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terça-feira, 25 de agosto de 2020

O que ela sussurra - Noemi Jaffe (trecho)

"O passado é um cobertor rosa que não serve para cobrir nossos corpos. Sempre falta ou sobra uma parte e as memórias se contorcem, são como galhos semimortos presos a raízes parasitas, você e eu. O tempo ultrapassa nossos corpos, mas precisa se agarrar a eles, tomar seu tamanho e hoje meu tempo cabe exatamente em mim, o passado fui eu que inventei. Por que, na alvorada da nova era, no começo mesmo do século XX, eu recebi o nome de Nadejda? Foi esperança que eles quiseram me nomear, para que eu ficasse condenada ao futuro, projetando-me para a frente, quando meu corpo só me puxava para trás. Sou o passado lançado para um futuro, cujo único conteúdo conhecido é continuar a sussurrar teus poemas" - (p.16).
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"É preciso manter alguma irracionalidade, alguma infantilidade quando você está sendo perseguido sem explicação. Não é possível ficar pensando estrategicamente ou manter a seriedade ou o desespero o tempo todo. Tínhamos formas de acreditar que a normalidade era possível e, entre eles dois, espirituosos e sardônicos, o humor fazia o papel de sanidade e até de sobrevivência. Se não mantivessem o riso diante do absurdo, cederiam a ele e perderiam a pouca força que tinham. Óssip cardíaco e Anna viúva com o filho preso" - (p.42).




"Já compreendi que a realidade das coisas é que se molda conforme o desejo, o gosto e a conveniência do intérprete e não o inverso e, nesse caso, tudo é possível, até acreditar na poesia de Óssip, de Pasternak, de Akhmátova e no partido ao mesmo tempo" - (p. 51).

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"Não esperar nada é o que de melhor alguém pode fazer contra qualquer tipo de opressão e só assim fui capaz de sobreviver a tudo" - (p.57).

"Passei mais de vinte anos sussurrando; uma dedicação comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e agora eu entendo que não foi só para proteger os poemas do esquecimento. Foi também para continuar perto dele e ele perto de mim, para que um amor que sempre foi físico e erótico - a noite todas as nossas discordâncias se dissolviam - tivesse uma continuidade também concreta, pela voz e pelo som. Todo poema que falo me faz sentir mais redonda, as sílabas se reunindo na boca, passando pela língua me fazem subitamente bonita, as palavras sendo sopradas pelos círculos de fumaça, que assopro a cada tragada, me transformam rápido numa coquete. É patético, mas ainda tenho uma intimidade, eu que me dediquei a apagá-la" - (p.80).

(In. O que ela sussurra. São Paulo: Companhia das Letras, 2020).

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Para saber mais sobre o livro:



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