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sexta-feira, 28 de abril de 2017

Com amor - carta de Celso Afonso Gay de Castro pra Ana Cavalli


"Ana meu amor....
Ás vezes a convivência consigo mesmo se torna difícil. São aquelas horas perdidas na noite, em que uma vaga tristeza, um cansaço sem sono, uma grande saudade e uns tragos a mais ajudam a aprofundar uma depressão que já é quase estrutural.
Normalmente trato de dormir, sair, ler, tomar outros tragos, tirar o peso de cima.
Hoje é uma dessas noites. Depois de muito tempo pensando na vida, parece que a única coisa que devo fazer é escrever-te; afinal, pensar na vida hoje significa em grande medida pensar em ti.
A opção pela revolução é um elemento determinante nas coisas que faço, de uma maneira estrutural. Não que eu me considere um supermilitante, e que todos os meus atos de manhã a noite sejam reflexo da minha consciência bolchevique. O fato é que há muito tempo minha preparação principal e minha ocupação quase total se referem a um projeto revolucionário.
Também não quero dizer que todo o meu tempo eu dedico ao trabalho político, já que boa parte desse tempo eu dedico a nada. Depois de quase dois anos em Paris, consumindo-me no trabalho, na gráfica e em reuniões e mais reuniões de todos os tipos com produtividade política absolutamente insatisfatória, eu estava buscando uma alternativa.
Mudar de vida, de tipo de vida como única maneira de me inserir num projeto politico realmente sério e viável".
*
(In. Filme Diário de uma busca - de Flávia Castro).

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domingo, 16 de abril de 2017

Bukowski - Morte & vida de um velho safado

"As 11:55 da manhã de quarta-feira, 9 de março de 1994, Bukowski morreu. Estava com setenta e três anos.
(...)
A ligação entre \mariana e o pai havia sido extremamente íntima. "Eu sempre soube que, se alguma coisa desse errado, tudo que eu tinha a fazer era pedir ajuda e ele dava um jeito", diz ela. "Mesmo sendo uma pessoa adulta, que tinha se virado por muitos anos, e me virado bem, notei que, além de sentir a falta dele depois que morreu, também sentia falta da segurança que tinha lá no fundo, sabendo que tudo estava sempre BEM, mas que, se não estivesse, podia chama-lo e, de algum modo, ele fatia com que tudo ficasse bem".
Embora Bukowski garantisse ser um solitário, alguém que não precisava ou não queria amigos íntimos, havia uma quantidade de homens e mulheres para quem sua morte foi uma grande perda.
(...)
Os obituários do jornal destacaram a imagem da vida desregrada de Bukowski. Ele era o "bardo do mar", um escritor simples que inexplicavelmente tinha um culto de seguidores. Com exceção de ocasionais boas críticas de seus romances e da atenção dispensadas a Barfly, a mídia de massa sempre o tratara com desprezo.
Contudo, Bukowski é único na literatura americana moderna, inclassificável e muito imitado. Seu estilo simples de prosa e poesia teve origem nas ideias comuns: ele foi influenciado, inicialmente, pela leitura de Hemingway e Fante, mas, como ele mesmo dizia, não se ria muito com Hemingway, então acrescentou humor. O dia a dia foi o tema escolhido por Bukowski, e não aventuras heroicas ou pessoas glamourosas, mas a experiência dos americanos não tão bem-sucedidos, vivendo em apartamentos baratos e tendo trabalhos degradantes. Escreveu de modo convincente sobre esse mundo, embora exagerasse e editasse sua ´própria história de vida. Também falou de relações humanas com sinceridade: a relação entre uma criança e seus pais, entre homens e mulheres.
Em função do seu gosto por escrever e pela bebida, seu desejo de sensacionalizar sua vida e de ser gratuitamente vulgar, Bukowski pôs-se em posição de ser criticado. Também publicou demais, com certeza muita poesia. Mas quando se lê seu trabalho cuidadosamente - os seis romances, as dúzias de contos, o roteiro e os inúmeros livros de poesia - vê-se uma filosofia pessoal descompromissada que é convincente, senão desafiadora: uma rejeição a regras impostas e degradantes, à autoridade e pretensão; uma aceitação do fato de que a vida humana é quase sempre desprezível e que as pessoas são frequentemente cruéis umas com as outras, mas que essa vida também pode ser bonita, sensual e engraçada".


