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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (1)

"As pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Com esta. ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas".
(O perfume. Patrick Suskind. Rio de Janeiro: Record, 1985. p. 8 - epígrafe).

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Hannah & Heidegger

"Querida señorita Arendt:
tengo que volver a su lado la tarde, de nuevo, dirigiendome a su corazón.
Todo debe ser sencillo, limpio y puro entre nosotros.
Sólo entonces seremos dignos de haber tenido la suerte de nos encontrarmos.
Que haya sido mi aluna y yo su maestro no es más que la ocasión propicia de los que nos ocurrido".
*
"Querida Hannah, el demonio me ha disparado... . Ja apacible oración de tus queridas manos enlazadas y tu frente resplandeciente son las armas tutelares en la transfiguración que sostiene tu feminidad.
Nunca me ha pasado nada igual.
En el camino de regreso, durante el chaparrón tormentoso, me pareciste aún más bella. Y durante noches enteras me hubiera gustado acompasar nuestros pasos. Recibe este libro en señal de mi gratitud.
Que sea también un símbolo de este semestre".
"Ven conmigo.
No me rechaces.
Deja ahí tu temor.
Si no puedes entregarte,
ven a recibir y a dar. Hannah".
*
"Si algo bueno se puede esperar...será la medida del sacrificio que exige por parte de los dos. Tu Martin".
"Lo que quiero decirte ahora no es más que un lienzo, en el fondo, muy prosaico de la situación.
Te quiero como el primer día.
Ya lo sabes.
Y siempre lo supe.
El camino que me has asinalado es más largo y difícil de lo que pensaba.
Hace falta toda una vida. Hannah".
(Extraido do documentário Pensar apasionadamente, produzido por Jocken Kölsch para o canal Arte, disponível em 4 partes no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=MDVwr1bI26Q&feature=my_watch_later_videos&list=WLB716C1C1C46643C0).

O slêncio das sereias - Fraz Kafka

 
Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem servir à salvação:
Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.
As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.
E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.
Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.
De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

(Tradução de Modesto Carone. Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 6/5/1984).

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Mais uma perversão capitalista-"Personal-mother"

"No Brasil, a profissão de mãe de aluguel, ou personal mother, como é mais conhecida, faz sucesso no mercado de trabalho.
A ideia, que surgiu há dois anos, é ajudar as mães que trabalham fora a cuidar da educação das crianças. Um dos requisitos da profissão é ter filhos, o que serve como experiência e preparação e diferencia a personal mother de uma simples babá.
Para as tarefas simples, como levar a criança ao shopping, o valor é de R$ 130,00, mas os preços aumentam quando tem que substituir a mãe na reunião da escola ou na visita ao pediatra".
(Reportagem - Jornal do SBT de 4/8/12, transmitido às 20 hs).

Link para o vídeo da reportagem:

Conteúdo de um dos anúncios publicado na internet:
"Professora pós graduada em Educação com filho criado oferece seus serviços de Personal Mother para cuidar de seu filho, acompanhar aos compromissos diários, emergências, etc. Ofereço referências. Preço por hora ou a combinar".
“Se o dinheiro .... Vem ao mundo com uma mancha congênita de sangue numa das faces, o capital vem pingando da cabeça aos pés,de todos os poros, sangue e lama” -  
(Marx, O Capital, v.1).

Capitalismo x tempo


Sinal fechado (Chico Buarque)
– Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E
você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...
Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das
ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,
rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!


"O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro; isso é uma brutalidade. O tempo é o tecido das nossas vidas" -
(Antônio Cândido citado por Maria Rita Kehl na palestra Identidades sociais e ressentimento psicológico).

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quem são os pais do amor? - diálogo entre Sócrates & Diotima


Diotima – Tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal. (...) E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor.
Sócrates – E quem é seu pai – perguntei-lhe – e sua mãe?
Diotima – É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois vinho ainda não havia – penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo em que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis, com efeito, o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio – pois já é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
Sócrates – Quais então, Diotima – perguntei-lhe –, os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
Diotima – É o que é evidente desde já – respondeu-me – até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E, de fato, o que é amável é que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o amante, porém, é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei.

(In. Platão. O Banquete, 201 d-204 c. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Tradução: José Cavalcante de Souza).

