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quarta-feira, 22 de julho de 2020

Querida Kombini - fragmento


"Não me lembro com clareza de como era minha vida antes de eu renascer como funcionária da loja de conveniência.
Nasci em uma família comum, numa área residencial dos subúrbios, e cresci cercada de amor como qualquer criança. Porém, as pessoas costumavam me achar estranha.
Certa vez, por exemplo, quando estava no jardim de infância, encontramos um passarinho morto no parque. Era um lindo pássaro azul, provavelmente fugido de alguma gaiola, e estava caído no chão com o pescoço retorcido. As outras crianças choravam ao seu redor. Enquanto uma menina murmurava "Oh, e agora, o que vamos fazer?", eu rapidamente peguei o passarinho do chão e o levei até minha mãe, que estava de conversa, sentada em um banco.
- O que foi, Keiko? Puxa, um passarinho! De onde será que ele veio? Coitadinho... Vamos fazer uma sepultura para o senhor passarinho, Keiko? - disse ela com voz gentil, afagando minha cabeça.
- Vamos comer isto aqui! - eu disse.
-Quê?
´- Vamos levar para casa e comer hoje à noite. Podemos fazer espetinho, como o papai gosta - achei que ela não tinha me ouvido direito, então expliquei pronunciando claramente as palavras.
Minha mãe se encolheu assustada. A mãe de outra criança, sentada ao seu lado, também deve ter ficado em choque, pois seus olhos, narinas e boca se escancaravam todos de uma vez. Era uma expressão muito engraçada e eu quase ri. Mas ao notar que ela também olhava para o passarinho na palma da minha mão, pensei que talvez um só não fosse suficiente.
- É melhor a gente pegar mais alguns? - perguntei, lançando um olhar para dois ou três pardais que ciscavam ali por perto.
- Keiko! - minha mãe voltou a si e me censurou com um grito nervoso.. - Temos que fazer uma sepultura para o pobrezinho. Olha só, todo mundo está chorando, estão todos tristes porque o amiguinho morreu. Que  peninha dele, não é?
- Mas por quê? Ele já morreu, mesmo! É melhor aproveitarmos.
Minha mãe ficou sem palavras.
Na minha mente eu via meu pai, minha mãe e minha irmã, que ainda era pequena, comendo alegremente o passarinho. Meu pai gostava de espetinho, eu e minha mãe gostávamos de frango frito... Havia tantos passarinhos naquele parque, a gente podia levar um monte! Eu não entendia o propósito de enterrar o bicho em vez de o comermos.
- Olha só Keiko, ele é tão pequeno e bonitinho! Vamos fazer uma sepultura para ele e enfeitar com flores, tá? - insistiu minha mãe.
No fim das contas, foi isso o que aconteceu, mas para mim não fazia sentido algum.
- Coitado do passarinho, que judiação! - repetiam todos, aos prantos, enquanto matavam flores partindo seus caules.
- Que flores lindas, o passarinho vai ficar muito contente!
Para mim pareciam loucos" - (p. 13-15).
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"Não era minha intenção deixar meu pai e minha mãe confusos ou aflitos, nem obrigá-los a se desculpar para várias pessoas, então decidi que, fora de casa, falaria o mínimo possível. Resolvi deixar de fazer qualquer coisa por iniciativa própria e apenas imitar o que todo mundo fazia, ou obedecer as ordens de alguém.
Quando parei de falar o que quer que fosse além do estritamente necessário e de agir de forma espontânea, os adultos pareceram aliviados.
(...)
Continuei assim mesmo depois de me formar no ensino médio e entrar na faculdade. Passava praticamente todo meu tempo livre sozinha e quase não tinha conversas particulares. Meus pais se preocupavam comigo, pois ainda que eu não causasse mais tumultos como os do começo do primário, decerto acreditavam que eu não conseguia me inserir na sociedade daquele jeito. Assim, sempre pensando que eu precisava me curar, fui me tornando adulta - (p.18-19).
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(In. Querida Kombini. Sayaka Murata. São Paulo: Estação Liberdade, 2019).

