"Para o psicanalista, diante deste modelo classificatório, que é o padrão oficial atual da psiquiatria brasileira, impõe-se a pergunta sobre qual o lugar do sujeito do desejo nesta nova concepção da mente que parecia criar como única verdade possível ao sujeito, "os humores contidos nas entranhas do neurônio". O aparelho psíquico não é uma realidade biológica, neuronal e cerebral. O desejo que está no cerne do humano e das suas produções psíquicas e espirituais subverte a hegemonia da condição biológica humana, que colocaria o homem como mero efeito da regulação de uma engrenagem maquinária, subvertendo o tempo cronológico dos ritmos biológicos pelas novas relações temporais que torna possível, entre passado e futuro, e que aparecem, por exemplo, em manifestações psíquicas como o sonho. Assim, o que define o diagnóstico em psicanálise não é a conduta, mas a posição subjetiva diante do sintoma. Um sintoma tem um sentido que é independente das vicissitudes do organismo" .
(Renata Udler Cromberg. A paranóia. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p.27).
Em todos os lugares da vida, em todas as situações e vivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma vez só sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por ser hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, de atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegaram. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objeto de afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm que se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensase em que se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nmada com que justifique a si próprio esse respeito começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo que as vezes eu gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de chefe, nem de sequaz. Nem seuqer as tenho de satisfeito, que são as qyue valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.
Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse, não seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.
(Bernardo Soares (Fernando Pessoa). O livro do desassossego.São Paulo: Schwarcz, 2010 [1914], p.391-2).
Uma homenagem ao aniversário de Simone de Beauvoir (09/01/1908 - 14/04/1986)
"Se eu pelo menos me dedicar a defender o bem supremo...a Liberdade - então minha paixão não terá sido vã. Você não me deu a paz. Mas para que eu desejaria a paz? Você me deu a coragem de aceitar para sempre o risco e a agonia, de carregar nas costas meus crimes e minha culpa, que vão me dilacerar eternamente. Não há outro modo"
"Até o Natal de 1938, quando Bispo extrapolou o senso comum, suas epifanias passavam despercebidas. Ele levava uma vida prosaica e só se excedia nas manifestações de humildade. Um dia, ao ver o Dr. Humberto na sala, cigarro aceso, sem cinzeiro por perto, juntou as duas mãos grossas em forma de concha e não hesitou:
- Pode jogar as cinzas.
- Não Bispo, pega o cinzeiro ali para mim, por favor - retrucou Humberto, desconcertado.
- Pode jogar, minha mão é o seu cinzeiro - insistiu Bispo, de vigília, até o fim do cigarro" (p.49).
"[Bispo] defendia a família [que o abrigava] com zelo de patriarca. Sentava ao pé da cama de Belinha, olho esbugalhado, sem fresta ao cansaço. Ali permanecia até alta madrugada, se necessário, corpo em vigília.
Belinha estava grávida, ele a protegia. Quando ela deu à luz a menina Margareth, certa noite uma passagem causou espanto. A mãe entrou no quarto do bebê e encontrou Bispo ao lado do berço, assustado, às voltas com assombrações.
- O que foi, Bispo?
- Acabei de ver o seu pai aqui, ele veio ver a neta.
Belinha sorriu, afinal, seu pai estava morto. De qualquer forma, perguntou pelo fantasma. Bispo descreveu-o em detalhes, feições, medidas, sem nunca tê-lo visto, sequer em fotografia. Ao final, elogiou o terno azul-marinho que ele vestia.
A mulher de Humberto arrepiou-se. Seu pai havia sido enterrado com esta roupa e, em vida, era o seu traje predileto. Na dúvida, Belinha remexeu o armário do quarto à procura de fotos antigas, já que não tinha o hábito de expor recordações em porta-retratos (...). Ao encontrar um antigo retrato do pai, cercado por colegas da juventude, perguntou:
- Qual deles esteve aqui?
- Este - respondeu Bispo, certeiro.
Sem hesitar, pôs o dedo no rosto do pai de Belinha, o da imagem " (p.55).
