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sexta-feira, 14 de outubro de 2011
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
Xote do edifício - Zeca Baleiro
"Se você quiser te dou meu coração
Arranco ele do peito com canivete
Dói um pouco mais depois passa
Como tudo passa, o trilho, o trem
... Se você quiser, só se você quiser
Te dou minha mão, meu pé
Uma perna, um braço
Sem eles eu passo
Sem eles eu passo muito bem
A dor que me dói, também conforta
Dói e pouco me importa então
Morrer de amor
Morrer de amor, morrer de amor
Morrer de amor não é difícil, não
Se atirar do edifício
Viver de amor é que é difícil
Se atirar"
Música para download no link:
terça-feira, 4 de outubro de 2011
My body is a Cage - Peter Gabriel (tradução)
Meu corpo é uma jaula, que me impede
De dançar com aquela que amo
Porém minha mente segura a chave
Meu corpo é uma jaula, que me impede
Meu corpo é uma jaula, que me impede
De dançar com aquela que amo,
Porém minha mente segura a chave
Eu estou em uma cena
De medo e insegurança
É uma peça horrível,
Mas eles aplaudirão mesmo assim
Meu corpo é uma jaula, que me impede
Meu corpo é uma jaula, que me impede
De dançar com aquela que amo,
Porém minha mente segura a chave
Você está perto de mim
Você está perto de mim
E minha mente segura a chave
Estou vivendo em uma época
Que chama a escuridão de luz
E apesar de minha língua estar morta,
Suas formas ainda preenchem a minha cabeça
Estou vivendo em uma época
Estou vivendo em uma época
Cujo nome não sei
E apesar do medo me manter seguindo em frente
Meu coração ainda bate tão lentamente
Meu corpo é uma jaula, que me impede
Meu corpo é uma jaula, que me impede
De dançar com aquela que amo
Porém minha mente segura a chave
Você está em pé ao meu lado
E minha mente segura a chave
Meu corpo é uma...
Meu corpo é uma jaula
Nós usamos o que nos foi dado
E só porque você esqueceu
Não quer dizer que esteja perdoado
Estou vivendo em uma época
Que grita meu nome à noite
Porém quando eu chego à saída
Não há ninguém à vista
Você está perto de mim
E minha mente segura a chave
Liberte o meu espírito...
Download da música no link:
Cena do seriado no link:
terça-feira, 27 de setembro de 2011
Conheço a resistência da dor - Cecília Meireles
Melancolia, de Edward Munch |
Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.
A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.
O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.
Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.
Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.
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sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Arte e ciência na psicanálise
Lacan conjuga em seu ensino duas vertentes aparentemente opostas, mas que se complementam: a arte e a ciência, ou - poderíamos dizer com ele - a poesia e o matema.
Seus textos e seminários são escritos e falas que sabem lidar com as palavras, explorando todos os seus elementos constitutivos: os fonemas (materialidade sonora), a letra (recurso da escrita) e a multiplicidade de sentidos (semântica). Ele adora recorrer à referência etimológica: andava sempre com um exemplar do clássico dicionário etimológico da língua francesa Bloch et von Wartburg embaixo do braço, vivia exortando os analistas a fazerem o mesmo e ainda os aconselhava a fazer palavras cruzadas. Seu discurso esgarça os limites da sintaxe, explorando os registros linguísticos da escrita e da fala para produzir equívocos. Como Freud, aliás, ele insiste em que o analista deve ser letrado e deve saber usar os recursos de estilo. Dentre eles destacam-se, tanto em sua escrita quanto em sua fala, a ironia, a antítese, o jogo de palavras, a criação de homofonias e o rebuscamento. Enfim, seu estilo é barroco, assim como o de Freud é clássico. Curiosamente, os charutos de ambos são emblemas desses estilos: o de Freud tão grande e alinhado e o de Lacan todo entortado! De fato, Lacan considera que seus escritos não se destinam a uma simples leitura, mas, como as formações do inconsciente, devem ser decifrados.