Mais sobre o livro:

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Resenha do livro:

domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobre os ossos dos mortos - Olga Tokarczuk


"Cresci numa bela época, que infelizmente já passou. Havia nela uma enorme disposição para mudanças e a capacidade de criar ideias revolucionárias. Hoje em dia ninguém tem a coragem de inventar algo novo. Fala-se apenas sobre como as coisas já são e se continua lançando as mesmas ideias antigas. A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo - envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares - os sentidos - sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria. Em grego essa palavra significa "a queda das pétalas". As pétalas do mundo caíram" - (p. 60).
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 "E talvez o próprio Blake, se estivesse vivo, diria, ao ver tudo isso, que ainda havia lugares no universo não tomados pela decadência, o mundo não virou do avesso e o Éden ainda existe. Ali o ser humano não age de acordo com as regras da razão, estúpidas e rígidas, mas segundo o coração e a intuição. As pessoas não matam o tempo se pavoneando com aquilo que sabem, mas criam coisas extraordinárias fazendo uso de sua imaginação. Assim, o Estado não exerce o papel de um grilhão, não constitui o fastio do cotidiano, mas ajuda as pessoas a realizarem os seus sonhos e suas esperanças. E o ser humano não é apenas uma engrenagem no sistema desempenhando um papel predeterminado, mas um ser livre. Era isso que passava pela minha mente, fazendo do meu tempo em repouso quase um prazer.
Às vezes eu acho que apenas os doentes são de fato sãos" - (p. 83).
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"Os animais mostram a verdade sobre um país (...). A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa" - (p. 99).


"Quando ouvi o relato de Boas Novas sobre sua vida, comecei a formular perguntas que começam com "Por que você não...", seguidas pela descrição do que, em nossa opinião, se deveria fazer naquele tipo de situação. Meus lábios estavam a ponto de articular um desses insolentes "por que você não", mas mordi a língua.
Quem faz isso são as revistas, e, por um momento, eu queria ser como elas: apontam para aquilo que não foi feito, para as falhas e o que foi negligenciado; por fim, nos colocam diante de nós mesmos nos enchendo de autodesprezo.
Então eu não disse nada. As histórias de vida de alguém não são assunto para ser discutido. Deve-se ouvi-las e retribuir na mesma moeda. Por isso eu também falei sobre a minha vida para Boas Novas e a convidei para ir à minha casa e conhecer as meninas" - (p. 123).
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"Aliás, acho que a psique humana se constituiu para nos incapacitar de enxergar a verdade. Para nos impedir de ver o mecanismo sem obstáculos. A psique é nosso mecanismo de defesa - é responsável por não nos permitir entender aquilo que nos rodeia. Ocupa-se principalmente de filtrar as informações, embora as possibilidades do cérebro sejam enormes. Seria impossível suportar tamanho conhecimento, visto que todas as partículas do mundo, por menores que sejam, estão compostas de sofrimento" - (p.208).
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"Quem é que dividiu o mundo em útil e inútil, e quem lhe deu o direito de fazê-lo? (...). Quem foi o dono da mente que se atreveu a tanta arrogância para julgar quem é melhor ou pior? Uma árvore enorme e cheia de buracos sobreviveu por vários séculos sem ser derrubada, porque não se podia fazer nada com ela. Esse exemplo deveria animar pessoas como nós. Todos conhecem o benefício do útil, mas ninguém conhece o proveito do inútil" - (p. 230).

(São Paulo: Todavia, 2019).



