"Se o eu ideal é o outro como imagem com valor cativante, o ideal do eu é o outro como falante" - Coutinho Jorge, 2009, p.42.
A imersão na dimensão simbólica é um marco na "ex-istência" de todo ser vivente, pois lhe confere o estatuto de sujeito, "aquele que deseja". Deseja o quê? O que desde já, está perdido para sempre.
"Ser" sujeito é ser como um diamante bruto que foi lapidado pela linguagem, o qual a luz do existir, ao atravessá-lo, se desdobra em múltiplos desafios: que fazer da incompletude, desse gozo que nunca é pleno, mas antes uma vaga lembrança? Como lidar com o desencontro sexual, esse Real que comparece no Simbólico? Haverá modo de deixar uma marca neste mundo que "já está" há milênios, e que continuará a girar, indiferente ao cerrar de nossos olhos?
"Diferenciar-se" é um significante que marca a minha existência desde o princípio; sei que isso poderá soar retundante aos ouvidos de quem está familiarizado com o vocabulário da Psicanálise, mas para estes evoco, em defesa da minha narrativa, uma pontuação de André Gide: "Todas as coisas já estão ditas, mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre".
Dizia minha mãe que eu fui um bebê muito intrigante, posto que era difícil distinguir meus apelos de fome dos de dor. Aos poucos, porém, meus choros de dor se tornaram mais agudos - talvez aí o matema que me inscreve já estivesse dando seus indícios....
Ao entrar para a escola, tentando rabiscar as primeiras letras, frequentemente era advertida que deveria firmar melhor o meu traço, pois do contrário ninguém compreenderia o que eu quisesse dizer; era impossível para os outros distinguirem um "b" de um "l", um "v" de um "r". Quando me apropriei da técnica de caligrafia passei a escrever tão firme que frequentemente manchava de tinta minhas mãos e as bordas de caderno.
Mais adiante, outra dificuldade de linguagem se apresentou. A professora do primário, raivosa, entoava:
- Mim não conjuga verbo. Mariana. Mas será possível que você não consiga compreender?
- Não consigo, professora. Dizer "eu" e dizer "mim" não dá na mesma?
- É claro que não. Guarde de uma vez por todas a explicação que vou te dar: "mim" não faz nada sozinho, precisa que alguém lhe dê um sentido, só existe enquanto objeto de outro. "Eu posso", mas "mim" não pode nada; "mim não conjuga o verbo, mas é conjugado por ele". Compreendeste?
Passaram-se vinte anos até que, lançando-me ao estudo dos escritos psicanalíticos, dificuldade semelhante se apresentou: distinguir o "eu ideal" de "ideal de eu". Foi então que Lacan me forneceu a pista para decifrar o enigma, escrevendo, no que tange ao eu ideal,"Je", do francês "eu", e quanto ao ideal de eu, "moi", do francês "eu", mas "eu" enquanto objeto, "mim".
À pista dada por Lacan liguei as advertências da professora, então tudo ficou mais claro: no "eu ideal"- "Je"- a relação com o outro é dual, especular: toma-se o outro como imagem de si, faz-se uma projeção, o que confere ao eu uma unidade; no "ideal de eu"- "moi" -, a relação se dá entre um trio, onde a linguagem liga o outro a mim, ou seja, o outro é um ser que me fala, e a existência eu apreendo por introjeção dessa fala; ao mesmo tempo semelhante e diferente, o outro profere o verbo ao qual me assujeito, afinal, "mim não conjuga verbo".
Entre a professora e Lacan teci uma trama que corrobora tanto as palavras do grande professor - "o inconsciente é atemporal" - quanto as de seu melhor aluno -" o inconsciente é estruturado como linguagem", onde um "significante só tem sentido em relação a outro significante", costurando uma teia em que a cada dia acrescentamos novos fios. O modo como tricotamos é o que nos diferencia....