(In. Howard Sounes. Vida e loucuras de um velho safado. São Paulo: Veneta, 2016, p. 325-328).


domingo, 12 de março de 2017

Para educar crianças feministas - um manifesto

"3. Terceira sugestão: Ensine a ela que "papéis de gênero" são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa "porque você é menina".
"porque você é menina" nunca é razão para nada. Jamais.
Lembro que me diziam quando era criança para "varrer direito, como uma menina". O que significava que varrer tinha a ver com ser mulher. Eu prefiria que tivessem dito apenas para "varrer direito, pois assim vai limpar melhor o chão". E prefiria que tivessem dito a mesma coisa para os meus irmãos.
Ultimamente ocorreram uns debates nas redes sociais nigerianas sobre as mulheres e a cozinha, que diziam que as esposas precisam cozinhar para os maridos. É engraçado, quero dizer, engraçado como uma coisa triste, que em 2016 ainda estejamos falando de cozinhar como uma espécie de "teste de boa esposa" para as mulheres.
Saber cozinhar não é algo que vem pré-instalado na vagina. Cozinhar se aprende. Cozinhar - o serviço doméstico em geral - é uma habilidade que se adquire na vida, e que teoricamente homens e mulheres deveriam ter. É também uma habilidade que às vezes escapa tanto aos homens quanto às mulheres.
Também temos de questionar a ideia do casamento como um prêmio para as mulheres, pois é o que está na base desses debates absurdos. Se pararmos de condicionar as mulheres a verem o casamento dessa forma, não precisaremos discutir tanto se uma esposa precisa cozinhar para ganhar esse prêmio.
Acho interessante como o mundo começa a inventar papéis de gênero desde cedo. Ontem fui a uma loja infantil para comprar uma roupa para Chizalum. Na seção das meninas, havia umas coisas pálidas espantosas, em tons de rosa desbotado. Não gostei. A seção dos meninos tinha roupas num tom azul forte e vibrante. Como achei que o azul ia ficar lindo em contraste com a pele morena dela - e sai melhor nas fotos -, comprei uma roupinha azul. A moça do caixa me disse que era o presente ideal para um garotinho. Falei que era para uma menininha. Ela fez uma cara horrorizada: "Azul para uma menina?".
Fico imaginando quem foi o gênio do marketing que inventou essa dualidade rosa-azul. Havia também uma seção de "Gênero neutro", com uma infinidade de cinzassem graça. "Gênero neutro" é uma bobagem, porque tem como premissa a ideia do masculino como azul e do feminino como rosa, sendo o "gênero neutro" uma categoria própria. Por que não organizar as roupas infantis por idade e expô-las em todas as cores? Afinal, todos os bebês têm o corpo parecido.
Olhei a seção de brinquedos, também organizada por gênero. Os brinquedos para meninos geralmente são "ativos", pedindo algum tipo de "ação" - trens, carrinhos -, e os brinquedos para meninas geralmente são "passivos", sendo a imensa maioria bonecas. Fiquei impressionada com isso. Eu não tinha percebido ainda como a sociedade começa tão cedo a inventar a ideia do que deve ser um menino e do que deve ser uma menina. Eu gostaria que os brinquedos fossem divididos por tipo, não por gênero.
(...)
 Se não empregarmos a camisa de força do gênero nas crianças pequenas, daremos a elas espaço para alcançar todo o seu potencial. Por favor, veja Chizalum como indivíduo. Não como uma menina que deve ser de tal ou tal jeito. Veja seus pontos fortes e seus pontos fracos de maneira individual. Não a meça pelo que uma menina deve ser. Meça-a pela melhor versão de si mesma.
Uma jovem nigeriana uma vez me contou que passou muitos anos se comportando "como menino" - gostava de futebol e não achava graça em vestidos -, até que a mãe a obrigou a abandonar seus interesses "de menino" e agora ela agradece à mãe por ajuda-la a começar a se comportar como menina. A história me deixou triste. Fiquei imaginando o que ela teve de abafar e silenciar dentro de si, o que sua personalidade perdeu, pois aquilo que a moça chamava de "se comportar como um menino" era, na verdade, se comportar como ela
mesma.
(...)
Os estereótipos de gênero são tão profundamente incutidos em nós que é comum os seguirmos mesmo quando vão contra nossos verdadeiros desejos, nossas necessidades, nossa felicidade. É muito difícil desaprende-los, e por isso é importante cuidar para que Chizalum rejeite esses estereótipos desde o começo. Em vez de deixa-la internalizar essas ideias, ensine-lhe autonomia. Diga-lhe que é importante fazer por si mesma e se virar sozinha. Ensine-a a consertar as coisas quando quebram. A gente supõe rápido demais que as meninas não conseguem fazer várias coisas. Deixe-a tentar".
*
(In. Chimanda Ngozi Adichie.  Para educar crianças feministas - um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 21-28).