Em 1930, Freud recebe da cidade de Frankfurd o cobiçado Prêmio Goethe de Literatura pelo conjunto de sua obra. Seu bevíssimo artigo de 1916, intitulado "Sobre a transitoriedade", é unanimemente considerado um ensaio poético. E os textos de Lacan são atualmente cada vez mais estudados nos departamentos de literatura das universidades.
É preciso chamar atenção para o fato de que a literatura exerce um papel preponderante na constituição da psicanálise, na medida em que atravessa toda a obra de Freud: de Sófocles a Shakespeare, que ele denomina de "o grande psicólogo". Freud aprende com os romancistas e os poetas, retirando deles continuamente ensinamentos. Ele dizia inclusive que não havia nada que conseguisse formular cientificamente que já não houvesse sido abordado pelos escritores. Em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, ele abre um espaço significativo para a literatura, propondo uma ligação mais estreita, "no sentido de uma universitas literarum", entre a ciência e as artes.
Lacan toma a proposta freudiana ao pé da letra. Ele não só sublinha frequentemente a percepção de um saber na criação literária, mas também afirma que os poetas sempre dizem as coisas na frente dos outros. Com Lacan, os psicanalistas passam a ser exigidos a se reincluir no mundo do saber, do qual haviam se afastado a partir do momento em que os pós-freudianos reduziram a psicanálise a uma técnica de adaptação ligada à medicina.
A erudição de Lacan, assim como a de Freud, é impressionante. Sem dúvida, essa erudição é efeito de um desejo de saber sobre as questões cruciais do homem. A contribuição de Lacan é efetiva na medida em que articula o saber psicanalítico com as disciplinas contemporâneas a que Freud não tivera acesso, como a linguística e a antropologia. Além disso, sua paixão pela filosofia e seu interesse pela matemática e pela lógica o levam a produzir constantemente uma articulação desses campos do saber com a psicanálise.
Seguindo os passos de freud, Lacan também almeja conquistar o status de ciência para a psicanálise. Mas essa busca de cientificidade não é incompatível com a arte do bem dizer. A frase de Buffon "O estilo é o homem" inicia o texto de abertura dos Escritos, onde duas questões são privilegiadas: "o estilo que seu endereçamento impõe" e a convocação do leitor para dar "algo de si".
Em relação à cientificidade da psicanálise, a contribuição mais importante de Lacan é a construção gradual de matemas. Para isso, ele recorre às fórmulas matemáticas, já que estas são a via pela qual as ciências operam sobre o real. Como é possível mandar um homem para a Lua? Através de fórmulas matemáticas que conseguem arrancar dele as leis que ali vigoram. Nesse sentido, toda ciência é uma tentativa de simbolizar o real, ou melhor, como dizia Lacan, uma pontinha dele.
Lacan chega aos matemas aos poucos. Inicialmente estabelece algumas letras, denominadas por ele de álgebra lacaniana: S1, S2, S, a. Depois, vai articulando essas letras entre si e compondo pequenas fórmulas, como a da fantasia, a do sintoma, dos quatro discursos etc. Em 1976, quando vai ministrar conferências nos EUA, os psicanalistas norte-americanos perguntam se quer matematizar tudo e ele responde que não, que apenas pretende "começar a isolar na psicanálise um mínimo passível de ser matematizado", isto é, quer introduzir algumas fórmulas que funcionem como balizas minimamente seguras para o trabalho dos psicanalistas e para a troca teórica entre eles. Além disso, os matemas são fórmulas que asseguram a transmissão de conceitos centrais da psicanálise, ainda que permitam uma pluralidade de leituras.
(In: Lacan, o grande freudiano. Marco Antônio Coutinho Jorge. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar,2009. p.10-3.)
