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segunda-feira, 4 de julho de 2011

Leitura lacaniana do Hamlet

O mote característico: to be or not to be tornou-se popular, embora ninguém entenda bem o sentido. Até parece uma piada. Mas também a tragicidade do lema grego: melhor não ter nascido.
Não é casual que o texto de Hamlet tenha sido escrito logo depois da morte do pai de Shakespeare, em 1601. Digno de nota também é o fato de que Shakespeare perdera um filho precocemente, e que se chamava Hamlet. Não seria possível que o poeta estivesse descrevendo, em sua obra, seus próprios sentimentos, algo autobiográfico?
Na peça, o pai é um rei muito admirável, o ideal tanto de rei como de pai, e que morreu misteriosamente. Teria sido picado por uma serpente, enquanto dormia no jardim, ou teria sido envenenado, pelo ouvido, por uma planta tóxica chamada meimendro.
Detalhe importante: de acordo com a cultura dinamarquesa, ofereceu-se um lauto banquete no dia do enterro do rei. Logo nodia seguinte, Cláudio assume o trono e casa-se com a rainha viúva. Novo banquete comemorativo, no qual se aproveitaram as sobras de comida do dia do enterro.
Na sequência, o pai de Hamlet aparece, então como ghost, fantasma, para revelar ao filho Hamlet as condições de sua morte, pedindo vingança.
Lacan considera insuficiente a hipótese freudiana,segundo a qual, os modernos seriam mais neuróticos do que os antigos. Insatisfatório também é explicar a inibição do herói, pelo fato de que Cláudio realiza o desejo incestuoso de Hamlet, de matar o pai e dormir com a mãe. O desejo pessoal de vingança, somado à ordem expressa do fantasma do pai, seriam mais do que suficientes para que Hamlet agisse. Se não o faz, é que algo de errado acontece em seu desejo.
Qual seria, no registro da consciência, seu desejo? É a sua noiva Ofélia, que ele amava, mas, a partir de então, rejeita-a, e expressa um horror à sua feminilidade. Hamlet não trata mais Ofélia como uma mulher. Segundo Lacan, ela se torna, a seus olhos, a portadora de filhos de todos os pecados, aquela que está destinada a engendrar os pecadores e que sucumbirá sob todas as calúnias. O pai de Ofélia, Polônio, oferece uma interpretação selvagem, dizendo, segundo Lacan: Se Hamlet está melancólico, é porque escreveu cartas de amor para a sua filha, e ele, Polônio, conforme seu dever de pai, ordenou a esta responder rudemente. Dito de outra forma, nosso Hamlet está doente de amor. Ofélia enlouquece e se afoga no riacho, talvez suicidando-se.
Segundo Lacan, a resposta a este imbrólio está, essencialmente, na relação de Hamlet com seu próprio ato. Trata-se de um ato a realizar, e Hamlet depende dele. O que se evidencia, durante toda a peça, é a procrastinbação, típica do neurótico obsessivo, adiando o fato sempre para o dia seguinte. Lacan insiste em que este ato não é o ato edipiano. Hamlet é, desde o início, culpado de ser. Para ele, é insuportável ser.
Acontece que o pai de Hamlet lhe disse, enquanto fantasma, que foi surpreendido pela morte na flor de seus pecados. (Ele foi assassinado no jardim, dormindo). Através da vingança, Hamlet iria ocupar este lugar marcado pelo pecado do outro, um pecado não pago. Ao contrário de Édipo, que não sabia, e que pagou caro, com a própria morte, a morte de sua esposa-mãe e de seus filhos-irmãos, nosso Hamlet sabe, e não pagou o preço de existir.
Então, se ele matar Cláudio, vai ter que pagar o preço com sua vida também. Logo, seu dilema, motivo de sua inibição, é: SER vingador OU NÃO SER vingador. No plano da consciência, escolheu ser, já que fazia tentativas de vingança, mas, na instância inconsciente, decidiu-se pelo não ser, porquanto boiocotava todas as chances reais que se lhe ofereciam.
