Freud nunca foi um grande leitor de Sade, mas partilhava com ele, sem o saber, a idéia segundo a qual a existência humana caracteriza-se menos por uma aspiração ao bem e à virtude que pela busca de um permanente gozo do mal: pulsão de morte, desejo de crueldade, amor ao ódio, aspiração ao infortúnio e ao sofrimento. Pensador do iluminismo sombrio, e não do anti-Iluminismo, Freud reabilitou a idéia segundo a qual a perversão é necessária à civilização enquanto parte maldita das sociedades e parte obscura de nós mesmos. Porém, em vez de enraizar o mal na ordem natural do mundo e de fazer da animalidade do homem sinal de uma inferioridade insuperável, preferiu sustentar que apenas o acesso à cultura permite arrancar a humanidade de sua própria pulsão de destruição. "Os pensadores sombrios", escreverá Theodor Adorno:
que não desistem da idéia da inafiançavel malignidade da natureza humana e que proclamam com pessimismo a necessidade da autoridade - Freud nesse aspecto situa-se ao lado de Hobbes, Mandeville e Sade - não podem ser escorraçados com uma bofetada. Em seu próprio meio, nunca foram bem-vindos.
A pulsão destruidora, dizia Freud, é a condição primordial de toda sublimação, uma vez que a característica do homem - se é que esta existe - não é senão a aliança, no próprio homem, da mais poderosa barbárie e do grau mais elevado de civilização, uma espécie de passagem da natureza à cultura. "Podemos considerar", escreve Marie Bonaparte em 1937, "a pulsão de exploração, a curiosidade intelectural, como uma sublimação completa do instinto agressivo ou destruidor".
Nunca é o bastante insistir de que Freud foi o único cientista de sua época - depois de muitas divagações - a deixar de ver no trio infernal do homossexual, da histérica e da criança masturbadora a encarnação da noção de perversão reduzida à inépcia. E assim como deixou de querer domesticar a perversão ao atribuir seus pretensos estigmas a personagens excluídos da procriação, da mesma forma abandonou as classificações oriundas da sexologia, rompendo, por conseguinte, com o princípio de uma descrição voyeurista - isto é, perversa - das perversões sexuais. Substituiu esse dispositivo por uma conceitualização do mecanismo psíquico da perversão, assumindo todavia o risco de desprezar a longa ladainha das confissões oferecidas à medicina mental pelo povo dos perversos.
Da mesma forma, conferiu uma dimensão essencialmente humana à estrutura perversa - gozo do mal, erotização do ódio, e não tara, degenerescência ou anomalia-, para fazer dela, no plano clínico, o produto de uma dimensão polimorfa herdade seja de um culto sexual primitivo, seja do desenvolvimento de uma sexualidade infantil sem rédeas, seja de uma renegação radical da diferença anatômica dos sexos. "As perversões, cujo negativo é a histeria, devem ser consideradas vestígios de um culto sexual primitivo, que foi inclusive, no Oriente semítico, uma religião". Escreve ainda: "Estamos agora em condições de concluir que há com efeito algo de inato na base das perversões, mas algo que todos os homens partilham e que, enquanto predisposição, é suscetível de variar em sua intensidade".
Foi dessa forma que Freud introduziu no psiquismo o que poderíamos chamar de um universal da diferença perversa: todo homem é habitado pelo crime, o sexo, a transgressão, a loucura, a negatividade, a paixão, o desvario, a inversão etc. Mas nenhum hhomem pode estar determinado, em vida e previamente, por um destino que o torne inapto a qualquer superação de si.
(...) Em resumo, diremos que, até Freud, as perversões sexuais eram vistas, no dicurso da medicina positivista, como desvios sem retorno em relação a uma norma. (...). Com Freud, ao contrário, a dimensão perversa foi concebida como uma passagem obrigatória para a normalidade: uma normalidade de contornos difusos, cada sujeito podendo então definir-se como um ex-perverso que se tornou normal, após ter integrado, como interditos importantes, os princípios da Lei. (...) Ao mostrar que a disposição perversa é a característica do homem, que todo sujeito a carrega em si potencialmente - e que assim a patologia esclarece a norma-, Freud afirmava também que o único limite ao desenvolvimento abjeto da perversão só pode advir de uma sublimação encarnada pelos valores do amor, da educação, da Lei e da civilização.
(...) ao contrário da medicina mental que buscava, mediante a dessacralização, circunscrever, controlar ou erradicar as perversões, Freud reportava a perversão a uma categoria antropológica da própria humanidade.
(In: A parte obscura de nós mesmos - Uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.99-104).