Mais sobre o livro:


Canção de Ninar - Leila Slimani


"A solidão agia como uma droga da qual ela não sabia se queria abdicar. Louise vagava pela rua, desconcertada, os olhos tão abertos que doíam. Na solidão, ela começou a olhar para as pessoas. A vê-las de verdade. A existência dos outros se tornou palpável, vibrante, mais real que nunca. Observava nos menores detalhes os gestos dos casais sentados nos terraços. Os olhares oblíquos dos velhotes abandonados. A afetação dos estudantes que fingiam estudar, sentados no encosto de um banco. Nas praças, na saída de uma estação do metrô, reconhecia o estranho desfile dos que estão perdendo a paciência. Esperava com eles a chegada de alguém. A cada dia ela reencontrava os companheiros de loucura, falantes solitários, malucos, mendigos.
A cidade, nessa época, estava cheia de loucos".
(São Paulo: Planeta: 2018, p. 86).

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A gorda - Isabela Figueiredo

"Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo. Ou seja, que arrastava. Foi como se os médios me tivessem separado de um gêmeo siamês que se suicidara de desgosto e me dissessem, no final, "fiemos o osso trabalho, faça agora o seu e aguente-se". Aprenda a viver sozinha".
 Com a gastrectomia deixei de conseguir comer. Bebia caldos, leite e sumos. Sentia doer o corpo e a mente. Sentia fome profunda, mas tinham-me cortado metade do estômago e o que me restava era uma ferida. Nos primeiros meses perdi força e cabelo, e caminhava lentamente, adaptando-me. O meu corpo diminuía à razão de duzentos e cinquenta gramas por dia, e comecei a ficar leve, quase a levantar voo, como não me sentia desde a infância. Subia oito andares sem ficar a arfar e podia continuar mais oito, os que fossem necessários, porque nada me detinha. Testava-me através de diversos esforços. "Vamos lá ver se consigo caminhar vinte quilômetros", e conseguia. Não me tornei invencível. Ainda penso como gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no final, chamando-os mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida" - (p. 17-18).
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"Sabia viver sem os que amava, mas sem escrita a vida não tinha por onde continuar. A estrada acabava. O ruído colossal das marés de setembro, nas praias de Comporta, esvaziava-se. Sem escrita não havia uma casa onde chegar, tirar o casaco, pendurá-lo, acarinhar a cadela, leva-la à rua, regressar, alimentá-la, sentar-me no sofá e apreciar o gesto. Podia viver sem tomar banho, sem beijos, mas sem escrita não. Ninguém entendia isso, e viraram-me as costas como se referisse uma mania, um vício de gente bastada que se pode dar a luxos. "Estás maluca". Houve uma altura, quando a prisão que a minha vida constituía se tornou demasiado clara e crua, em que comecei a ver cada vez pior. à medida que aumentava a minha visão interior do mundo, piorava a exterior. A oftalmologista teve de me aumentar as diotropias afirmando ser coisa incompreensível, porque a miopia tinha tendência a estabilizar na adultícia, não existindo outras doenças, mas em mim cavalgava sem razão. Acordava com dificuldade e escrevia para me aguentar, dia após dia, mesmo que nada tivesse a dizer. Escrevia, estou só aqui à espera". A compreensão é um castigo. Nunca mais se consegue ignorar a jaula nem o julgo" - (p. 45).
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"A história não se compadece com emoções privadas e é sua frieza implacável que concede à pequena resistência uma dimensão épica. Tudo se atravessa como se não estivéssemos sempre mortos e vivos, no mesmo instante, lutando por adiar a transição" - (p. 76).
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"Ninguém merece estar vivo e impedido de viver" - (p. 93).
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"Dir-me-ão que foi uma pena desperdiçar a minha vida esperando por um homem que passou ausente por toda a minha juventude. As pessoas têm sempre resposta fácil, mas eu não podia saber que não viria a existir outro homem para mim. Era este ou nada.
Imagino-nos abraçados de novo, quando ele regressar. As minhas fantasias de sempre. Dirão, "ah, que parvoíce de adolescente". Talvez, mas não podem imaginar como esta carta e este sonho me alentam, me dão um sentido, me tornam aquilo naquilo que vim cá ser.
Respondo imediatamente. Escrevo que aguardo a sua volta com ansiedade. Que imagino que não possa ser amanhã, mas que venha quando puder. Que o espero. Que tenho a chave debaixo do tapete. Que se eu não estiver, entre e se sente na sala à minha espera (...). Escrevo sim, vem, volta, vem, regressa (...). Nada no mundo é capaz de conter o amor incompleto, decepado por uma porta que a vida nos fechou n cara, sem contemplações" - (p. 201). 
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(In. A gorda. São Paulo: Todavia: 2018).