quinta-feira, 9 de março de 2017

A vida invisível de Eurídice Gusmão

 
"Foi uma cerimônia simples, seguida por uma festa simples, e por uma lua de mel complicada. O lençol não ficou sujo, e Antenor se indignou.
"Por onde raios você andou?"
"Eu não andei por canto algum".
"Ah, andou, mulher".
"Não, não andei".
"Não me venha com desculpas, você sabe muito bem o que deveríamos ter visto aqui".
"Sim, eu sei, minha irmã me explicou".
"Vagabunda. Eu me casei com uma vagabunda".
"Não fale assim, Antenor".
"Pois eu falo e repito. Vagabunda, vagabunda, vagabunda".
Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração.
Nas semanas seguintes a coisa se acalmou, e Antenor achou que não precisava devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito. Além do mais, o incidente da noite de núpcias serviu para deixa-lo mais alto, fazendo com que precisasse baixar a cabeça ao se dirigir à esposa. Lá de baixo Eurídice aceitava. Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras "Do lar".
Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! 
Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!
Responsável pelo aumento de cem por cento do núcleo em menos de dois anos, Eurídice achou que era hora de se aposentar da parte física de seus deveres matrimoniais. Tentou explicar a decisão para Antenor, através de umas indisposições que passou a ter, nas horas soltas das manhãs de sábado e naqueles momentos escuros, depois das nove da noite. Mas Antenor não queria saber de não me toques. Ele era um homem de hábitos e de rotinas, como aquela que envolvia achegar-se à camisola da mulher e afundar o nariz no macio do pescoço branco. Eurídice então se fez ouvir de outras formas. Ganhou um monte de quilos que falavam por si, e gritavam para Antenor se afastar.
Ela emendava o café da manhã no lanche das dez, o almoço no lanche das quatro e o jantar na ceia das nove (...). Quando viu que estava no ponto, que era o ponto de fazer o marido nunca mais se aproximar, adotou formas saudáveis de alimentação. Fazia dieta nas manhãs de segunda-feira e no intervalo entre as refeições.
O peso de Eurídice se estabilizou, bem como a rotina da família Gusmão Campelo. Antenor saía para o trabalho, os filhos saíam para a escola e Eurídice ficava em casa, moendo carne e remoendo os pensamentos estéreis que faziam da sua uma vida infeliz. Ela não tinha um emprego, ela já tinha ido para a escola, e como preencher as horas do dia depois de arrumar as camas, regar as plantas, varrer a sala, lavar a roupa, temperar o feijão, refogar o arroz, preparar o suflê e fritar os bifes?
Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.
E foi assim que concluiu que não deveria pensar".
 
 
 
(In. Maria Batalha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 9-11).


Em busca do real perdido - Alain Badiou

"E então lamento ter de dizer aqui que o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a palavra "democracia" é uma palavra admirável, e será preciso retomá-la e redefini-la, de um jeito ou de outro. Mas a democracia de que estou falando é a que funciona em nossas sociedades de maneira institucional, estatal, regular, normatizada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora da morte de Molière - que o capitalismo é esse mundo que está sempre representando uma peça cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem representada, é a melhor peça de que o capitalismo é capaz. Os espectadores e os participantes em geral aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é que é um rito para o qual são convocados e ao qual se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a democracia imaginária que é representada e, por baixo, o processo mundializado do capitalismo e da pilhagem imperial que prossegue, com seu real impalpável, cuja descrição não serve para nada. Enquanto essa peça durar e um vasto público continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou seja, a capacidade de dividi-lo, de obriga-lo a uma cisão de si mês que seja ativa e que prometa sua dissipação, sua destruição, permanecerá politicamente inacessível. Porque se essa peça é a peça do semblante democrático, se ela é a máscara que fornece ao capitalismo imperial a cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, nenhuma possibilidade de arrancar essa máscara, de interromper essa peça de teatro, está na ordem do dia, então alguma coisa  permanece politicamente inacessível para qualquer empreendimento político de acesso ao real nu".
 
(In. Alain Badiou. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica: 2017, pp. 25-26). 