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém - Antônio Gedeão
"Desespero", de Edward Munch Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém. Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível: com ele se entretém e se julga intangível. Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu, sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito, que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, não pesa num total que tende para infinito. Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo, nesta insignificância, gratuita e desvalida, Universo sou eu, com nebulosas e tudo. Mais poemas no blog: http://leaoramos.blogspot.com/ |
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Figura - Orlando Morais
Escultura "A eterna Primavera", de Rodin A mim não importa ser a sombra quando você é a figura ser a situação quando você é o assunto ... Eu nasci pra estar ao seu lado mesmo se não estamos juntos e é por isto que quando gritas permaneço calado como o sol determina retrato falado, meu pé de laranja lima nós somos assim como um desenho talvez reflexo e refletor ... Você, as imagens que tenho as que quero as que tenho amor Música disponível para download no link: http://www.4shared.com/audio/Lf9jQ_04/Orlando_morais_Figura.html |
As metamorfoses - Ovídio (trecho)
"Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio...O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia susceder a escuridão da noite...Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida?
Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova...a planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor: Tudo floresce. O fértil campo resplandesce com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas emranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso...E também a natureza não descansa e, renovadora, encontra outras foras nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados...todos os seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou de ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre os perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos...Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste".
(In: Convite à Filosofia - Marilena Chauí. 12 ed. São Paulo: Ática, 2000. p.24-5).
Para saber mais sobre Metamorfoses, de Ovídio, acesse:
O amor em Leningrado
"- Conte-me sobre o seu Sr. Parker.
- Oh, o Sr. Parker?... Ele parece saber como é. Como tocar você e fazer eletricidade percorrer seu corpo. Como abraçar e acarinhar você. E como despir você...
- E depois?
- E depois? Você pára de pensar. Percebe que não há vergonha. Que pode fazer tudo com ele. Sesus corpos pertencem a vocês dois ao mesmo tempo. Ninguém precisa dizer nada..."
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
Histeria & Obsessão - Vladimir Safatle
No caso da histeria, a questão norteadora seria: "O que é uma mulher?". Já na obsessão, teríamos:"Estou vivo ou estou morto?".
Vem do psicanalista Jacques Lacan a idéia de que a neurose é, no fundo, uma questão. Neste momento em que os diagnósticos clínicos psiquiátricos simplesmente abandonaram o conceito de neurose, como se se tratasse de algo muito vago e amplo, a idéia lacaniana mereceria ser levada mais a sério.
Por trás dela, há a importante compreensão de que certos sujeitos podem organizar suas vidas de maneira tal que, em vários momentos, uma mesma questão aparecerá mostrando como as respostas anteriores eram provisórias.
Essa pergunta vai polarizar os conflitos, indicando um ponto estruturalmente frágil sem resposta definitiva.
Note-se que a natureza neurótica da pergunta não está na sua enunciação, pois não há nada em sua enunciação que seja particularmente extraordinário. Na verdade, ela se encontra na impossibilidade de suportar a ausência de uma resposta decisiva que nos colocaria, de uma vez por todas, em uma posição existencial assegurada.
Por isso, para o neurótico, tais questões são insuportáveis e insuperáveis, fonte constante de sofrimento psíquico. Elas se transformaram no dispositivo de confrontação constante com o desamparo.
No quadro clínico psicanalítico, encontramos, principalmente, duas formas estruturais de neurose: a histeria e a obsessão. Como tais, elas desapareceram dos manuais de psiquiatria contemporâneos (como o DSM-IV e o CID-10).
No entanto, seus sintomas foram dissociados, produzindo várias nosografias, como o transtorno de personalidade histriônica, o transtorno obsessivo-compulsivo, os transtornos somatoformes, entre outros.
Uma boa pergunta é: "O que se perdeu com a dissecação da histeria e da obsessão em vários subsistemas de sintomas?". Uma das boas respostas que Jacques Lacan nos propiciaria seria: "Perdeu-se a capacidade de compreender as questões que animam a vida dessas pessoas e que as levam a situações constantes de sofrimento".
No caso da histeria, a questão norteadora seria: "O que é uma mulher?". Já na obsessão, teríamos: "Estou vivo ou estou morto?".