Sobre o livro:
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domingo, 13 de janeiro de 2019

O amor - por Valter Hugo Mãe

"Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, de empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido" - (p. 26).
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"O amor precisa ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução" (p.45).
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(In. O paraíso são os outros. São Paulo: Biblioteca azul: 2018). 


salazar em minúscula - Valter Hugo Mãe

"Éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os melhores pais de família. um homem havia de ser medido pelos seus actos, pouco importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e abrir caminho até morte adentro. essa é que era a essência possível da felicidade, aguentar enquanto desse" - (p. 131).
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"que melhor discurso pode haver para os padres do que a promoção da beleza de ser pobrezinho. a promoção da beleza de ser pobrezinho. é um casamento perfeito. o político que gosta dos pobrezinhos e os mantém pobrezinhos. mas, quer o político, quer a igreja, dominam ou podem dominar o fausto. não é brilhante. isto inventado seria mentira. ninguém teria cabeça para inventar tal porcaria, só sendo verdade mesmo" - (p.150).
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"sabe o que é que afinal foi mesmo uma máquina para roubar a metafísica aos homens. perguntou aquilo e suspendeu-se no nosso ar, expectante, à espera de esclarecimento. a ditadura é que nos quis pôr a todos rasos como as tábuas, sem nada lá dentro, apenas o andamento quase mecânico de cumprir uma função e bico calado. a ditadura, colega silva, a ditadura é que foi uma terrível máquina de roubar a metafísica aos homens" - (p.161).
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"hoje é possível reviver o fascismo, quer saber. é possível na perfeição. basta ser-se trabalhador dependente. é o suficiente para perceber o que é comer e calar, e por vezes nem comer, só calar" - (p.167).
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"O salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que os tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão. a maioria silenciosa terá de emergir um dia, dissera-me por outras palavras o estudante comunista. tudo era para que não praticássemos cidadania nenhuma e nos portássemos apenas como engrenagem de uma máquina a passar por cima de nossos ombros, complexa e grande de mais para lhe percebermos o início, o fim e o fito de cultivar a soberba de um só homem. tudo contribuía para que essa cidadania de abstenção, para que apenas a recebêssemos por título honorífico enquanto prosseguíssemos sem manifestação. como se humilham as mulheres enquanto homens honorários, nós éramos gente exclusivamente por generosidade do ditador. portei-me como tal. um mendigo de reconhecimento e paz. fui, como tantos, um porco" - (p.188). 
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(In. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016).

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A máquina de fazer espanhóis - Valter Hugo Mãe

"Na entrega daquele homem, logo ali, havia uma sublimação evidente que partiria de uma dor estrutural"- (p. 45).
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"Um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão que para que, tão à frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de amanhã estejamos mais espertos quando pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que  se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distração cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. fazemos por descoordenação entre o que há certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós"- (p.47).
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"Não podemos ficar velhos e miseráveis a todas as coisas, temos de nos rebelar aqui e acolá, temos de estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa tomar cuidado com as nossas dores" - (p. 87).
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"Íamos todos progredir. que merda de palavra, o progresso. e o sucesso e tudo quanto o capitalismo usa para nos pôr a competir uns com os outros" - (p. 106).
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"achava que sentir que deus existe é como sentirmos que gostamos de alguém e passamos a vida inteira a creditar na correspondência desse amor para descobrirmos, mais tarde, que a pessoa esteve conosco por inércia, por comodidade. sentir o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios. muita coisa é apenas uma saudade. muitos dos sentimentos. é como lhe digo. sabe, até o suspirarmos por alguma coisa antes da revolução. ó senhor Cristiano, não vai falar outra vez do regime. não é isso, éque é importante pensar nestas coisas, respondia ele, estamos aqui todos fascistas, com pensamentos de um fascismo indelével a achar que antigamente é que era bom. este é o fascismo remanescente que vem das saudades. sabe, achamos que Salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos. quando dizemos que antigamente era bom é que estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de Salazar" - (p.129).
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"Quem fomos há de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas" - (p. 130).

