Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, como um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela.
(Fernando Pessoa. O livro do desassossego (trecho n*80). São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p.109-10).
"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia...Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? - O que for capaz de mudar-lhes os hábitos: eis o que mais apavora..." - ( v.I, p. 12).
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"...entregava-se àquele alheamento profundo, uma espécie de torpor, continuando o caminho sem dar a mínima importância às coisas circunstantes, sem querer reparar no que o cercava. De quando em vez, entretanto, resmungava palavras indistintas, em virtude do hábito de monologar, de que, ainda havia pouco, se confessava atacado. Percebia que, às vezes, as idéias se lhe embaralhavam no cérebro e adquiria consciência de sua extrema fraqueza" - (Raskólnikov,v.I, p.13).
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"Por que me lastimar?", disseste. Sim, o caso não é para lastimar, é preciso crucificar-me, pregar-me numa cruz e não me lastimar. Crucifique-me, pois, juiz, faça-o e, crucificando-me, tenha dó do crucificado. Então eu mesmo superarei o próprio suplício porque não é de alegria que tenho sede, mas de dor e de lágrimas" - (Marmeládov, v.I, p.37).
"Humanidade crápula, que se adapta a tudo" - (Raskólnikov).
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"Era assim que se torturava, propondo a si mesmo todas essas (...) antigas questões já familiares a seu espírito e que o fizeram sofrer de tal modo que seu coração estava todo ferido, marcado por elas. Havia muito tempo que nascera essa agonia que o atormentava: crescera no seu coração, acumulara-se, desenvolvia e, nestes últimos tempos, parecia ter se difundido dob a forma de uma espantosa, fantástica e selvagem interrogação que o torturava sem cessar, exigindo-lhe, imperiosamente, uma resposta" - (Raskólnikov, v.I, p.68).
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"Afastando-se de todos, vivia como uma tartaruga escondida em seu casco. Mesmo a presença da criada, encarregada de fazer a limpeza do quarto, que algumas vezes aparecia, o irritava e o punha furioso. É o que se dá com certos maníacos, absorvidos por uma idéia fixa" - (v.I,44-5).
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"Os sonhos de um homem doente tomam, sempre, um relevo extraordinário a ponto de a própria realidade confundir-se com eles. O quadro que, assim, se desenrola é por vezes monstruoso, mas o fundo, no qual se desenvolve, e todos os meandros da representação são, por sua vez, de tal modo verossímeis, cheios de minúcias tão imprevistas, tão engenhosas e tão adequadas, que o próprio indivíduo que os son...ha seria, certamente, incapaz de inventá-los acordado, fosse ele um artista da estatura de Púchkin ou Turguéniev. Estes sonhos - referimo-nos aos sonhos mórbidos - não são facilmente esquecíveis; produzem uma viva impressão sobre o organismo cansado, presa da excitação nervosa" - (v.I, p. 80).
"Não sabia aonde ir e até não se preocupava com isso. Não pensava senão numa coisa: que era preciso acabar com tudo isso, hoje, de uma vez, agora mesmo, de modo contrário não voltaria para casa, de modo algum, porque não queria continuar a viver assim. Mas como fazê-lo? (....). Esforçava-se para não pensar no assunto. Quanto mais recalcava esse pensamento, mais ele o torturava. não tinha mais do que um sentimento, não pensava senão em uma coisa: que era preciso que tudo mudasse, de uma maneira ou de outra, "custe o que custar", repetia com uma certeza desesperada e uma firmeza indomável" - (v.I, p.212-3).
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"-Como estás diferente, Sônia! Enlaças-me e vens abraçar-me depois que te confessei aquilo. Não tens consciência do que fazes.
(...) Um sentimento havia muito esquecido veio quebrantar a alma do moço. Ele não resistiu; duas lágrimas saltaram-lhe dos olhos, ficando-lhe suspensas nas pestanas.
-Então, não me abandonarás, Sônia? - disse com uma espécie de esperança.
-Não, nunca, em parte alguma! - prometeu ela. - Acompanhar-te-ei sempre (....). E por que, por que não te conheci mais cedo? Por que não vieste antes? (...)
- Bem vês que vim.
-Agora! Oh, que fazer agora? Juntos, juntos - repetiu com exaltação, enlaçando-o mais. Acompanhar-te-ei às galés". (diálogo entre Sônia e Raskolnikov,v.II, p.180-1).
"-...Agora choras e me abraças, mas dize... por quê? Porque não tive coragem de carregar meu fardo e vim descarregá-lo sobre outrem, dizendo-lhe: "Sofre também, ficarei aliviado". Entretanto, como podes amar um covarde assim?
-E tu também não sofres? - redarguiu ela.