A dissemetria dessas duas questões é apenas aparente. Embora a primeira veicule, de maneira mais evidente, posição existencial e identidade de gênero (o que não poderia ser diferente na medida em que a psicanálise se serve das neuroses para pensar o processo conflitual de produção de tais identidades), as duas são modos de expor a insegurança a respeito dos vínculos produzidos pelo desejo.
No decorrer de nossas vidas, assumimos papéis, modelos de comportamento e posições que parecem desvelar, em ocasiões particularmente difíceis, uma grande carga de alienação.
Uma mulher que transforma a feminilidade em uma questão existencial demonstra claramente o estranhamento de quem se pergunta: "O que h´em mim que me faz suportar o lugar ("mulher") no qual estou e para o qual o olhar desejante do outro se volta?".
Como uma clássica filósofa nominalista, ela vê o nome como uma estranha etiqueta que se cola sobre as coisas. Como ela é essa coisa, tudo sepassa como se o desejo daquele que cola etiquetas fosse, de longe, um mistério e, de perto, uma fonte repugnante de angústia e desgosto.
Desse impasse, ela não saberia escapar, já que os dois pólos são, à sua maneira, verdadeiros.
Já aquele que se pergunta se está realmente vivo, aquele que sente em si mesmo algo em processo inexorável de mortificação, age como se a presençado desejo que vivifica não fosse algo evidente. Fácil seria dizer que tais pessoas se colocaram em posições nasquais os papéis emodelos assumidos funcionam como uma defesa mortificante contra o próprio desejo.
No entanto, elas parecem dizer que não sabem onde está esse desejo capaz de nos livrar de um desamparo mortificante. Elas não têm certeza se tal desejo está fora ou dentro dos papéis e modelos assumidos. Desse impasse, elas também não sabem como escapar.
Talvez porque nos dois casos, como dizia Wittgenstein, a resolução do problema não acontece com uma boa resposta, mas apenas quando desenvolvemos a força de esquecer o problema.
(Coluna extraída da revista CULT nº 161 - Ano 14 - set/2011)
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
Por quem os sinos dobram? - John Donne
"Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço de continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram, eles dobram por ti".
(Meditação n*17 - trecho)
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
Números - Versos de Trilussa
Eu valho muito pouco, sou sincero
dizia o Um ao zero,
no entanto, quanto vales tu? Na prática
és tão vazio e inconcludente
quanto na matemática.
Ao passo que eu, se me coloco à frente
de cinco zeros bem iguais
a ti, sabes acaso quanto fico?
Cem mil, meu caro, nem um tico
a menos nem um tico a mais.
Questão de números. Alias é aquilo
que sucede com todo ditador
que cresce em importância e em valor
quanto mais são os zeros a seguí-lo.
(Carlo Alberto Salustri - poeta italiano que viveu no tempo de Mussolini)
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Minha vida - Lou Andreas Salomé
"Não posso conformar minha vida a modelos, nem jamais poderei constituir um modelo para quem quer que seja; mas é totalmente certo que dirigirei minha vida segundo o que sou, aconteça o que acontecer. Fazendo isto, não defendo nenhum princípio, mas algo bem mais maravilhoso - algo que está em nós, que queima como o fogo da vida".
quinta-feira, 28 de julho de 2011
Mim não conjuga verbo: sobre a distinção entre "eu ideal" e "ideal de eu"
"Se o eu ideal é o outro como imagem com valor cativante, o ideal do eu é o outro como falante" - Coutinho Jorge, 2009, p.42.
A imersão na dimensão simbólica é um marco na "ex-istência" de todo ser vivente, pois lhe confere o estatuto de sujeito, "aquele que deseja". Deseja o quê? O que desde já, está perdido para sempre.
"Ser" sujeito é ser como um diamante bruto que foi lapidado pela linguagem, o qual a luz do existir, ao atravessá-lo, se desdobra em múltiplos desafios: que fazer da incompletude, desse gozo que nunca é pleno, mas antes uma vaga lembrança? Como lidar com o desencontro sexual, esse Real que comparece no Simbólico? Haverá modo de deixar uma marca neste mundo que "já está" há milênios, e que continuará a girar, indiferente ao cerrar de nossos olhos?