(In. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca azul: 2016).


terça-feira, 20 de novembro de 2018

Christopher Robin - um reencontro inesquecível (trecho).

"- Christopher Robin. Que dia é hoje?
- É hoje.
- Meu dia favorito.
- O meu também, Pooh. O meu também.
- Ontem, quando era amanhã, foi um dia muito agitado pra mim".

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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Mamãe & eu & Mamãe - Maya Angelou (trechos)

"Com frequência me perguntam como consegui vir a ser o que sou. Como eu, nascida negra num país branco, pobre numa sociedade em que a riqueza é adorada e buscada a todo custo, mulher em um ambiente que apenas grandes embarcações e algumas locomotivas são favoravelmente descritas com o pronome feminino - como consegui tornar-me Maya Angelou?
Muitas vezes senti vontade de citar Topsy, a menina negra de A cabana do Pai Tomás. Eu me senti tentada a dizer: "Num sei. Eu cresci, só isso". Mas nunca usei essa resposta, por diversos motivos. Primeiro, porque li esse livro no início da minha adolescência e fiquei constrangida coma garota negra ignorante. Segundo, eu sabia a mulher que me tornei por causa da avó que eu amava e da mãe que vim a adorar.
O amor das duas me instruiu, educou e libertou. Morei com a minha avó paterna dos três aos treze anos de idade. Minha avó nunca me deu um beijo durante todos esses anos. Porém, sempre que havia visitas, ela me intimava a ficar na frente delas (...). "Certo, irmã, põe aí 242, depois 380, depois 174, depois 419; agora some tudo". Falava para as visitas: "Agora prestem atenção. Seu tio Willie já cronometrou o tempo dela. Ela consegue terminar em dois minutos. Esperem só".
Quando eu respondia, ela sorria, toda orgulhosa. "Viram? Minha professorinha".
O amor cura. Cura e liberta. Eu uso apalavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias" - pp.7-8.
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"Senti saudades, mas saia que estavam no melhor lugar para vocês. Eu teria sido uma péssima mãe. Não tinha a menor paciência. Maya, quando você tinha mais ou menos dois anos, você me pediu alguma coisa. Eu estava ocupada conversando, daí você bateu na minha mão, e, sem pensar duas vezes, te dei um tapa tão forte que você caiu da varanda. Isso não significa que eu não te amava; só significa que eu não estava preparada para ser mãe. Estou te explicando isso, não pedindo desculpas. Todos nós estaríamos arrependidos se eu tivesse ficado com vocês" pp.29-30 [Vivian Baxter explicando para a filha Maya o porquê de ter deixado ela e o irmão na casa da avó para que esta os criasse].
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"A única maneira de alguém tirar vantagem e vocês é se vocês acharem que podem conseguir alguma coisa de graça" -p.32
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"Pensei em minha mãe e percebi que ela era impressionante. Ela nunca me fez sentir como se tivesse envergonhado nossa família. O bebê não fora planejado e eutéria que repensar meus planos de estudos, mas, para Vivian Baxter, isso era simplesmente a vida sendo o que é. Ter um filho sem se casar não tinha sido errado. Era apenas algo ligeiramente inconveniente" - p.71
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"Vivian me deu tudo o que podia dar (...). Não refletiu que, sendo ela uma mulher, não poderia ser um homem, que como mãe, era incapaz de ser pai" - p.164

(In. Mamãe & eu & Mamãe. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018).

