"As incursões sexuais pelo caniço não assombravam o seu futuro, porque uma negra não reclamava paternidade. Ninguém lhe daria crédito.
Mas um branco podia, se quisesse, casar com uma negra. Esta ascenderia socialmente, e passar a a ser aceite, com reservas, mas aceite, porque era mulher do Simões, e por respeito ao Simões... Era frequente no caso dos cantineiros e machambeiros afastados da cidade, homens relativamente à parte na sociedade colonial decente, que mais cedo ou mais tarde se cafrealizavam.
Para uma branca, assumir união com um negro, implicava proscrição social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado" - (p. 35).
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"Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida ou por medo. E algumas talvez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a si próprias a guinchar, e abrir as pernas, a ser largas. Uma branca cumpria a obrigação" - (p. 40).
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"O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Se sorrisse, falasse baixo, com a coluna vertebral ligeiramente inclinada para a frente e as mãos fechadas uma na outra, como se rezasse.
Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos!" - (p.43).
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"O prazer de ler um livro amortecia humilhações, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras do jardim. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção nenhuma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a prosperidade do seu corpo, logo, sem existência. Nada nos meus livros, que recorde, estava escrito desta exata forma, mas foi o que li" - (p. 46).
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" A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre" - (p. 127).
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"Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas culpadas. Entre as vítimas há carrascos.
Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensávamos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias de sangue e de raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo." - (p. 136).
(In. Caderno de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2018).
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