(In: Arthur Bispo do Rosário - O senhor do labirinto. Luciana Hidalgo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 [1996]).
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Cinema Paradiso (no original Nuovo Cinema Paradiso) é um filme italiano de 1988, do gênero drama, escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore.
Salvatore Di Vita é um cineasta bem-sucedido que vive em Roma. Um dia ele recebe um telefonema de sua mãe avisando que Alfredo está morto. A menção deste nome nome traz lembranças de sua infância e, principalmente, do Cinema Paradiso, para onde Salvatore, então chamado de Totó, fugia sempre que podia, depois que terminava a missa (ele era coroinha). No começo, ele costumava espreitar as projeções através das cortinas do cinema, que o padre via primeiro para censurar as imagens que possuíam beijos, e fazia companhia a Alfredo, o projecionista.[1] Foi ali que Totó aprendeu a amar o cinema.
Após um caso de amor frustrado com Elena, a filha do banqueiro da cidade, Totó deixa a cidade e vai para Roma, retornando somente trinta anos depois, por causa da morte de Alfredo. Ao final, o Novo Cinema Paradiso, já abandonado, acaba demolido pela prefeitura para construir um estacionamento. Voltando para Roma Totó assiste a uma fita com todas as imagens de beijo que o padre da cidade havia censurado.
"-Meu coração estava disparado.
-Você certamente me enganou. Se eu soubesse. Por que não me disse antes?
-Eu tenho escondido meus sentimentos por toda minha vida. Eu sempre fui evasivo.
-Você não confia em ninguém.
-Confio em você, Sabine. De verdade"
Anseio por te ver novamente, num sentido a-fenomenológico. Sinto a tua falta na minha clareira ek-sistencial. A minha mulher é chata, idiota e deixa-me o ser doente. Além disso, não percebe patavina daquilo que escrevo. Porque será? Também não compreende que a verdade (no sentido platónico de aletheia) de uma re-lação reside na in-sistência que busca o des-velamento.
Oh, Hannah... Só tu provocas no meu ser-aí a ab-soluta ek-citação. Deixa-me ir à tua casa do ser. Tira-me deste vazio utilitário e devolve-me uma ek-sistência individual concreta. Vamos estudar juntos o ser-para-a-pequena-morte.
Do sempre teu (ou, pelo menos, enquanto o ser me animar o ente)..."
"O homem contemporâneo quer ser despojado não apenas de sua angústia de viver, mas também da responsabilidade de arcar com ela; quer delegar à competência médica e às intervenções químicas a questão fundamental do destino das pulsões, quer, enfim, eliminar a inquietação que o habita em vez de indagar o seu sentido".
"O que o apelo contemporâneo ao gozo faz é dificultar o nosso reconhecimento da lei, por falta de uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade do gozo. Isso afeta necessariamente o efeito da Lei sobre as pessoas? Talvez, na medida em que nos propomos um gozo impossível como ideal a ser atingido e não - como no caso de uma sociedade vitoriana, por exemplo - como mal a ser evitado. Assim, o apelo ao gozo produz mais angústia do que o gozo propriamente dito, mais violência (pois é com violência que reagimos à violência dos imperativos) do que fruição".
(Maria Rita Kehl, em "Sobre ética e Psicanálise". SP: Companhia das Letras, 2007, p.8-15)
"Atravessamos a angústia quando uma palavra, um acontecimento, um gesto ou um silêncio, não importa, uma revelação fulgurante proveniente do psicanalista ou surgida de improviso em mim mesmo, analisando, me faz compreender que eu podia aceitar perder, porque o risco nunca foi o risco de um todo, mas de uma parte; e de uma parte que estará sempre perdida. Compreendi, não mentalmente, mas em ato, que qualquer que seja o resultado final dessa travessia da angústia, o risco continuará necessariamente parcial, e a perda, inevitavelmente sofrida. Compreendi, e meu corpo compreendeu, que nunca perderei tudo, e que, se ganhar, jamais ganharei sem perder ".
(Juan David Nasio. A Histeria. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. p.91)