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sábado, 15 de fevereiro de 2025

A avestruz - Jacques Prévert

 


"Enquanto o Pequeno Polegar, abandonado na floresta, semeava pedrinhas para depois poder achar o caminho de volta, nem desconfiava que estava sendo seguido por uma avestruz que devorava suas pedrinhas, uma por uma.
Eis aqui a verdadeira história, foi assim que aconteceu...
O jovem Polegar se virou: cadê as pedrinhas?!
Ele estava definitivamente perdido sem pedrinhas, sem volta; sem volta, sem casa; sem casa, sem pai, nem mãe.
"E agora?", murmurou para si mesmo, entredentes.
 De repente, ouviu gargalhadas, e depois o som de sinos, e um barulho de água, trombetas, uma orquestra inteira, zanguizarra de zoeira, uma música brutal, estranha, mas um pouco desagradável, e totalmente nova para ele. Colocou então a cabeça por entre os arbustos e viu uma avestruz dançando; ela olhou para ele, parou de dançar e disse:
A Avestruz: "Sou eu que estou fazendo esse barulho todo, estou tão feliz, meu estômago é magnífico, posso comer qualquer coisa. Hoje de manhã, comi dois sinos com os badalos, duas trombetas, três dúzias de xicrinhas, uma salada com a saladeira, e também comi as pedrinhas brancas que você foi largando. Monta no meu lombo, sou bem veloz, vamos viajar juntos".
"Mas", disse o jovem Polegar, "não vou mais ver o meu pai e a minha mãe?..."
A Avestruz: "Se eles te abandonaram, quer dizer que eles não querem te ver tão cedo."
O Pequeno Polegar: "Com certeza tem verdade no que a senhora está dizendo, senhora Avestruz".
A Avestruz: "Não me chame de senhora, tenha pena das minhas penas! Pode me chamar só de Avestruz."
O Pequeno Polegar: "Tudo bem, Avestruz, mas mesmo assim, tem a minha mãe, não é?
A Avestruz (irritada): "Não é o quê? Você já está me irritando, e além do mais, se você quer saber, u não morro de amores pela sua mãe, principalmente por causa daquela mania que ela tem de sempre usar chapéu com penas de avestruz...".
Polegar filho: "É que as penas custam caro... e ela gasta um dinheirão só para impressionar os vizinhos".
A Avestruz: "Em vez de impressionar os vizinhos, ela faria melhor se cuidasse de você. Ela até te dava uns tapas de vez em quando".
Polegar filho: "Meu pai também me batia".
A Avestruz: "Ah, o senhor Polegar batia em você? É inadmissível. Se os filhos não batem nos pais, por que os pais batem nos filhos? 
Aliás, o senhor Polegar nem e tão esperto assim, não. Sabe o que ele disse quando viu um ovo de avestruz pela primeira vez?
Polegar filho: "Não".
A Avestruz: "Bem, ele disse: 'Daria uma linda omelete!' ".
Polegar filho (lembrando): "Lembro da primeira vez que ele viu o mar. Ele pensou um pouco e disse: ' Que piscinão, pena que não tenha nenhum trampolim'.
Todo mundo riu, mas eu fiquei com vontade de chorar, e então a minha mãe me deu um puxão de orelha e disse: 'Você não pode rir que nem todo mundo quando o seu pai faz uma piada?!' Não é culpa minha, mas eu não gosto das piadas das pessoas grandes..."
A Avestruz: "...Eu também não. Monta no seu lombo, você não vai rever os seus pais, mas vai ver todo o pais."
"Está bem", disse o Pequeno Polegar, e montou.
Num forte galope triplo, a ave e a criança partiram, deixando uma nuvenzona de poeira.
Da soleira da porta, os camponeses balançam a cabeça e dizem: "Mais um daqueles automóveis imundos!".
Mas as camponesas ouvem a avestruz repicar os sinos no galope.
"Estão ouvindo esses sinos?", disseram elas, se benzendo: "Igreja fugindo, o Diabo vem vindo".
E todos se trancam até a manhã seguinte, mas na manhã seguinte e o menino já estão bem longe.


(In. Contos para crianças impossíveis. São Paulo: Cosac Naify, 2007. pp.6-11).

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Minhas férias com Franz Kafka - (fragmentos)

 

"Nossa sentença não parece severa. O mandamento que o condenado infringiu está inscrito em seu corpo com o rastelo. Por exemplo, para este condenado - o oficial apontou para o homem - será escrito no corpo: "Honre seus superiores!" (...). O viajante queria perguntar algo diferente mas apenas questionou, ao olhar o homem:

- Ele sabe qual é a sentença?

- Não - respondeu o oficial. E quis, de pronto, continuar suas explicações, mas o viajante o interrompeu:

- Ele não sabe qual é a própria sentença?

- Não - repetiu o oficial. Parou por um momento, como se exigisse um fundamento mais específico da pergunta do viajante, e, então, e, então, disse: - Seria inútil anunciá-la. Ele a sentirá na carne. 

O viajante quis se calar, mas sentiu que o condenado voltava o olhar para ele, parecendo perguntar se ele endossava o processo descrito. Por isso, o viajante se curvou para a frente de novo, pois já havia recuado, e voltou a perguntar:

- Mas ao menos ele soube que foi condenado?