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Enclausurado - Ian McEwan

 
"Então, aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter.
Estou mergulhado em abstrações, e só as crescentes relações entre elas criam a ilusão de um modo conhecido. Quando ouço a palavra "azul", que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de "verde" - que também nunca vi. Considerando-me um inocente, descomprometido com lealdades o obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse, registraria apenas meu futuro dia de nascimento. Sou, ou era, apesar do que me dizem agora os geneticistas, uma lousa em branco. Mas uma lousa porosa e escorregadia, inútil para ser usada numa sala de aula ou no telhado de uma cabana, uma lousa que escreve por si mesma à medida que cresce a cada dia e se torna menos branca. Considero-me um inocente, mas tudo indica que participo de uma conspiração. Minha mãe, abençoado seja seu incansável e barulhento coração, parece estar envolvida.
Parece. Mãe? Não, está de fato. Você está. Está envolvida. Sei desde o começo. Deixe que eu o evoque, aquele momento de criação que chegou com meu primeiro pensamento. Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa. Era eu? Autoadmiração excessiva. Era agora? Dramática demais. Ou algo que antecedia ambas, continha ambas, uma só palavra acompanhada de um suspiro ou de um apagão mental de aceitação, de puramente ser, algo como - isto? Muito pedante. Por isso, chegando mais perto, minha ideia foi Ser. Ou, se não isso, sua variante gramatical, é. Esse foi meu conceito original, que tem na essência é. Apenas isso. Correspondendo a Es muss sein. O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece. Minha mãe está envolvida numa conspiração e, consequentemente, eu também estou, mesmo se meu papel consistir em fazê-la fracassar. Ou, como um tolo relutante, se me demorar demais aqui, então o de ir à forra"".
 
(Ian McEwan. Enclausurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp.  6-7).


domingo, 22 de janeiro de 2017

Bauman por Bauman

 
"Em nenhuma época esteve tão presente a máxima de John Donne ("Nenhum homem é uma ilha...Cada homem é parte do continente". "A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte da humanidade. Por isso nunca procures saber por quem os sins dobram, eles dobram por ti."). Não se trata mais da evocação puramente  poética de uma compaixão nobre, porém idealista. É agora um relato factual de vínculos genuínos, tangíveis, que conectam a difícil condição de todos nós. Somos todos responsáveis por qualquer coisa que aconteça a qualquer um de nós, e o postulado de assumir responsabilidade por nossa responsabilidade envolve agora a necessidade de aliviar sofrimentos em qualquer canto do planta em que eles possam ocorrer, incluindo os sofrimentos mais distantes.
Esse novo desafio amplia até o limite (ou talvez mesmo além dele) a durabilidade do "impulso moral", considerando-se que por muitos séculos esse impulso costumava operar (e assim aprendeu a se sentir realmente em casa) apenas na proximidade do outro. Agora ele precisa abarcar um outro distante, na verdade "abstrato", um "outro" que é improvável conhecer, e que dificilmente será algum dia confrontado cara a cara.
Intrépidas e infatigáveis equipes de TV trazem para os nossos lares, de tempos em tempos, as imagens dessa miséria distante. Isso tem um efeito instantâneo, como acontece com toda proximidade do sofrimento humano. Ajusta a enormidade das novas responsabilidades à capacidade de nossa sensibilidade moral. Seria isso, contudo, suficiente para avaliar a magnitude dos desafios? O resultado comum das campanhas promovidas pela mídia é (...) uma sucessão de "farras piedosas" e períodos de "fadiga da caridade". De tempos em tempos ocorrem surtos de compaixão, mas é só isso, e não mais do que nossos sentimentos morais podem suportar por si mesmos. Logo aplacados, eles tiram uma soneca até o próximo "evento" em que serão uma vez mais brutalmente acordados para o fato de que nada pode ser alterado no que se refere ao volume e à profundidade da miséria humana, a despeito dessas breves explosões de piedade.
Por sua natureza, as "farras piedosas" conduzidas pela mídia são mal-equipadas para sedimentar um vínculo institucionalizado sólido, permanente e efetivo, para além dos surtos temporários de sentimentos do tipo "somos todos parte do mesmo continente". Comprovam a horrorosa semelhança do sofrimento humano, mas ficam muito longe de expor suas causas, como os meios de subsistência destruídos pelo livre comércio, os solos devastados pela monocultura imposta pelo mercado ou as inimizades tribais apoiadas e instigadas pela indústria e pelo tráfico de armamentos que enchem os cofres de nossos tesouro e aumentam o PIB doméstico.
Não admira que as raízes da miséria permaneçam intactas, independentemente do êxito que possam ter tido as sucessivas campanhas de "ajuda humanitária". Além disso, nossa própria responsabilidade direta ou indireta pela miséria que lamentamos com tanta sinceridade permanece encoberta. É como se não devêssemos coisa alguma a essas pessoas miseráveis. O que fazemos por elas não deveria ser visto como uma tentativa de quitar nossas dívidas e nos arrepender de nossos pecados, mas louvado como expressão de nossos nobres sentimentos, aumentando assim nossa glória moral".
 
(Bauman por Bauman. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 137-138).
 
