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sábado, 14 de novembro de 2015

Agir para não pensar - Vladimir Safatle

 
Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por que perder tempo com teoria e discussão sobre princípios se as urgências práticas da política parecerem tão prementes. Nesse sentido, valeria a pena lembra-lo dos parágrafos iniciais de Carta ao humanismo, em que Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensa-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age enquanto pensa.
Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento, no fundo, ser um subterfúgio para a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir. Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa, é porque ele é a única atividade que tem  força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir. É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.
A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais "customizadas" e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.
Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação não efetiva pare, a fim de que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a força crítica e a força radical do pensamento.
Quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa. Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas. E talvez devamos colocar novamente esta questão simples: para uma perspectiva de esquerda, quais são os verdadeiros problemas?
 
(In. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 17-19).


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Nana faz Filosofia sem saber - diálogo de "Vivre sa vie" - Godard - 1962


- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....   

Trailer do filme:









sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Um elogio ao desamparo - fragmento do livro "Circuito dos afetos" de Safatle

 
"Poderíamos recuperar a beatitude, como um dia falou Spinoza, poderíamos falar do contentamento, tal como um dia falou Kant, ou mesmo tentar recuperar a felicidade, como atualmente faz Badiou, mas essas seriam formas de ignorar que, para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual. Há uma compreensão da inevitabilidade do impossível, do colapso do nosso sistema de possíveis que faz de um indivíduo um sujeito.
Nesse sentido, há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. Talvez fosse mais correto chamar tal demanda de cuidado pelo Outro de "frustração". Mas há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício da liberdade. Uma liberdade que consiste na não sujeição ao Outro, em uma, como bem disse uma vez Derrida, "heteronomia sem sujeição". Uma não sujeição que não é criação de ilusões autárquicas de autonomia, mas capacidade de se relacionar àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar do Outro, algo que desampara o Outro. Assim, sou causa da minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterônomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio. O que talvez seja o sentido mas profundo de uma heteronomia sem servidão. O que também não poderia ser diferente, já que amar alguém é amar suas linhas de fuga".
 
(In. Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 39-40).

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Entre judeus e palestinos - trecho do livro "Violência" de Slavoj Zizek

 
 
"Então vamos à grande questão: qual seria hoje o ato ético-político verdadeiramente radical no Oriente Médio? Tanto para os israelitas como para os árabes consistiria no gesto de renúncia ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o controle (temporário) de uma força internacional neutra. O que os dois lados deveriam aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão efetivamente renunciando a nada. Antes, estão conseguindo a elevação de Jerusalém a um autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política o sentido de São Paulo: "Para nós não existem nem judeus nem palestinos". Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente "puro" seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um faria ao outro.
Recordemos a história do círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o  fato de a pequena história brechtiana ser uma evidente variante do juízo do Rei Salomão que aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto - não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar? Tal solidariedade partilhada é a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente".
(Violência. Slavoj Zizek. São Paulo: Boitempo, 2014, pp. 106-107).
 


domingo, 20 de setembro de 2015

Freud - da Arte à Neurose



 
"As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções sociais que são a arte, a religião e a filosofia e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, a caricatura de uma religião, e um delírio paranoico, de um sistema filosófico. A diferenciação remonta, em última análise, ao fato de as neuroses serem formações associais; elas procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo.
Na análise instintual das neuroses percebemos que nelas a influência determinante é a das forças instintuais de origem sexual, enquanto as formações culturais correspondentes baseiam-se em instintos sociais, aqueles oriundos da junção de elementos egoístas e eróticos. Pois a necessidade sexual não é capaz de unir os homens da mesma forma que as exigências da autopreservação; a satisfação sexual é, antes de tudo, assunto particular do indivíduo.
Do ponto de vista genético (de gênese), a natureza associal da neurose resulta de sua tendência original de escapar de uma realidade insatisfatória, rumo a um prazeroso mundo da fantasia. O mundo real, evitado pelo neurótico, é governado pela sociedade dos homens e pelas instituições que eles criaram conjuntamente; dar as costas à realidade é, ao mesmo tempo, retirar-se da comunidade humana".
 
(Sigmund Freud. Totem e Tabu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp.119-120).
 