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O autor como produtor - Walter Benjamin

"Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre, o mesmo ocorrendo com as tragédias e as grandes epopéias. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: eles ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários. Nem sempre a retórica foi uma forma insignificante: ela imprimiu seu selo em grandes províncias da literatura antiga. Lembro tudo isso para transmitir-vos a idéia de que estamos no centro de um grande processo de fusão  de formas literárias..." - (p.123-4).
*
"A tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor" - (p.126);
*
"...o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo" - (p.127).
*
"Sabemos, e isso foi abundantemente demonstrado nos últimos dez anos, na Alemnanha, que o aparelho burguês pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até de propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a existência das classes que controlam. Isso continuará sendo verdade enquanto este aparelho for abastecido por escritores rotineiros, ainda que socialistas. Defino o escritor rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo. Afirmo ainda que uma parcela substancial da literatura de esquerda não exerceu outra função social que a de extrair da situação política novos efeitos, para entreter o público. Isso me traz ao tema da "Nova Objetividade". Ela lançou a moda da reportagem. A questão é a seguinte: a quem serviu esta técnica?" - (p.128).
*
"...a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário. Por que? Porque a classe burguesa pôs a sua disposição, sob a forma da educação, um meio de produção que o torna solidário com esta classe e, mais ainda, que torna esta classe solidária com ele devido ao privilégio educacional (...). No escritor, a traição consiste num comportamento que o transforma de fornecedor do aparelho de produção intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins da revolução proletária (...). A inteligência que fala em nome do fascismo deve desaparecer (...). Porque a luta revolucionária não se trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado" - (p.135-6).

Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do fascismo, em 27/4/1934.
(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 120-36). 

domingo, 5 de agosto de 2012


"...a perda da aura, a famosa “desauratização”, é um fenômeno que não pode ser reduzido a uma transformação do estatuto contemporâneo da arte. É um fenômeno estético no sentido etimológico amplo de uma transformação da percepção humana, isto é, da percepção do mundo, do(s) outro(s) e de si mesmo. O poeta não é mais o mensageiro dos deuses, mas um produtor de mercadorias (poéticas!). Eros não é mais daimôn (o intermediário, o “demônio” no sentido grego do termo) que estabelece uma ponte entre a vida amorosa e sexual e a veneração da beleza divina transcendente. Parece ter sido encerrado numa fixação narcisista que a ideologia individualista da competitividade e do consumo exacerba. Contra essa “dessublimação repressiva” (Marcuse) a luta só pode ser política e, conjuntamente, estética: não reinventar uma transcendência soberana e distante, mas desconstruir a aparência lisa e comportada do real para nele abrir rachaduras e fissuras que permitem vislumbrar um “longínquo” tão desconhecido como imanente. Somente então poderá Eros ser novamente um verdadeiro demônio” .

(Jeane Marie Gagnebin em: "A questão de Eros na obra de Benjamin. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_01_jeanne_marie_gagnebin.pdf).

Uma carta de amor de Walter Benjamin

Walter Benjamin conheceu Anna Maria  Blaupot ten Cate em maio de 1933, em Berlin, durante a queima de livros pelos nazistas. Tendo reencontrado a amada durante o exílio em Ibiza, Benjamin escreve, aproximadamente em 6/8/33:
"...Você é o que eu jamais poderia amar numa mulher: você ... é muito mais. Das suas feições surge tudo o que a torna de mulher a guardiã (Hüterin), de mãe a puta (Hure).
Você transforma uma em outra e a cada uma confere mil formas. Em seus braços o destino pararia para sempre de me encontrar. Sem susto e sem nenhum risco, ele poderia deixar de me surpreender.
O silêncio profundo que paira em torno de você indica o quão distante você está daquilo que te preocupa. Nesse silêncio acontece a mudança das figuras: seu interior. Elas jogam uma nas outras como as ondas: puta e sibila, ampliando mil vezes.”
(Fonte: citado por Carla Milani Damião no artigo: Pequena incursão sobre imagens femininas nos escritos benjaminianos. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_03_carla_milani_damiao.pdf).  

sábado, 4 de agosto de 2012

Antigone - Sophocles (trechos)