 


domingo, 15 de janeiro de 2017

A filha perdida - Elena Ferrante

 
" Eu observava minhas filhas quando elas estavam distraídas e sentia por elas uma complicada alternância entre simpatia e antipatia. Bianca é antipática, eu pensava às vezes, e sofria por isso. Depois eu descobria que ela era muito querida, tinha amigas e amigos,  sentia que só quem a achava antipática era eu, a mãe dela, e aquilo me dava remorso. Eu não gostava de sua risadinha de escárnio. Não gostava de sua ânsia de querer sempre mais do que os outros: à mesa, por exemplo, ela pegava mais comida do que todos, não para comer, mas para ter certeza de que não perderia nada, deque não seria negligenciada ou passada para trás. Eu não gostava da sua mudez teimosa quando ela percebia que havia errado, mas não conseguia admitir o erro.
Você também é assim, dizia meu marido. Talvez fosse verdade, e o que me parecia antipático em Bianca se tratasse somente do reflexo da antipatia que eu sentia por mim mesma. Ou não, não era tão simples, tudo era mais intrincado. Mesmo quando reconhecia nas duas garotas aquilo que eu considerava minhas qualidades, sentia que algo não funcionava. Tinha a impressão de que elas não sabiam usá-las bem, de que a melhor parte de mim mesma, no corpo delas, resultava em um enxerto equivocado, uma paródia, e ficava com raiva, sentia vergonha.
Na verdade, pensando bem, o que eu mais amava nas minhas filhas era o que me parecia estranho. Delas - eu sentia - agradavam-me mais os traços que haviam puxado ao pai, mesmo após o fim tempestuoso do casamento. Ou os traços que tinham vindo de seus antepassados, dos quais eu nada sabia. Ou os traços que pareciam, na combinação dos organismos, uma invenção caprichosa do acaso. Em outras palavras, quanto mais eu me sentia próxima delas, mais parecia não carregar a responsabilidade por seus corpos.
Mas aquela proximidade estranha era rara. Os incômodos, os desgostos, os conflitos delas tornavam a se impor, continuamente, e eu me amargurava, sentia culpa. De alguma maneira, eu era sempre a origem e o ponto de fuga dos sofrimentos delas. Acusavam-me em silêncio ou gritando. Ressentiam-se não apenas da má distribuição das semelhanças evidentes, mas também das secretas, aquelas que percebemos tarde, a aura dos corpos, justamente, a aura que atordoa como uma bebida forte. Tons de voz quase imperceptíveis. Um gesto pequeno, um modo de bater as pálpebras, um sorriso-careta. O passo, o ombro que pende um pouquinho à esquerda, um balançar gracioso dos braços. A impalpável mistura de movimentos mínimos que, combinados de um certo modo, tornam Bianca sedutora e Marta, não, ou vice-versa, e então causam soberba, dor. Ou ódio, porque a potência da mãe parece sempre se dar de maneira injusta, desde o nicho vivo do ventre".
 
(In. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 59-60).


quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Os garotos da minha vida - Beverly Donofrio (trecho)



