"Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes de paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.
Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento (...).
Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.
Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.
O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de-escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.
Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas" - (pp. 55-56).
(Contos de cães e maus lobos. Valter Hugo Mãe. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2018).