A dificuldade da escolha é crucial, porque a tragédia está em ambas as alternativas. Se executar a vingança, terá a segunda morte, a morte biológica, como castigo. Se não se vingar, carregará a angústia dos remorsos de consciência, ou seja, a primeira morte, do desejo.
Lacan destaca, então, a questão do desejo, dizendo que o homem não está simplesmente possuído pelo desejo, mas tem que encontrá-lo às suas custas e a duras penas. Ele só o encontrará no limite, numa ação que culmina com a morte.
No encontro de Hamlet com o espectro do pai, este lhe revela o horror do local em que vive um sofrimento insuportável. E lhe dá uma ordem: fazer cesar, de qualquer jeito, o escândalo da luxúria da rainha. Aconselha-o também a se proteger a si mesmo nas relações com sua mãe. Trata-se agora do desejo da mãe. E Hamlet sugere claramente à mãe que não tenha mais relações com Cláudio.
Hamlet planeja surpreender e matar Cláudio na cama. Mas indaga se, com isso, não o estaria levando para o céu, enquanto seu pai penava no inferno. No fundo, Hamlet é cúmplice de Cládio quanto ao desejo da mãe. Ele já cometeu, inconscientemente, o mesmo crime de desejar a mãe, logo, atacar Cláudio é atacar a si mesmo. O desejo pela mãe está recalcado em Hamlet. Ele pensa também no suicídio, mas, da mesma maneira que no homicídio, teria que pagar caro. E assim, to be or not to be recebe outro sentido: eternidade no céu, ou no inferno.
E este desejo, com o qual Hamlet se debate, não é só seu desejo pela mãe, é também o desejo de sua mãe. Quando Hamlet a instiga a retomar o caminho da dignidade e dos bons costumes, ela lhe pergunta: Você quer me matar? Até onde você quer ir? Durante esta conversa, Hamlet percebe alguém se mexendo atrás da cortina. Supondo ser Cláudio, decide que chegou a hora. Com a espada, atravessa, por engano, o corpo de Polônio.
Um dos pontos altos da peça é a cena da luta corporal dentro da cova de ofélia. Hamlet continuava espreitando a chance de matar Cláudio, tendo-se feito até passar por louco, ou por bobo da corte. Mas, como Cláudio se sentia meio responsável pela morte de Ofélia, e incomodado pelo exagerado luto de Laerte, irmão dela e seu desafeto, convida Hamlet para se debater em duelo com Laerte, seu amigo. Hamlet aceita lutar em nome dauqele que, justamente, gostaria de eliminar. E Hamlet mostrou-se exímio na esgrima. Mas Cláudio foi desonesto, mandando colocar veneno mortal na ponta da espada de Laerte. Um simples ferimento condenou Hamlet à morte.
Estamos já no final da peça, e Hamlet, mesmo ferido, elimina Laerte e, depois de 36 tentativas, fica, enfim, livre para realizar seu ato, matando Cláudio. Mas só depois de ter matado outros, por engano, e depois que sua mãe se envenenou, por engano, bebendo o vinho que Cláudio ia oferecer a Hamlet. Com sua morte, Hamlet puniu-se e pagou seus pecados.
Ao dilema shakespereano, Freud, na óptica lacaniana, contrapõe o seu: to have or not to have, ter ou não ter o falo. E Lacan acrscenta que o homem se caracteriza por ter sem ser, e a mulher, por ser sem ter. Toda a questão do Hamlet é ser ou não ser o falo da mãe.
Para a psicanálise, onde está a tragédia paterna em Hamlet? Por algum motivo não declarado, o rei não soube ocupar o lugar de objeto de desejo da rainha, entreando-se facilmente a Cláudio, com o qual ela já devia estar comprometida, por ocasião do assassinato real. Ao sair de cena, e não interditar ao filho o desejo da mãe, o pai abre espaço e induz Hamlet a substituí-lo, vingando-se, e ter que ocupar um lugar proibido e trágico.
(In: Doze lições de Freud à Lacan. Geraldino Alves Ferreira Netto. São Paulo: Pontes, 2010. p.232-5).

Um comentário:

  1. Muito legal seu texto sobre o Hamlet de Lacan Mariana. Estpu trabalhando o seminário 06 e adorei a síntese que você traz aqui. abraços

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