"Então, um dia, Olivia, a única italiana do prédio, habitado quase que só por porto-riquenhos, decidiu que seria minha amiga e começou a contar a história da sua vida em capítulos. Olivia era uma autêntica solteirona. Tinha uns sessenta anos, era baixa e gorda, dando a ideia de um tijolo. Seu cabelo era pintado de preto-azulado, e na rua ela usava uma capa preta horrível batendo nos tornozelos e uma boina escocesa vermelha (...). Toda vez que eu subia as escadas o apartamento de Olivia estava aberto, e ela me convidava para bater papo, o que significava que me contaria mais uma parte da história da sua vida.
(...) Na última vez em que fui lá, Olivia nem me ofereceu café solúvel antes de começar a falar, numa voz entrecortada, como se o ar estivesse preso no peito. Percebi que naquele dia chegaríamos ao ponto importante da sua história.
- Minha vida foi arruinada. Está vendo esses sapatos pretos horríveis? São sapatos ortopédicos. Você nunca notou como eu ando? Devagar, como o tique-taque do relógio. As crianças caçoavam de mim quando a gente ia para a escola. Eu nunca podia manter o mesmo paço que elas. Nunca me casei por causa dos meus pés. Falo três línguas mas nunca viajei. Desisti de ser religiosa porque sou muito amarga. 
Naquela noite, fui acordada com um bater de asas histérico. Um pardal estava voando dentro da minha sala, batendo nas paredes, esbarrando a cabeça no teto. Como eu não conseguia ver o passarinho, muito menos pegá-lo, chamei Jason.
Ele encurralou o pardal na prateleira de baixo da estante de livros e pegou-o com as mãos em concha. Olhou para o bichinho um instante, fez um carinho na sua cabeça com o dedo, esticou a mão na janela e o passarinho saiu voando.
Quando voltei para a cama não consegui mais dormir. Fiquei pensando nos passarinhos que saíam dos ninhos voando e ficavam presos em algum lugar. Depois me lembrei dos pés de Olivia, que lhe haviam atrapalhado a vida. Na verdade, ela é que tinha atrapalhado sua vida pensando nos pés.
Durante metade da minha vida, desde que fiquei grávida, sempre pensei que Jason tinha atrapalhado a minha vida. Mas essa era uma forma de ver as coisas. Outra forma era achar que Jason havia enriquecido a minha vida, e talvez evitado que eu entrasse em mais encrenca. Com um filho para cuidar, por pior que eu agisse, tinha que manter pelo menos um pé no chão, sempre. Talvez eu tenha tido vantagem com isso. Talvez nunca tivesse oportunidade de ir para a faculdade se não fosse uma mãe vivendo à custa do seguro social. Talvez não me sentisse tão mais velha agora se não tivesse tido um filho; ao ser forçada a crescer depressa, me rebelei e me mantive criança muito mais tempo, o que contribuiu para minha vida boêmia (que começava a ficar fora de moda na metade da década de oitenta) e minha falta de dinheiro (idem), mas também manteve minhas perspectivas frescas, com amigas que queriam comprar Harley-Davidsons aos 45 anos de idade, e uma porção de interesses focalizados na alegria.
Jason tinha arruinado ou enriquecido a minha vida. A escolha era minha. A gente passa por umas coisas na vida que não pode controlar, portanto é melhor aprender com elas do que se deixar vencer por elas. Como Olivia, cheia de fel e amargura num apartamento branco brilhante, sozinha com passarinhos presos na janela".
(In. Os garotos da minha vida. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 193-195).
 
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Site oficial de Beverly Donofrio:
 
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Trailer do filme baseado em Riding in cars with boys:
 
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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Ferrante com Freud - A amiga genial

 
"Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa tarde de novembro de 1980 - ambas já estávamos com trinta e cinco anos, casadas, com filhos -, ela me contou minunciosamente o que lhe acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a essa palavra.
Estávamos ao ar livre, no topo de um dos prédios do bairro. Embora fizesse muito frio, usávamos roupas leves e soltas para parecermos bonitas. Observávamos os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras negras arrebatadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendíamos o pavio dos fogos de artifício para festejar o Ano Novo, ritual para cuja realização Lila, como contarei adiante, tinha colaborado muitíssimo, tanto que agora se sentia contente e olhava os rastros de fogo no céu. Mas subitamente - me disse -, apesar do frio, começara a cobrir-se de suor. Tivera a impressão de que todos gritavam demais e se moviam em grande velocidade. Essa sensação fora acompanhada de uma náusea, e ela teve a sensação deque algo absolutamente material, presente em torno de todos e de tudo desde sempre, mas sem que conseguisse percebê-lo, estivesse destruindo o contorno das pessoas e das coisas, revelando-se.
O coração se pusera a bater descontroladamente. Começara a sentir horror pelos gritos que saíam das gargantas de todos os que se moviam pelo terraço entre a fumaça e as explosões, como se sua sonoridade obedecesse a leis novas e desconhecidas. A náusea aumentara, o dialeto perdera toda familiaridade, tornara-se insuportável o modo como nossas gargantas úmidas molhavam as palavras no líquido da saliva. Um sentido de repulsa atingira todos os corpos em movimento, sua estrutura óssea, o frenesi que os sacudia. Como somos malformados, pensara, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos lhe pareceram atributos de seres monstruosos, descidos de algum recesso do céu negro. E a repulsa, quem sabe por que, se concentrara sobretudo no corpo de seu irmão Rino, a pessoa que lhe era a mais familiar, a pessoa que mais amava.
(...).
Na ocasião em que me fez esse relato, Lila também disse que o que chamava de desmarginação, mesmo tendo ocorrido de modo claro apenas naquela oportunidade, não era inteiramente novo para ela. Por exemplo, já tinha experimentado muitas vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de Ano Novo lhe ocorrera pela primeira vez de perceber entidades desconhecidas, que destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora. Aquilo a transtornara".
(In. A amiga genial - série napolitana, v. 1 - Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015,  p. 61).
 