 


sábado, 15 de agosto de 2015

Sobre a visita de Lacan a Jung

 
 
...enquanto Freud identificava-se com Aníbal para associar sua descoberta a um princípio de resistência, Lacan ia bem mais longe: queria fazer dessa descoberta o paradigma de todas as formas possíveis de rebelião humana. Sob esse aspecto, inscrevia sua trajetória na tradição da exceção francesa. A França, sabemos, é o único país do mundo onde foi afi...rmada com força a ideia de que Freud realizara uma revolução no sentido pleno da palavra: teórica, política e ideológica. A origem dessa exceção remonta, em primeiro lugar, à revolução de 1789, que deu uma legitimidade científica e jurídica ao olhar da razão sobre a loucura, fazendo nascer a instituição do hospício, e, depois, ao caso Dreyfus, que tornou possível a instauração de uma consciência de si da classe intelectual. Ao designar-se como vanguarda, esta pôde apoderar-se das ideias mais inovadoras e fazê-las frutificar.
(...) Para firmar essa hipótese de uma natureza subversiva do freudismo, de que ele era o herdeiro por seu convívio com os surrealistas, com Bataille e a obra nietzschiana, Lacan havia buscado fazer remontar a origem dela ao próprio Freud. Mas, como dar a prova de tal afirmação quando ela não se encontrava em nenhum lugar? Lacan resolvera esse delicado problema ao visitar Carl Gustav Jung por volta de 1954.
O mais célebre dissidente da saga freudiana estava então com 79 anos. Em sua esplêndida casa de Kusnacht, às margens do lago de Zurique, distribuía atenções, conselhos e erudição, qual um sábio velho oriental, aos numerosos visitantes vindos dos quatro cantos do mundo para encontrá-lo. Consciente da dificuldade de chegar até ele, Lacan havia pedido a seu colega Roland Cohen que interviesse a seu favor. Psiquiatra e germanista, este conhecera Jung em 1936, tornara-se seu discípulo e depois realizara a primeira tradução francesa de suas obras. Frequentando Nacht, Lacan, Ey e Lagache no hospital Saint-Anne depois da guerra, ele havia tentado em vão convencê-los a levar em conta o ensinamento junguiano em seus trabalhos. Quando Lacan pediu-lhe uma carta de recomendação para Jung, Cahen acreditou numa confrontação possível entre duas doutrinas: "Escuta, meu velho, entre teus significados e nossos arquétipos, somos primos-irmãos". Lacan opôs uma recusa categórica: "Jamais", respondeu, "mas desejo ver Jung porque estou certo de que ele tem lembranças a contar sobre Freud e quero publicá-las".
Nessa data, Jung ainda não havia empreendido a redação de suas Memórias, sua correspondência com Freud não fora publicada e nenhum trabalho biográfico a respeito dele estava em andamento. Para compreender a história das origens e dos começos da Psicanálise, dispunha-se apenas da hagiografia freudiana. Ora, Jung sempre aparecia aí como uma personagem negativa e infiel ante a sacrossanta figura do mestre vienense, apresentado como um herói sem temor e sem pecha. A ideia de Lacan de fazer Jung testemunhar sobre suas relações com Freud era portanto excelente. O encontro realizou-se, mas Roland Cahen lamentou o que se passara, e Jung guardou da conversa apenas uma lembrança fugaz.
Se Lacan não quis dizer nada a seu colega, é que reservava sua informação a outros ouvintes. Em 7 de novembro de 1955, em sua conferência sobre a "coisa" freudiana pronunciada em alemão em Viena, mencionou pela primeira vez a visita a Kusnacht: "É assim que o dito de Freud a Jung, da boca de quem eu o devo, quando, convidados ambos pela Clark University, chegaram diante do porto de Nova York e sua célebre estátua que ilumina o universo: ´Eles não sabem que lhe trazemos a peste´, lhe é devolvido como uma sanção de uma hybris cuja antífrase e sua perfídia não extinguem o confuso brilho".
Ao comentar esse dito, Lacan sublinhava que Freud havia se enganado: acreditara que a Psicanálise seria uma revolução para a América, e foi a América que devorou sua doutrina ao retirar-lhe seu espírito de subversão. Esse suposto dito de Freud foi ouvido como algo que ia muito além de qualquer esperança. Na França, com efeito, ninguém duvida da realidade subversiva do freudismo; sobretudo, ninguém ousa imaginar que Freud certamente jamais pronunciou essa frase durante sua viagem aos Estados Unidos, em 1909, acompanhado de Jung e de Ferenczi. Entretanto, o estudo dos textos, das correspondências e dos arquivos mostra que Jung reservou apenas para Lacan esse preciosa confidência. Em suas Memórias, fala da viagem mas não faz nenhuma alusão a peste. Por seu lado, Freud e Ferenczi jamais empregaram a palavra. Quanto a historiadores do freudismo, de Ernest Jones a Max Schur passando por Henri Ellenberger, Vincent Brome, Clarence Oberdorf, Paul Roazen, Nathan G. Hale e Peter Gay, eles observam que Freud disse apenas: "Eles ficarão surpresos quando souberem o que temos a lhes dizer".
Imbuído dessa confidência de que era o único depositário, Lacan inventou portanto uma ficção mais verdadeira que o real, destinada a impor, contra a psicanálise dita americana, sua própria retomada da doutrina vienense, doravante marcada pelo selo da subversão. E se essa visão da "peste freudiana" chegou a se estabelecer tão bem na França, a ponto de os próprios não lacanianos acreditarem hoje que ela pertence a Freud, é que se inscrevia na continuação direta dessa exceção francesa da qual Lacan, após ter sido o difamador, era ao mesmo tempo o herdeiro e renovador.