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

A formatura - Maya Angelou (trecho)

"E era mesmo importante, oh se era! Haveria brancos a assistir, e dois ou três falariam sobre Deus e o lar, o estilo de vida sulista, e Mrs. Parsons, a mulher do director, tocaria a marcha da cerimónia, enquanto os finalistas da primária desfilariam pelas coxias e se sentariam abaixo do estrado. Os finalistas do liceu esperariam nas salas de aulas vazias para depois fazerem a sua entrada triunfal.
(...)
O meu trabalho, por si só, granjeara-me um lugar cimeiro e eu seria uma das primeiras a subir ao estrado da cerimónia de final de ano (...). Nem faltas, nem atrasos, e o meu trabalho curricular estava entre os melhores do ano. Conseguia recitar a Constituição mais depressa do que o Bailey. 
(...)
A banda da escola começou a tocar uma marcha e todas as turmas desfilaram como tinham ensaiado. (...)
Donleavy olhou para o público uma vez (...), ajustou os óculos e começou a ler um molho de papéis.
Alegrava-se por estar ali e ver o trabalho realizado, exactamente como nas outras escolas.
(...)
Contou-nos as maravilhosas mudanças que nos esperavam, a nós, crianças de Stamps. Já tinham sido aprovados melhoramentos para a Escola Central (como é óbvio, a escola de brancos era a Central), que entrariam em vigor no início do ano seguinte. Um artista muito conhecido viria de Little Rock dar aulas de educação visual. O laboratório ia receber novíssimos microscópios e equipamento de química. Mr. Donleavy não nos deixou muito tempo sem saber quem é que tornara possíveis esses melhoramentos na Escola Central. E que nós não seríamos ignorados no esquema geral de melhoria que ele tinha em mente.
Disse que tinha referido a pessoas das altas esferas que um dos melhores jogadores da equipa de futebol da Escola Agrária e Técnica de Arkansas tinha estudado na óptima Escola Profissional do Condado de Lafayette. Aqui, ouviram-se menos ámens. Os que interromperam ficaram a pairar com o peso e a insipidez do hábito.
Em seguida pôs-se a elogiar-nos. Contou o quanto enaltecera o facto dos melhores jogadores de basquetebol da Universidade de Fisk ter encestado a sua primeira bola aqui mesmo, na Escola Profissional do Condado de Lafayette.
Os miúdos brancos iam poder tornar-se Galileus e Madames Curies e Edisons e Gauguins, e os nossos rapazes (as raparigas nem sequer eram incluídas nos planos) tentariam ser Jesse Owenses e Joe Louises.
Owens e o Bombardeio Negro eram grandes heróis do nosso mundo, masque direito tinha um funcionário do ensino do reino branco  de Little Rock de decidir que esses dois homens seriam os nossos únicos heróis? Quem é que resolveu que para Henry Read poder comprar um mísero microscópio e se tornar cientista teria de trabalhar como George Washington Carver, a engraxar sapatos? 
(...)
As palavras mortas do fulano caíram como tijolos no auditório e muitas delas - demasiadas - aterraram-me na barriga. Constrangida pelas boas maneiras que tinha aprendido à força, eu não podia olhar para trás, mas à minha direita e à minha esquerda, a orgulhosa turma que terminava ocurso em 1940 tinha deixado cair a cabeça. Todas as meninas da minha fila tinham arranjado uma coisa nova para fazer com os seus lencinhos. Umas dobravam os quadradinhos minúsculos em laços românticos, outras em triângulos, mas a maior parte amassava-os e depois alisava-os no colo amarelo.
(...)
A cerimônia de fim de curso, esse momento mágico de sussurros, folhos, prendas, felicitações e diplomas, acabou para mim antes mesmo de proferirem o meu nome. O que eu conquistara não era nada. Os mapas meticulosos, desenhados a tinta de três cores diferentes, aprender a soletrar palavras decassilábicas, decorar todo O Rapto de Lucrécia... não servira para nada. Donleavy desmascarara-os.
Éramos criadas e lavradores, biscateiros e lavadeiras, e qualquer aspiração a algo mais do que isso não passava de uma farsa e uma presunção.
(...)
Era horrível ser negra e não ter controlo nenhum sobre a minha vida. Era brutal ser jovem e já me terem domado para ficar sossegadinha a ouvir acusações feitas contra a minha cor, sem hipótese de me defender. Devíamos estar mortos, todos nós (...). Enquanto espécie, éramos uma abominação. Todos nós".
(In. Maya Angelou. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona: 2017, pp.173-183).