Ismênia & Antígona (Emil Teschendorff).
Ismênia: Queres tu, realmente, sepultá-lo, embora isso tenha sido vedado a toda a cidade?
Antígone: Uma coisa é certa: Polinice era meu irmão, e teu também, embora recuses o que eu te peço. Não poderei ser acusada de traição para com o meu dever.
Ismênia:Infeliz! Apesar da proibição de Creonte?
Antígone: Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!
Ismênia: Ai de nós! Pensa, minha irmã, em nosso pai, como morreu esmagado pelo ódio e pelo opróbrio, quando, inteirado dos crimes que praticara, arrancou os olhos com as próprias mãos! E também em sua mãe e esposa, visto que foi ambas as coisas, que pôs termo a seus dias com um forte laço! Em terceiro lugar, em nossos irmãos, no mesmo dia perecendo ambos, desgraçados, dando-se à morte reciprocamente! E agora, que estamos a sós, pensa na morte ainda mais terrível que teremos se contrariarmos o decreto e o poder de nossos governantes! Convém não esquecer ainda que somos mulheres, e, como tais, não podemos lutar contra homens; e, também, que estamos submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso obedecer a suas ordens, por muito dolorosas que nos sejam. De minha parte, pedindo a nossos mortos que me perdoem, visto que sou obrigada, obedecerei aos que estão no poder. É loucura tentar aquilo que ultrapassa nossas forças!
Antígone: Não insistirei mais; e, ainda que mais tarde queiras ajudar-me, já não me darás prazer algum. Faze tu o que quiseres; quanto a meu irmão, eu o sepultarei! Será um belo fim, se eu morrer tendo cumprido esse dever.1 Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no túmulo... com alguém a quem amava; e meu crime será louvado, pois o tempo que terei para agradar aos mortos, é bem mais longo do que o consagrado aos vivos... Hei de jazer sob a terra eternamente!... Quanto a ti, se isso te apraz, despreza as leis divinas!
Ismênia: Não! Não as desprezo; mas não tenho forças para agir contra as leis da cidade.
Antígone: Invoca esse pretexto; eu erguerei um túmulo para meu irmão muito amado!
(...)
Ismênia: Tu pareces desejar, com o coração ardente, o que nos causa calafrios de pavor!
Antígone: Só sei que cumpro a vontade daqueles a quem devo agradar.
Ismênia: Se tu o fizeres... mas o que desejas é impossível!
Antígone: Quando me faltarem as forças, eu cederei
Ismênia: Mas não é prudente tentar o que é irrealizável!
Antígone: Visto que assim me falas, eu te odiarei! E serás odiosa, também, ao morto, junto a quem serás um dia depositada... E com razão! Vamos! Deixa-me, com minha temeridade, afrontar o perigo! Meu sofrimento nunca há de ser tão grande, quanto gloriosa será minha morte!
Ismênia: Já que assim queres, vai! Bem sabes que cometes um ato de loucura, mas provas tua dedicação por aqueles a quem amas!

A sentença de Creonte - Antígona (Silvagini).
Creonte: Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
Antígone: Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte: E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígone: Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!- Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei: é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte?Assim, a sorte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!
(...)
Antígone : Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!
Creonte : Desce, pois, à sepultura!... Visto que queres amar, ama aos que lá encontrares! Enquanto eu vivo for, nenhuma mulher me dominará!
Morte de Antígona (Riotti)

Coro: Amor, invencível Amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!  Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, Amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós!

(...)

Antigone: E agora sou arrastada, virgem ainda, para morrer, sem que houvesse sentido os prazeres do amor e os da maternidade. Abandonada por meus amigos, caminho, viva ainda, para a mansão dos mortos. Deuses imortais, a qual de vossas leis eu desobedeci? Mas... de que me serve implorar os deuses? Que auxílio deles posso receber, se foi por minha piedade que atraí sobre mim o castigo reservado aos ímpios? Se tais coisas merecem a aprovação dos deuses, reconheço que sofro por minha culpa; mas se provém de meus inimigos, eu não lhes desejo um suplício mais cruel do que o que vou padecer!
Antígone - 1961 (com Irene Papas) - Filme completo disponível no youtube

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Experiência e pobreza - Walter Benjamin

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (...).
Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras (...).
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.
Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.

Escrito em 1933

(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-9).

De Hannah para Heidegger



"Caro Martin,
Dirijo-me a você com a antiga certeza e com o velho pedido: não se esqueça de mim e não esqueça o quão profundamente sei que o nosso amor foi a bênção da minha vida. Nada é capaz de abalar esse saber – e isso mesmo agora, no momento em que encontrei uma pátria e um porto seguro para o meu desespero (...) Escuto às vezes algo sobre você. No entanto, tudo envolto em um tom particularmente estranho e indireto: no tom que sempre está presente na elocução dos nomes famosos. De um modo quase torturante, gostaria tanto de saber como você está, em que está trabalhando e como Freiburg o está recebendo!
Um beijo meu em sua fronte e em seus olhos.
Sua Hannah"
Trecho de carta de 1929
  
(In: Estranho amor. Matéria da revista Veja de 13/12/00. Disponível em: http://veja.abril.com.br/131200/p_230.html)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O feitiço de Áquila (Ladyhawke - 1985) - trecho

"Phillipe: Are you flesh, or are you spirit?
Isabeau: I am sorrow".

Uma história de tanto amor - Clarice Lispector (trecho)

"...dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 142).

Cem anos de perdão - Clarice Lispector (trecho)

"Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.62).
“Se alguém me perguntasse o que somos, o que o homem é, responder-lhe-ía: é a abertura a todo o possível, é expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar”.

(Georges Bataille. O Erotismo. Citado por Catarina Moura in: "A vertigem - da ausência como lugar do corpo. Artigo disponível no link: http://www.bocc.ubi.pt/pag/moura-catarina-culturas-vertigem.pdf).