 
Unheimilich = “relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e terror. Também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante (...); a condição essencial para que surja o sentimento do inquietante é a incerteza intelectual (...), seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer (...); o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e a do que é estranho, mantido oculto (...) Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” .
(Freud. O inquietante. In. Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 329-338). 
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Unheimlich é o que aparece quando algo toma o lugar da inscrição da castração: “quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar”.
 (Lacan. O Seminário, livro X - A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52).


domingo, 31 de julho de 2016

Pálido ponto azul - Carl Sagan


A Terra é um minúsculo ponto, distante 6.4 bilhões de quilômetros, no meio de um raio solar, circulado em azul.
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A foto que inspirou Carl Sagan:

 No dia 14 de fevereiro de 1990, tendo completado sua missão primordial, foi enviado um comando a Voyager 1 para se virar e tirar fotografias dos planetas que havia visitado. A NASA havia feito uma compilação de cerca de 60 imagens criando neste evento único um mosaico do Sistema Solar. Uma das imagens que retornou da Voyager era a da Terra, a 6,4 bilhões de quilômetros de distância, mostrando-a como um "pálido ponto azul" na granulada imagem.
Sagan disse que a famosa fotografia tirada da missão Apollo 8, mostrando a Terra acima da Lua, forçou os humanos a olharem a Terra como somente uma parte do universo. No espírito desta realização, Sagan disse que pediu para que a Voyager tirasse uma fotografia da Terra do ponto favorável que se encontrava nos confins do Sistema Solar.
Essa foto acabou inspirando Carl Sagan a escrever o livro Pálido Ponto Azul em 1994.



A reflexão :

Numa conferência em 11 de Maio de 1996, Sagan falou dos seus pensamentos sobre a histórica fotografia:

"Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada "superestrela", cada "líder supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali - em um grão de pó suspenso num raio de sol.
A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios.
As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios.
A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto.
Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o "pálido ponto azul", o único lar que conhecemos até hoje".


(Fonte: Wikipédia )


 
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O livro para download:
 
 
 
O pálido ponto narrado por Sagan (leg):
 
 

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A outra cena.... por Amos Oz

 
Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas vilhando de gente, de gritos e vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença inapelável: "O Levante é cheio de micróbios".
(...) Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico cor de rosa, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão, costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o dr. Kumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, D´us não permita, lhe acontecer.
Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror dos micróbios era soberano. Morreu no banho.
De fato, teve um infarto.
Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema de sua vida em Jerusalém, "O Levante é cheio de micróbios", aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores.
Eis aí, talvez, uma fresta por onde será possível dar uma espiada e reconstituir um pouco do efeito das visões do Oriente, suas cores e cheiros, sobre minha avó e talvez sobre os outros imigrantes refugiados, que também vieram de aldeias cinzento-outonais da Europa Oriental e ficaram tão apavorados com a transbordante sensualidade do Levante que decidiram se proteger de suas ameaças construindo um gueto para si próprios.
Ameaças? A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos à sua volta, deixando-a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam (...). Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções, desde seu primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois?
Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque, de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou - nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados ilhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e fervidos, esse desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios"
 
(De amor e de trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 45-48).