- Também não - disse o oficial. Ele sorriu para o viajante, como se esperasse dele mais alguma observação peculiar.

- Não - repetiu o viajante, passando passando a mão pela testa -, então o homem tampouco sabe como sua defesa foi feita?

- Ele não teve a oportunidade de se defender - comentou o oficial e olhou para o lado, como se falasse para si mesmo e não quisesse envergonhar o outro por ter que explicar coisas tão óbvias".

(In. Na colônia penal. Rio de Janeiro: Antofágica, 2020, pp. 35-39).

***

"... sou o que sou como resultado da sua educação e da minha obediência (além dos fundamentos e da influência da vida, é claro). O fato de você ainda se atormentar com esse resultado, sim, de se recusar inconscientemente a reconhecê-lo como resultado de sua educação, é precisamente porque sua mão e meu material eram tão estranhos um ao outro".

(In. Carta ao pai. Rio de Janeiro: Antofágica, 2024, p.45).

***

"Gregor não poderia ser demitido de imediato. E para Gregor parecia ser muito mais razoável que o deixassem em paz no momento em vez de perturbá-lo com choros e tentativas de persuasão. Mas era exatamente a incerteza que afligia os outros que justificava o modo como se comportavam".

(In. A metamorfose. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019, p. 55).

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

A última névoa - Maria Luisa Bombal (trecho)

 

"Uma vez nua, permaneço sentada à beira da cama. Ele se afasta e me contempla. Sob seu olhar atento, jogo a cabeça para trás e esse gesto me enche de um íntimo bem-estar. Junto os braços atrás da nuca,, tranço e destranço as pernas e cada movimento traz consigo um prazer intenso e completo como se, por fim, meus braços, meu colo, minhas pernas encontrassem uma razão de ser. Ainda que este prazer fosse a única finalidade do amor, me sentiria já bem recompensada!

Aproxima-se; minha cabeça fica à altura de seu peito, que ele me oferece sorridente, aperto contra ele meus lábios e logo encosto a testa, o rosto. Sua carne cheira a fruta, a vegetal. Num novo impulso, jogo os braços ao redor de seu torso e atraio, mais uma vez, seu peito contra a minha ace.

Abraço-o com força e ouço com todos os meus sentidos. Ouço nascer, voar e recair sua respiração; escuto a explosão que seu coração repete incansável no centro do peito e que repercute nas estranhas e se espalha em ondas pelo corpo todo, transformando cada célula num eco sonoro. Aperto-o, aperto sempre com maior afã; sinto correr o sangue em suas veias e sinto trepidar a força que se esconde inativa em seus músculos; sinto agitar-se a borbulha de um suspiro. Entre meus braços, toda uma vida física, com sua fragilidade e mistério, fervilha e se precipita. Começo a tremer.

Então ele se debruça sobre mim e rolamos enlaçados para o centro da cama. Seu corpo me cobre como uma grande onda fervente, me acaricia, me queima, me penetra, me envolve, me arrasta desfalecida. à minha garganta sobe algo assim como um soluço, e não sei por que começo a me queixar, não sei por que é doce me queixar, é doce para o meu corpo o cansaço infligido pela preciosa carga que pesa sobre minhas coxas.

Quando acordo, meu amante dorme estendido ao meu lado. A expressão de seu rosto é plácida; seu hálito é tão leve que preciso me inclinar sobre os lábios dele para senti-lo. Percebo que, presa a uma finíssima e quase imperceptível corrente, uma medalhinha se aninha na penugem castanha do peito; uma medalhinha trivial, dessas que as crianças recebem no dia da primeira comunhão. Minha carne toda se enternece diante desse detalhe pueril. Aliso uma mecha rebelde colada à sua têmpora, ergo-me sem acordá-lo. Visto-me com cuidado e vou-me embora. Saio como cheguei, tateando.

Já estou aqui fora. Abro a grade. As arvores estão imóveis e ainda não amanheceu. Subo correndo a ruela, atravesso a praça, retomo avenidas. Um perfume muito suave acompanha-me: o perfume do meu enigmático amigo. Fiquei toda impregnada do seu aroma. E é como se ele ainda caminhasse ao meu lado ou ainda me tivesse apertada em seu abraço ou tivesse desfeito sua vida em meu sangue para sempre (p. 29-31).

Não importa que meu corpo fique murcho, se conheceu o amor! Que importa que os anos passem odos iguais? Tive uma bela aventura uma vez...Com uma única lembrança se pode suportar uma longa vida de tédio. E até repetir, dia após dia, sem cansaço, os mesquinhos gestos cotidianos (p. 33).

Não veio ninguém, nada aconteceu. A amargura da decepção não dura mais do que o lapso de um segundo. Meu amor por "ele" é tão grande que está acima da dor da ausência. Basta-me saber que existe, que sente e se lembra em algum canto deste mundo... - (p. 34).

E se chegasse a esquecer, como faria então para viver? 

Bem sei agora que os seres, as coisas, os dias não são suportáveis para mim, a não ser quando vistos através do estado de vida que minha paixão cria. 

Meu amante é para mim mais do que um amor; é minha razão de ser, meu passado, meu agora, meu amanhã" - (p. 54).

(In. A última névoa & A amortalhada. São Paulo: Cosac Naify, 2013).