 (In. Elisabeth Roudinesco. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 359-362).


sexta-feira, 31 de julho de 2015

A vida bate - Ferreira Gullar

 Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
— a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida! 
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
(3/2/66)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A caixa-preta - Amos Oz (trecho)


"Durante nove anos lutei com Maquiavel, desmontei Hobbes e Locke, desfiz todas as costuras de Marx, ardendo com o desejo de provar de uma vez por todas que não são o egoísmo, nem a baixeza ou a crueldade da nossa natureza que nos transformam numa espécie que destrói a si própria. Nós aniquilamos a nós próprios (e breve exterminaremos todos os da nossa espécie) justamente devido aos nossos "anseios superiores", devido à doença religiosa. Por causa da necessidade ardente de "ser redimido". Devido à obsessão pela "redenção". O que é a obsessão pela redenção? Apenas uma máscara que esconde a ausência absoluta de talento básico para a vida. É o talento que todo gato possui. Quanto a nós, como as baleias que se atiram contra a praia num impulso coletivo, sofremos de uma avançada degeneração do talento para a vida. Daí a vontade popular de destruir e exterminar o que temos, para abrir caminho até regiões de redenção que jamais existiram e não são sequer possíveis. Sacrificar alegremente nossas vidas, exterminar em êxtase o próximo, em proveito de algo falsamente mágico que nos parece uma "Terra Prometida". Um tipo de miragem considerada "superior à vida".

(In. A caixa preta. Amos Oz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 238-239).

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Antes que anoiteça - Reinaldo Arenas

 
Antes que, tal como naquele período negro da História, o divergente tenha suas palavras sufocadas por uma estratégia silenciadora do particular, estratégia desejante que haja uma massa sem qualquer saliência que seja mais fácil de afagar ou lançar pra longe. Antes que uma estratégia dolorosamente totalizante se aproprie do mais estranho em nós mesmos, daquilo que carrega o germen da subversão. Antes que esta estratégia violentamente persecutória, movida por ideais quaisquer, sejam eles religiosos, políticos ou sociais, suplante o "ir e vir" ou a conquista da eletricidade, obrigando o sujeito a se embrenhar nas matas selvagens, donde só pode contar com a condescendência da luz solar para escrever o que lhe resta, seja razão ou loucura, antes que o negro torne a visão inoperante.
"Antes que anoiteça", leia a autobiografia de Reinaldo Arenas, que não bastando se sentir exilado de si mesmo, teve que se exilar de sua ilha natal por conta de uma sexualidade chamada de estrangeira pelo outro.
Se você não é socialista....leia. Se é, leia mais ainda. E antes de aceitar a advertência de qualquer um que lhe diga: "Não leia este traidor!" reflita se não é uma traição não estar sensível a angústia de um sujeito por conta da sua escuta estar atravessada por ideologias, traição que não é maior para com o outro do que é para você. Não perca de vista aquele famoso trecho que virou adágio da carta de Rimbaud.
 
*
 
Trechos de "Antes que anoiteça", de Reinaldo Arenas:
 