O mesmo sentimento encheu de novo o coração do moço, enternecendo-o.
-Sônia, tenho mau coração: toma cuidado; isso explica muita coisa...
-Não, não, tu fizeste bem em vir! - exclamou Sônia (....).
Estavam ali, tristes e abatidos como dois náufragos atirados pela tormenta numa praia deserta. Ele olhava para Sônia e sentia o quanto ela o amava. Mas, coisa estranha, aquela imensa ternura de que ele se via objeto causava-lhe uma impressão aflitiva e dolorosa." - ( diálogo entre Sônia e Raskolnikov,v. II, pg.182-191).
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"...nunca responda pelo que se passa entre marido e mulher ou entre dois amantes. Há sempre ali um cantinho que fica escondido de todos e só é conhecido dos interessados " - (v.II,p. 264).
"Súbito, Sônia estava ao seu lado. Aproximou-se sem ruído, sentou-se perto dele (...). Ela sorria ao prisioneiro com ar amável e feliz, todavia, conforme seu hábito, estendeu-lhe timidamente a mão.
Fazia sempre esse gesto com timidez. às vezes abstinha-se dele ...com receio de ver repelida a mão, que ele parecia sempre aceitar com repugnância. Por vezes parecia mesmo aborrecido de vê-la e não abria a boca durante todo o tempo da visita. Em certos dias, ela tremia diante dele e deixava-o profundamente aflita. Agora, porém, as suas mãos podiam soltar-se (...) De repente, sem que o prisioneiro soubesse por que, uma força invisível lançou-o aos pés da moça. Pôs-se a chorar, abraçando-lhe os joelhos (...). Uma infinita felicidade irradiou-lhe dos olhos. Compreendia que ele a amava, sim, não podia duvidar. Amava-a infinitamente! O esperado minuto chegara afinal. Queriam falar, contudo nenhuma palavra puderam proferir (...). Ambos estavam magros e pálidos, mas, nas pobres faces transtornadas, cintilava a aurora de uma vida nova, de uma ressureição. Era o amor que os ressuscitava. O coração de um continha a fonte de vida inesgotável do outro....."
(Crime & Castigo. São Paulo.Abril Cultural,2010, v.II, p. 353-4).
Em 1895, Freud foi passar o verão no Schloss Belle Vue na Kobenzl, com a família Ritter von Schlag. Aqui, durante a noite de 23-24 julho, ele teve um sonho onde conseguiu decifrar pela primeira vez a realização do desejo, o qual aparece em ...sua "Interpretação dos Sonhos", como o "sonho da injeção de Irma". A Schloss foi demolida, mas hoje o local é marcado por um monumento com uma inscrição tirada de uma carta que Freud escreveu mais tarde, em 12 de junho de 1900, a Wilhelm Fliess: "Você realmente acha que algum dia será capaz de ler uma placa de mármore a inscrição:" Aqui na 24 de julho de 1895 o mistério dos sonhos foi revelado ao Dr. Sigmund Freud". Freud finalizava esta hipótese, na carta, com o comentário: "Até agora tenho poucas esperanças".
Com direção de Howard Alk e Seaton Findlay. Documentário biográfico, incluindo cenas de vários shows de Janis, transmitido pelo Telecine Cult, disponível no youtube em três partes.
"Se você não sabe para onde vai, qualquer caminho serve."
* "-Nesta direção", disse o Gato, girando a pata direita, "mora um Chapeleiro. E nesta direção", apontando com a pata esquerda, "mora uma Lebre de Março. Visite quem você quiser quiser, são ambos loucos." "-Mais eu não ando com loucos", observou Alice". "-Oh, você não tem como evitar", disse o Gato, "somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca". "-Como é que você sabe que eu sou louca?", disse Alice. "-Você deve ser", disse o Gato, "Senão não teria vindo para cá". * "... A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (...) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas mas não posso explicar a mim mesma...".
Documentário sobre o livro:
Primeira versão de Alice para o cinema, datada de 1903:
"De bom grado renunciaria a todos os métodos de satisfação proscritos pela sociedade, mas como saber que a sociedade recompensará tal renúncia oferecendo-me um dos métodos permitidos – mesmo ao preço de um certo adiamento? O que os chistes ...sussurram pode ser dito em voz alta: que as vontades e desejos dos homens têm o direito de se tornarem aceitáveis ao lado de uma moralidade severa e cruel (...). Na medida em que a arte de curar não tem prosseguido em assegurar (a eternidade de) nossa vida e na medida em que os arranjos sociais não a têm tornado mais agradável, será impossível sufocar dentro de nós a voz que se rebela contra as exigências da moralidade (...). Deve-se jungir a própria vida à vida dos outros tão intimamente e poder identificar-se com eles de tal maneira que a brevidade da própria vida seja vencida; não se deve, pois, satisfazer às exigências das próprias necessidades ilegitimamente, mas antes deixá-las insatisfeitas porque só a continuidade de tantas exigências há de desenvolver o poder de mudança da ordem social”.