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Sei porque canta o pássaro na gaiola - Maya Angelou (trecho)

"Esse incidente tornou-se uma das pequenas lendas de Stamps. Uns anos antes de o Bailey e eu chegarmos à povoação, um homem foi perseguido por ter agredido sexualmente uma mulher branca. Quando tentava fugir, correu para dentro da Loja. A Mãezinha e o Tio Willie esconderam-no atrás do guarda-fatos até ser noite, deram-lhe mantimentos para uma viagem e mandaram-no ir à sua vida. Foi, no entanto, detido, e no tribunal, quando foi interrogado acerca dos seus movimentos no dia do crime, respondeu que, quando soube que andavam à sua procura, se refugiou na Loja de Mrs. Henderson.
O juiz pediu para convocarem Mrs. Henderson para ser ouvida e, quando a Mãezinha chegou e disse que era Mrs. Henderson, o juiz, o meirinho e outros brancos presentes na sala riram-se. O juiz tinha cometido uma gafe ao chamar "senhora" a uma mulher negra, mas ele era de Pine Bluff e nem lhe passou pela cabeça que a proprietária de uma loja na tal vila pudesse ser negra. Os brancos divertiram-se durante muito tempo à custa desse incidente, e os negros acharam que o corrido era prova do valor e excelência da minha avó" - (p.52).
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   "As pessoas de Stamps costumavam dizer que os brancos da nossa terra eram tão preconceituosos, que um negro nem sequer podia comprar gelado de baunilha. A não ser em 4 de Julho. Nos outros dias, tinha que se contentar com chocolate" - (p.53).
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"Mas, acima de tudo, o que suscitava mais inveja era a riqueza que lhes consentia o desperdício. Tinham tanta roupa que até davam vestidos em perfeito estado, só ligeiramente puídos debaixo dos braços, à turma de costura da nossa escola, para que as meninas mais velhas pudessem treinar.
Embora houvesse sempre generosidade no bairro negro, ela assentava na dor do sacrifício. O que quer que os negros dessem a outros negros provavelmente era tão desesperadamente necessário para quem dava como para quem recebia. Isto levava a que o dar e o receber fossem um intercâmbio precioso.
Eu não compreendia os brancos, nem porque tinham eles o direito de esbanjar dinheiro daquela maneira. Claro está que sabia que Deus também era branco, mas ninguém me convenceria nunca de que era preconceituoso" - (p.53).
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"Mas que mãe e filha se compreendem mutuamente ou sequer se compadecem da sua falta de compreensão recíproca?" -(p.72).


(In. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona, 2017).

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Em 1920 Freud se posicionou a respeito do aborto:



Em 25 de Janeiro de 1920 Sophie Freud, de 26 anos, morreu em um hospital de Hamburgo, onde se suspeita que ela ingressou por conta de um aborto mal praticado.
Em 15 de fevereiro do mesmo ano Sigmund Freud enviou uma carta a Arthur Lippman, médico que atendera a Sophie:
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"Estimado colega.
Le agradezco enormemente su detallado informe de la enfermedad. Por certo, jamás dudé de que usted y el resto de los médicos omitieram nada que hubiese podido contribuir a la recuperación o a mejória de mi hija. Los detalles que me brinda satisfacenenteramente el imperativo médico de lo forzoso e inevitable,es evidente que el caso estaba perdido desde el comienzo.
Lo que me resultó novedoso fue el dato de que el embarazohubiera modificadoa tal punto su estado físico y mental em um sentido desfavorable. Es probable que ya no se pueda evaluar em que medida su falta de resistência a la infección pudo deberse al desmejoramiento de su estado.
Pero el infeliz destino corrido por mi hija me parece albergar em outro aspecto uma advertência que nuestro grêmio no suele tomar muy em serio. En vista de uma ley necia e inhumana que obliga a continuar com el embarazo aun a mujeres que no lo desean, se torna evidente que el médico tiene el deber de indicar los médios adecuados e inócuos para prevenir embarazos (matrimoniales) no deseados.
Mi hija habló conmigo de este tema la última vez que estuve com ella el 19 de sept, ya que ambos jóvenes sufrían intensamente las limitaciones que se habían impuesto. No pude más que indicarle que acudiera al ginecólogo para obtener um pesario oclusivo intrauterino. Pero es evidente que algo salió mal. Espero que estas experiências sirvanpara que los ginecólogos reconozcan cada vez com mayor claridade la imporancia de la tarea que les compete.
Le agradezco sinceramente, estimado colega, las moléstias y sus condolências.
Su fiel
Freud".
(In. Freud. Cartas a sus hijos. Buenos Aires: Paidós, 2012, pp.605-606).


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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Lacan, o libertador da Psicanálise - por Foucault


Lacan. il `libertatore’ della psicanalisi" ["Lacan, o `libertador da psicanálise"; entrevista com J.Nobécourt; trad. A. Ghizzardi), Correre della sera vol. 106. n°212, 11 de setembro de 1981, p. 1.

     - Tem-se o hábito de dizer que Lacan foi o protagonista de uma "revolução da psicanálise". O senhor acha que esta definição de "revolucionário" é exata e aceitável?
     -Acho que Lacan teria recusado este termo de "revolucionário" e a própria idéia de uma "revolução em psicanálise". Ele queria apenas ser "psicanalista". Isso supunha, aos seus olhos, uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito. Por isso é que, apesar de uma aparéncia de discurso extremamente especulativo, seu pensamento não é estranho a todos os esforços que foram feitos para recolocar em questão as práticas da medicina mental.

- Se Lacan, como o senhor disse, não foi um "revolucionário", é certo, contudo, que suas obras tiveram uma grande influência sobre a cultura dos últimos decênios. O que mudou depois de Lacan, também, no modo de "fazer" cultura? 
     - O que mudou? Se remonto aos anos 50, na época em que o estudante que eu era lia as obras de Lévi-Strauss e os primeiros textos de Lacan, parece-me que a novidade era a seguinte: nós descobríamos que a filosofia e as ciências humanas viviam sobre uma concepção muito tradicional do sujeito humano, e que não bastava dizer, ora com uns, que o sujeito era radicalmente livre e, ora com outros, que o sujeito era determinado por condições sociais. Nós descobríamos que era preciso procurar libertar tudo o que se esconde por trás do uso aparentemente simples do pronome "eu" (je). O sujeito: uma coisa complexa, frágil, de que é tão difícil falar, e sem a qual não podemos falar.
     - Lacan teve muitos adversários. Ele foi acusado de hermetismo e de "terrorismo intelectual.". O que o senhor pensa sobre essas acusações? 
     - Penso que o hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura de seus textos não fosse simplesmente uma "tomada de consciência" de suas idéias. Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos fosse a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo. Quanto ao "terrorismo", observarei apenas uma coisa: Lacan não exercia nenhum poder institucional. Os que o escutavam queriam exatamente escutá-lo. Ele não aterrorizava senão aqueles que tinham medo. A influência que exercemos não pode nunca ser um poder que impomos.

(In. Foucault. Ditos e escritos - vol.1 - Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.Rio de Janeiro: Forense Universitária,2006, 329-330p.).