sábado, 14 de novembro de 2015

Adeus à diferença - Vladimir Safatle

 
Se a primeira dimensão do igualitarismo diz respeito à luta contra a desigualdade econômica, a segunda se refere à estrutura das demandas de reconhecimento na vida social. Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos chamar de necessidade de uma política da indiferença. Uma maneira de compreender tal necessidade é partir da constatação do esgotamento da diferença como valor maior para a ação política.
Durante certo tempo, embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na "diferença" o valor supremo de toda crítica social e ação política. Assim, os anos 1970 e 1980 foram palco da constituição de políticas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daqueles que exigiam o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc. Uma política das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa política gerou, no seu bojo, as exigências de tolerância multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim.
Sabemos como multiculturalismo diz respeito, inicialmente, a uma lógica da ação política baseada no reconhecimento institucionalizado da diversidade cultural própria às sociedades multirraciais ou às sociedades compostas por comunidades linguísticas distintas. Isso implica transformar o problema da tolerância à diversidade cultural, ou seja, o problema do reconhecimento de identidades culturais, no problema político fundamental. Dessa forma, abriram-se as portas para certa secundarização de questões marxistas tradicionais veiculadas à centralidade de processos de redistribuição e de conflito de classe na determinação da ação política. No limite, os conflitos fundamentais no interior do universo social foram compreendidos como conflitos culturais.
Por um lado, tal dinâmica teve sua importância por dar maior visibilidade a alguns dos setores mais vulneráveis da sociedade (como negros, mulheres e homossexuais). No entanto, a partir de um certo momento, começou a funcionar de maneira contrária àquilo que prometia, pois podemos atualmente dizer que essa transformação de conflitos sociais uma equação usada à exaustão pela direita mundial, em especial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as classes pobres europeias serem compostas majoritariamente por imigrantes árabes africanos e, assim, patrocinarem uma política brutal de estigmatização e exclusão política travestida de choque de civilizações.
Desse modo, posso estigmatizar pobres aproveitando-me do fato de eles serem culturalmente diferentes, criando com isso situações de profunda precarização do trabalho, de contínua insegurança de trabalhadores, que são espoliados de todo e qualquer direito por serem imigrantes. Um clássico conflito de classe e espoliação transformou-se em choque civilizatório.
Ou seja, há uma linha reta que vai da tolerância multicultural à perpetuação racista da exclusão daqueles para quem nossos valores nunca deram prova de inclusão modernizadora. Afinal, trata-se de dizer que o único lugar onde a diferença pode florescer em liberdade é em nosso Ocidente defendido por mega-aparatos securitários contra terroristas. Talvez o saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que não se adaptam a nosso "campo das diferenças" não são diferentes, mas simplesmente irrepresentáveis, objetos de perpétua exclusão.
Este é um ponto importante por nos mostrar como a organização discursiva do campo social das diferenças é sempre solidária à exclusão de elementos que não poderão ser representados por esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que não serão mais ouvidos, elementos cujas palavras serão definidas por nós como desprovidas de racionalidade e de possibilidade de reconhecimento. A única maneira de evitar isso é organizar o campo social a partir da equação das diferenças.
A equação das diferenças, tão presente nas dinâmicas multiculturais, parte da seguinte questão: até onde podemos suportar uma diferença? Esta é, no entanto, uma péssima questão. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade. Como se minha identidade já estivesse definida e simplesmente se comparasse à identidade do outro. Nada mais falso.
(...) O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. No limite, isso nos leva a criticar a existência de uma nação e um Estado francês, kosovar, judeu, flamengo, inglês, brasileiro etc. Condição maior para discutir a possibilidade de construção de Estados pós-identitários, que não precisem repetir compulsivamente identidades ilusórias construídas pelos interesses políticos do dia.
(...) Contra aqueles que não veem relação alguma entre fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais reacionária do catolicismo e política multicultural das diferenças, valeria a pena fazer aqui algumas considerações. Não podemos perder de vista que se trata, no fundo, de impor uma escolha forçada. Ou de um modo de experiência social da diferença que se realiza na multiplicação de maneiras de ser coerente com os imperativos da modernidade capitalista. Ou a procura pela reconstituição social de vínculos identitários substanciais patrocinada pela polícia e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nação, família etc.).
Diante dessa situação, devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. Nossas formas hegemônicas de vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a geografia mental da liberalização e da restrição.
 
(In. A esquerda não ousa dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 26-33).


Agir para não pensar - Vladimir Safatle

 
Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por que perder tempo com teoria e discussão sobre princípios se as urgências práticas da política parecerem tão prementes. Nesse sentido, valeria a pena lembra-lo dos parágrafos iniciais de Carta ao humanismo, em que Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensa-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age enquanto pensa.
Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento, no fundo, ser um subterfúgio para a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir. Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa, é porque ele é a única atividade que tem  força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir. É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.
A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais "customizadas" e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.
Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação não efetiva pare, a fim de que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a força crítica e a força radical do pensamento.
Quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa. Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas. E talvez devamos colocar novamente esta questão simples: para uma perspectiva de esquerda, quais são os verdadeiros problemas?
 
(In. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 17-19).


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Nana faz Filosofia sem saber - diálogo de "Vivre sa vie" - Godard - 1962


- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....   

Trailer do filme:









sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Um elogio ao desamparo - fragmento do livro "Circuito dos afetos" de Safatle

 
"Poderíamos recuperar a beatitude, como um dia falou Spinoza, poderíamos falar do contentamento, tal como um dia falou Kant, ou mesmo tentar recuperar a felicidade, como atualmente faz Badiou, mas essas seriam formas de ignorar que, para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual. Há uma compreensão da inevitabilidade do impossível, do colapso do nosso sistema de possíveis que faz de um indivíduo um sujeito.
Nesse sentido, há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. Talvez fosse mais correto chamar tal demanda de cuidado pelo Outro de "frustração". Mas há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício da liberdade. Uma liberdade que consiste na não sujeição ao Outro, em uma, como bem disse uma vez Derrida, "heteronomia sem sujeição". Uma não sujeição que não é criação de ilusões autárquicas de autonomia, mas capacidade de se relacionar àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar do Outro, algo que desampara o Outro. Assim, sou causa da minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterônomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio. O que talvez seja o sentido mas profundo de uma heteronomia sem servidão. O que também não poderia ser diferente, já que amar alguém é amar suas linhas de fuga".
 
(In. Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 39-40).