(Os chistes e a sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago: 2006 [1905],pgs.108-9).
Posso responder-lhe sem demora, pois tenho pouco a fazer. O "Moisés" II foi concluído anteontem, e as pequenas dores esquecemos melhor numa troca de idéias com amigos.
Para o escritor, a imortalidade significa que ele será amado por muitas pessoas desconhecidas. Mas eu sei que não chorarei sua morte. Pois você sobreviverá a mim por muitos anos e, espero, se consolará rapidamente, e me deixará seguir vivendo em sua memória amiga, a única espécie de imortalidade limitada que reconheço.
No momento em que nos perguntamos sobre o valor e o sentido de uma vida, estamos doentes, pois objetivamente tais coisas não existem. Ao fazê-lo, apenas admitimos possuir um quê de libido insatisfeita, a que algo mais deve ter acontecido, uma espécie de fermentação que conduz à tristeza e à depressão. Essa minha explicação não é grande coisa, certamente. Talvez porque eu mesmo seja muito pessimista. Anda em minha cabeça um advertisement que considero o mais ousado e bem-sucedido exemplo de propaganda americana:
"Why live, if you can be buried for ten dollars?"
["Por que viver, se você pode ser enterrado por dez dólares?"].
Lun** refugiou-se junto a mim depois de um banho. Se a compreendo bem, manda que lhe agradeça a lembrança. Topsy já sabe que está sendo traduzida?
Escreva breve!
Afetuosamente,
Freud.
Notas:
*Marie Bonaparte (1882-1962), princesa da Grécia, foi paciente, depois discípula e amiga de Freud.
** Lun era uma cadela de Freud, da raça chow. Topsy, também uma cadela chow, pertencia a Marie Bonaparte; a referência da última frase é ao trabalho que Marie Bonaparte escreveu sobre ela, que estava sendo traduzido por Freud e por sua filha Anna.
(In:Sigmund Freud e o Gabinete do Dr. Lacan. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 129).
"Não se devem assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem de um instrumento musical atingido pelo golpe de alguma força externa, e não tocado pela mão de um instrumentista; eles não são destituídos de sentido, não são absurdos; não... implicam que uma parcela de nossa reserva de representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Pelo contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade - realizações de desejos; podem ser inseridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis da vigília; são produzidos por uma atividade mental altamente complexa".
(Sigmund Freud. In: A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001 [1900], p.136).
"Sou da opinião, contudo, que quando um histérico cria uma expressão somática para uma idéia emocionalmente dolorida, através da simbolização, isso depende menos do que se poderia imaginar de fatores pessoais ou voluntários. Ao tomar uma expressão verbal ao pé da letra e sentir uma "punhalada no coração" ou uma "bofetada no rosto" após um comentário depreciativo vivido como fato real, o histérico não está tomando liberdades com as palavras, mas simplesmente revivendo mais uma vez as sensações que a expressão verbal deve sua justificativa (....). O que poderia ser mais provável do que a idéia de que a figura de linguagem "engolir alguma coisa", que empregamos ao falar de um insulto ao qual não foi apresentada nenhuma réplica, origin ou-se na verdade das sensações inervatórias que surgem na faringe quando deixamos de falar e nos impedimos de reagir ao insulto? Todas essas sensações e inervações pertencem ao campo da "Expressão das Emoções", que, como nos ensinou Darwin [1872], consiste em ações que originalmente possuíam um significado e serviam a uma finalidade.
Em sua maior parte, estas podem ter-se enfraquecido tanto que sua expressão em palavras nos parece ser apenas um quadro figurativo delas, ao passo que, com toda probabilidade, essa decrição um dia foi tomada em seu sentido literal; e a histeria tem razão em restaurar o significado original das palavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum".
"Por que nenhum homem de quem eu goste gosta de mim? É por isso que eu canto blues. Porque os blues são a eterna canção da mulher sozinha, iludida, enganada, esperando..." (p..24).
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"Antes, as pessoas me diziam que eu era infeliz porque estava na adolescência, mas que um dia tudo ia ficar legal. E eu acreditava. Primeiro achava que quando o homem certo aparecesse, seria a hora, depois que quando eu pudesse trepar em paz..., depois que se eu conseguisse algum dinheiro etc. Até que um dia, sentada num bar, entendi de repente que nunca ia acontecer nada, que nunca ia ficar legal, que o tempo todo tem alguma coisa errada, sempre, só muda o problema. Não era um prazo de espera, era toda a minha vida"(p.101).
