"No genocídio, não é simplesmente o outro que se busca aniquilar, mas seu genos".
O crime de Auschwitz pretendia efetivamente domesticar a seleção natural das espécies, a ponto de substituí-la por uma ciência da raça fundada numa suposta redefinição biológica da humanidade. Como consequência disso, os nazistas haviam se arrogado o direito de decidir quem devia ou não habitar o planeta Terra. Da mesma forma, o mal radical era fruto de um sistema que repousava na idéia de que o homem, enquanto tal, podia ser julgado supérfluo. (...)
Esta é a singularidade de Auschiwitz, diferente de todos os grandes atos de barbárie do século XX - a Kolyma (o gúlag) ou Hiroshima. O nazismo inventou efetivamente um modo de criminalidade que perverte não apenas a razão de Estado, como, mais ainda, a própria pulsão criminal, uma vez que, em tal configuração, o crime é cometido em nome de uma norma racionalizada e não enquanto expressão de uma transgressão ou de uma norma não domesticada. (...).
Convinha então nomear essa singularidade. E eis por que a corte do Tribunal de Nuremberg, que veioa julgar quatro tipos de crimes - crimes contra a paz, de guerra, contra a humanidade, e plano premeditado de cometer um desses três crimes -, adotou o termo genocídio.
O nazismo mostra como um Estado, trabalhando em sentido contrário aos ideais do Iluminismo, pôde perverter-se a ponto de chegar, ao cabo de um confinamento no mal radical, a instrumentalizar a ciência com fins de destruir a própria humanidade. Igualmente, trouxe à tona, a fim de melhor dominá-la, a parte subterrâmea e recalcada de um real dos instintos, dos corpos e das paixões que a civilização não cessara de combater. Sistema perverso, o nazismo terá tido como objetivo eliminar o que ele apontava como um povo de perversos, e, em meio a esse povo, os judeus, julgados mais perversos que os demais.
Nesse aspecto, seu principal representante - o Fuhrer - não foi nada mais, como Kershaw bem assinalou, que uma criatura vazia e inconsistente, cujo único "afrodisíaco" foi exercer um poder sobre os seus próximos, sobre as massas e sobre a Alemanha (...).
Se os místicos haviam alimentado a fantasia de aniquilar o corpo para oferecer a Deus o espetáculo de uma subjugação libertadora, se os libertinos e Sade tinham, contra Deus, promovido o corpo como único lugar do gozo e, por fim, se os sexólogos haviam se inclinado a domesticar seus prazeres e seus furores criando um "catálogo das perversões", os nazistas vieram a levar quase ao seu termo uma espécie de matamorfose estatizada das múltiplas figuras da perversão. Em ssuma, fizeram da ciência o instrumento de um gozo do mal que, escapando a toda representação do sublime e do abjeto, do lícito e do ilícito, permitiu-lhes designar a coletividade dos homens - isto é, a espécie humana - como um povo de perversos a ser reduzido a dejetos contabilizáveis e coisificados: carnes, ligamentos, músculos, ossos, mãos, pele, dentes, olhos, órgãos, pêlos, cabelos.
Compreendemos então por que Adorno se perguntou - com certeza equivocadamente - se era possível "pensar depois de Auschwitz", de tal maneira que a crença numa reconciliação entre a razão e sua parte maldita arriscava-se, mais uma vez, a fracassar.
(In: A parte obscura de nós mesmos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.130-162).
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