"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer por que me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se tivesse encolhido de chofre; o automóvel para bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade ceio de vergonha, prometo corrigir-me. "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais e isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Às vezes isso me perturba, tira-me o sono (...) penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição incômoda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na criança que chora perdida, chamando a mamãezinha.. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que passava na multidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direita nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro - e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p.107).
Nenhum comentário... também publico coisas que escrevo, há alguns anos e, de vez em quando, surge um Comentário! fico triste, macambuzia, cabisbaixa, amuada. Fazer o quê?Nete país textos bons, livros, bibliotecas, estão na seção "arquivo morto" , ou quase. Quando encontramos algo a cópia é vetada! em ... recantodasletras tudo "meu" é para ser visto,nada é proibido. Obrigada.
ResponderExcluirNão podem piblicar o perfil do FBook?
ResponderExcluirTá tudo lindo e profundo❤❤❤
ResponderExcluirLindo!!!!Adoro esse livro!Tradutor de emoções tantas vezes indisíveis!
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