, quase como se não quisesse lembrar. Tem o rosto apoiado às mãos, e, apesar da estatura alta, parece querer esconder-se de si mesmo. Dentro da unidade, manteve-se calado durante vinte e um dos trinta e quatro anos em que ficou internado. Considerado mudo, soltou a voz, um dia, ao ouvir a banda de música do 9 Batalhão da Polícia Militar.
- Por que você não me disse que falava? - perguntou um funcionário da unidade, surpreso com a novidade.
- Uai, ninguém nunca perguntou.
Cabo também passou a vida assinando documentos com as digitais. Até descobrirem que ele sabia escrever o próprio nome. Deixou o hospital em 2003, para morar numa residência terapêutica de Barbacena, uma das vinte e oito casas mantidas pela prefeitura da cidade em parceria com a ONG Instituto Bom Pastor.
Quando se viu fora dos muros do hospital, não sabia como sobreviver sem amarras.
- A que horas as luzes se apagam aqui? - perguntou na primeira noite liberto do cativeiro.
Retirado do convíviio social por quase meio século, ele jamais poderia imaginar que agora era o dono do seu tempo e que tinha ele mesmo o poder de clarear ou escurecer o ambiente com um simples toque do interruptor. Além de nunca ter visto um apagador de luz, ser dono de si era uma novidade para quem viveu décadas de instituicionalização. Para Antônio, no entanto, se desvenciliar do Colônia foi tão difícil quanto mudar de endereço. O hospital estava ali, marcado não só em seu corpo, mas também impregnado na sua alma. Por isso, os pesadelos tornavam seu sono sobressaltado e se repetiam noite após noite. Acordava com o suor umedecendo o pijama e sempre com a mesma sensação de terror. Olhava ao redor para ver onde estava e descobria que os eletrochoques com os quais sonhava ainda o mantinham prisioneiro do Colônia.
Recordava-se sempre do início das sessões, quando era segurado pelas mãos e pelos pés para que fosse amarrado ao leito. Os gritos de medo eram calados pela borracha colocada à força entre os lábios, única maneira de garantir que não tivesse a língua cirtada durante as descargas elétricas. O que acontecia após o choque Cabo não sabia. Perdia a consciência, quando o castigo lhe era aplicado".
(In. Holocausto brasileiro.Daniela Arbex. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p.30-35).
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Booktrailer do livro:
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"Em nome da razão", documentário de Helvécio  Ratton sobre o "Colônia":

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