"Diferenciar-se" é um significante que marca a minha existência desde o princípio; sei que isso poderá soar retundante aos ouvidos de quem está familiarizado com o vocabulário da Psicanálise, mas para estes evoco, em defesa da minha narrativa, uma pontuação de André Gide: "Todas as coisas já estão ditas, mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre".
Dizia minha mãe que eu fui um bebê muito intrigante, posto que era difícil distinguir meus apelos de fome dos de dor. Aos poucos, porém, meus choros de dor se tornaram mais agudos - talvez aí o matema que me inscreve já estivesse dando seus indícios....
Ao entrar para a escola, tentando rabiscar as primeiras letras, frequentemente era advertida que deveria firmar melhor o meu traço, pois do contrário ninguém compreenderia o que eu quisesse dizer; era impossível para os outros distinguirem um "b" de um "l", um "v" de um "r". Quando me apropriei da técnica de caligrafia passei a escrever tão firme que frequentemente manchava de tinta minhas mãos e as bordas de caderno.
Mais adiante, outra dificuldade de linguagem se apresentou. A professora do primário, raivosa, entoava:
- Mim não conjuga verbo. Mariana. Mas será possível que você não consiga compreender?
- Não consigo, professora. Dizer "eu" e dizer "mim" não dá na mesma?
- É claro que não. Guarde de uma vez por todas a explicação que vou te dar: "mim" não faz nada sozinho, precisa que alguém lhe dê um sentido, só existe enquanto objeto de outro. "Eu posso", mas "mim" não pode nada; "mim não conjuga o verbo, mas é conjugado por ele". Compreendeste?
Passaram-se vinte anos até que, lançando-me ao estudo dos escritos psicanalíticos, dificuldade semelhante se apresentou: distinguir o "eu ideal" de "ideal de eu". Foi então que Lacan me forneceu a pista para decifrar o enigma, escrevendo, no que tange ao eu ideal,"Je", do francês "eu", e quanto ao ideal de eu, "moi", do francês "eu", mas "eu" enquanto objeto, "mim".
À pista dada por Lacan liguei as advertências da professora, então tudo ficou mais claro: no "eu ideal"- "Je"- a relação com o outro é dual, especular: toma-se o outro como imagem de si, faz-se uma projeção, o que confere ao eu uma unidade; no "ideal de eu"- "moi" -, a relação se dá entre um trio, onde a linguagem liga o outro a mim, ou seja, o outro é um ser que me fala, e a existência eu apreendo por introjeção dessa fala; ao mesmo tempo semelhante e diferente, o outro profere o verbo ao qual me assujeito, afinal, "mim não conjuga verbo".
Entre a professora e Lacan teci uma trama que corrobora tanto as palavras do grande professor - "o inconsciente é atemporal" - quanto as de seu melhor aluno -" o inconsciente é estruturado como linguagem", onde um "significante só tem sentido em relação a outro significante", costurando uma teia em que a cada dia acrescentamos novos fios. O modo como tricotamos é o que nos diferencia....
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Hiatus Irrationalis - Jacques Lacan
Coisas, que corram em vós o suor ou a seiva,
Formas, que nascidas sejam da forja ou do sangue,
Vossa torrente não é mais densa que meu sonho;
E, se não os oprimo com um desejo incessante
Atravesso vossa água, desabo na areia,
onde me atrai o peso do meu demônio pensante.
Só, ele bate no duro chão onde o ser se eleva,
Ao mal cego e surdo, ao deus privado de sentido.
Mas, assim que parece todo verbo na minha garganta,
Coisas, que nascidas sejam do sangue ou da forja,
Natureza, eu me perco no fluxo de um elemento:
Este que aninha em mim, o mesmo vos subleva,
Formas, que corram em vós o suor ou a seiva,
é o fogo que me faz vosso imortal amante.