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"Não sei se estou sendo insensível se disser que o blues do negro é sempre baseado na falta de: ´Estou triste porque não tenho mulher, porque não tenho dinheiro, porque não tenho isso ou aquilo´. E não é o que está faltando que faz você infeliz, mas o desejo específico por alguma coisa que não pode conseguir. Não é o nada, o não-ter; é o querer" (p.101).
(In: Janis Joplin por ela mesma - Atanásio Cosme (org.). São Paulo: Martin Claret, 2004).
"As coisas são ou não são de uma determinada maneira. A cor do dia. O toque da água salgada nas suas pernas queimadas.
Algumas vezes a água é amarela. Outras vermelha. Mas que cor fica na memória, isso depende do dia.
Não vou contar a história do jeito que aconteceu. Vou contar do jeito que eu me lembro".
"Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade. É incompreensível (...) que a idéia da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona.
(...) Talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres vivos deixem de existir sobre a Terra; mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta".
(Sigmund Freud. A transitoriedade. In: Obras completas. Companhia das Letras, São Paulo: 2010 [1914-16], v.12, p.249).
"A civilização foi adquirida pela renúncia à satisfação instintual, e exige de cada "recém-chegado" essa mesma renúncia. Durante a vida individual há uma contínua transformação de coação externa em coação interna. As influências culturais levam a que tendências egoístas cada vez mais se convertam em altruístas, sociais, pela adjunção de elementos eróticos. Enfim, é lícito supor que toda coação interna que se faz notar no desenvolvimento do ser humano era originalmente, ou seja, na história da humanidade, apenas coação externa" - (p.220-1).
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"O ser individual se encontra não apenas sob o influxo do seu meio cultural presente, mas está sujeito também à influência da história cultural de seus antepassados" - ( p.221).
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"Quem é obrigado a reagir continuamente segundo preceitos que não são expressão de seus pendores instintuais vive acima de seus meios, psicologicamente falando, e pode objetivamente ser designado como um hipócrita, esteja ele consciente ou não dessadiscrepância. É inegável que nossa atual civilização favorece de maneira extraordinária a produção de tal espécie de hipocrisia. Podemos ousar afirmar que ela está edificada sobre essa hipocrisia, e que teria que admitir profundas mudanças, caso as pessoas se propusessem viver conforme a verdade psicológica. Portanto, existem muito mais hipócritas culturais do que homens realmente civilizados, podendo-se mesmo considerar o ponto de vista de que um certo grau de hipocrisia cultural seja indispensável para a manutenção da cultura, porque a aptidão cultural já estabelecida nos homens de hoje talvez não bastasse para essa realização. Por outro lado, a manutenção da cultura, ainda que sobre uma base tão duvidosa, oferece a perspectiva de preparar o caminho, em cada nova geração, para uma transformação instintual mais ampla, portadora de uma cultura melhor" - (p.223-4).
"Argumentos lógicos são impotentes em face de interesses afetivos" - (p.228).
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"Uma proibição tão forte pode se dirigir apenas a um impulso igualmente forte. O que nenhuma alma humana cobiça não é necessário proibir, exclui-se por si mesmo" - ( p.241).
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"Não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos ´pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente? Isso não parece uma realização maior, seria antes um passo atrás em vários aspectos, uma regressão, mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e nos tornar a vida novamente suportável. Suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos. A ilusão perde o valor se nos atrapalha nisso.
Recordemo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra.
No momento atual caberia mudá-lo: Si vis vitam, para mortem. Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte" - (p. 246).
Penso saber que o amor não tem nada que ver com a idade, como acontece com qualquer outro sentimento. Quando se fala de uma época a que se chamaria de descoberta do amor, eu penso que essa é uma maneira redutora de ver as relações entre as pessoas vivas. O que acontece é que há toda uma história nem sempre feliz do amor que faz que seja entendido que o amor numa certa idade seja natural, e que noutra idade extrema poderia ser ridículo. Isso é uma ideia que ofende a disponibilidade de entrega de uma pessoa a outra, que é em que consiste o amor.
Eu não digo isto por ter a minha idade e a relação de amor que vivo. Aprendi que o sentimento do amor não é mais nem menos forte conforme as idades, o amor é uma possibilidade de uma vida inteira, e se acontece, há que recebê-lo. Normalmente, quem tem ideias que não vão neste sentido, e que tendem a menosprezar o amor como factor de realização total e pessoal, são aqueles que não tiveram o privilégio de vivê-lo, aqueles a quem não aconteceu esse mistério.