(Poema escrito em 1929 e publicado nos Cahiers d´art em 1933)
(Poema escrito em 1929 e publicado nos Cahiers d´art em 1933)
quinta-feira, 21 de julho de 2011
De objeto a sujeito: o bebê - Marco Antônio Coutinho Jorge
"A criança deve ser levada, por um prodigioso dispêndio de amor, de ternura e de cuidados, a perdoar aos pais por terem-na posto no mundo sem lhe perguntar qual era a sua intenção, pois, em caso contrário, as pulsões de destruição logo entram em ação". - Ferenczi
"A proximidade da criança do não-ser, muito maior do que a do adulto, favorece que ela deslize e retorne para ele muito facilmente. A "experiência da vida" afasta o bebê do não-ser do qual ele adveio, desde que se lhe apresentem bons motivos para se apegar a ela. Assim, o bebê adquire uma espécie de "imunização progressiva contra os atentados físicos e psíquicos".
(...) Os frequentes casos de morte súbita em neonatologia, na maioria das vezes inexplicáveis pelo discurso médico, adquirem assim, para nós, um contorno palpável: trata-se de um não acolhimento pelo amor e pelo desejo do Outro.
Spitz investigou o desenvolvimento infantil fazendo um estudo comparativo entre o desenvolvimento de crianças de um excelente orfanato e o de crianças do berçário de uma prisão. Se, por um lado, no orfanato, apesar de organizado e limpo, elas demonstraram um sensível atraso mental e debilidade física acentuada, na prisão, onde mantinham contato (ainda que não permanente) com as mães, além de serem o objeto privilegiado da atenção das outras prisioneiras, seu desenvolvimento era não só sadio como até acelerado. Spitz concluiu que a privação afetiva completa no primeiro ano de vida era responsável pelo "hospitalismo", cujo prognóstico é bastante grave; quando a privação era parcial, respondia por estados de depressão. Em seu trabalho, cita como epígrafe uma antiga observação, feita em um diário de 1760 por um bispo espanhol: "En la Casa de Niños Expositos el niño se va poniendo triste muchos de ellos mueren de tristeza".
(...) A constância dos cuidados maternos no início da vida do bebê é responsável por sua saúde psíquica.
Winnicott resume suas formulações salientando que a mãe "fornece continuidade" e acrescenta que, aos poucos, ela poderá se tornar cada vez menos atenta às necessidades do bebê - isso de acordo com a evolução da criança e sua condição cada vez maior de poder prescindir desse cuidado.
(...) Observando ainda que a criança, no caso de mulheres presas, "se torna um evidente substituto fálico", Spitz nos ajuda a compreender o quanto a fantasia dis progenitores em relação ao bebê pode ser decisiva, na medida em que, investindo narcisicamente o corpo do bebê, protege-o da tendência à auto-destruição que parece espreitá-lo desde sempre. É preciso supor que a fantasia amorosa dos pais é, assim, o primeiro escudo protetor em relação à pulsão de morte originária no bebê; ela constitui a primeira forma de erotismo da qual este participa, no caso, na condição de objeto do amor e do desejo do Outro. Posteriormente, será a sua fantasia de sujeito que irá preservá-lo dos ataques destrutivos da pulsão de morte, mas então ele estará na condição de sujeito do desejo, numa relação com o objeto causa do desejo.
Colette Soler assinala a referência feita por Lacan à síndrome do hospitalismo, ao final de sua "Nota sobre a criança" endereçada a Jenny Aubry, chamando a atenção para o fato de que
as necessidades vitais podem ser satisfeitas por cuidados relativaamente a`^onimos, mas, na falta desse "interesse particularizado" evocado por Lacan, a criança fica carente do Outro intérprete, bem como do Outro a ser interpretado, através do que ela mesma poderia vir a sê-lo num desejo não anônimo.
Pode-se esquematizar a travessia em jogo na constituição do sujeito no que diz respeito à fantasia da seguinte forma, mostrando que o essencial é a passagem do lugar de objeto (do Outro) para o lugar de sujeito ( numa relação desejante com o objeto perdido): (...) passagem de a para S/ - sujeito barrado.
(In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan - A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.162-4).
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