"Acredito que o esplendor da minha infância tenha sido único, pois se desenvolveu na mais absoluta miséria, mas também na mais absoluta liberdade; em campo aberto, cercado de árvores, bichos, aparições e pessoas que eram indiferentes em relação a mim. Minha existência não era sequer justificada, e ninguém se importava. Isso facilitava enormemente minhas fugas, sem que ninguém se preocupasse com o local do meu esconderijo ou com a hora da minha volta" (p.22).
*
"Acho que a época mais fértil da minha criação foi a infância; foi um mundo de criatividade. Para preencher aquela solidão tão profunda que eu experimentava em meio a tanto ruído, povoei todo o campo, aliás bastante raquítico, com personagens e aparições quase míticas e sobrenaturais. Uma das personagens que eu via com enorme clareza todas as noites era um velho que rolava um aro, debaixo a imensa mata que crescia em frente à casa. Quem era aquele velho? Por que ficava rolando aquele aro que parecia uma roda de bicicleta? Era o horror que me aguardava? O horror que aguardava toda a vida humana? Era a morte? A morte sempre esteve muito próxima de mim; tem sido uma companheira tão fiel que às vezes lamento ter que morrer, pois então talvez a morte me abandone" (pp.23-4).
*
"Sempre achei que minha família, incluindo minha mãe, considerava-me um ser estranho, meio doido ou louco; completamente fora do contexto de suas vidas. Com certeza, tinham toda razão" (p.36).
*
"O mar é nossa selva e nossa esperança" (p.341).
 
(In. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2009).
 
Trecho do filme "Antes que anoiteça", estrelado por Javier Bardem, baseado na obra do escritor cubano:
 
*
 
 


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Só garotos - Patti Smith

 
 
"Só garotos" é um livro em que Patti Smith conta do seu encontro com Robert Mapplethorpe, encontro que rendeu uma jornada para além das vivências sexuais, das infinitas possibilidades e finitas impossibilidades do amor.
Quando Patti e Robert se esbarraram eles eram apenas "garotos" e o germe que faria deles donos de um estilo único estava a espreita de florescer. Em comum havia a paixão pela pintura, poesia, música e tudo que dissesse respeito as agonias ínverbalizáveis do ser humano.
Eles compartilharam vivências peculiares e cuidaram um do outro. Mantiveram-se juntos mesmo quando a vida os lançou em caminhos diferentes. O que tiveram não  foi uma dita "parte importante" da vida de cada um...não, foi mais. Foi algo fermentador da maturação de cada um enquanto sujeito, foi o que os fortaleceu para se empossarem plenamente da existência. Não foi "parte da vida" pois foi a própria vida. Foi "para além" da vida. Foi o que deu a certeza para o que era uma suspeita de ambos: a arte como única saída viável para a sufocante absurdidade das conveniências mundanas.
Patti desde cedo não se rendeu. Ela foi a garotinha que não viu sentido em repetir as ladainhas que a sua mãe lhe impingia todas as noites antes de dormir; para ela rezar de acordo com sentenças ditadas era tão pecaminoso quanto crer em um Deus com o qual não pudesse ser sincera. Patti ousou criar seu próprio modo de conversar com Deus, e aí vemos o primeiro vestígio da artista.
Mais tarde, quando uma gravidez inesperada a assaltou, Patti não quis sequestrar a liberdade de um jovem parceiro em troca de reconhecimento social, tal como os "bons costumes" previam. Ela deu vida à filha e a deixou a salvo sem sacrificar a felicidade de outrem.
Patti seguiu adiante. Saiu de casa, morou na rua, roubou pincéis.
 Escapou de um curso universitário medíocre e usou, sem se permitir ser usada, de empregos que garantiam parcamente suas necessidades básicas enquanto ela corria atrás do que queria.
Robert também não se rendeu. Ele, que tinha do "bom e do melhor" (menos amor) com os pais, que lhe pagavam os estudos e esperam que ele se tornasse um profissional gráfico de sucesso, pai de família e dito cidadão respeitável, também saiu de casa. Passou fome, teve febre, e sobreviveu de migalhas até encontrar na fotografia o seu modo de estar dignamente no mundo.
No meio do caminho de Patti e Robert houve pedras, diversas pedras...daquelas grandes e brutas. Mas no meio do caminho de Patti e Robert houve Patti....e houve Robert, para lapidar uma vida possível.
"Só garotos" é a inesquecível narrativa de Patti sobre este caminho.
 
 
Trecho do livro:
 
"A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.
 
Querido Robert,
Sempre que estou na cama acordada me pergunto se você também está acordado na cama. Você está com alguma dor ou se sentindo sozinho? Você me tirou do período mais negro da minha juventude, dividindo comigo o mistério sagrado do que é ser artista. Aprendi a ver com você e nunca faço um verso ou desenho uma curva que não venha do conhecimento que consegui durante o nosso valioso tempo juntos. O seu trabalho, oriundo de uma fonte fluida, remonta à canção nua da sua juventude. E você fala em ficar de mãos dadas com Deus. Lembre-se, aconteça o que acontecer, você sempre esteve segurando essa mão, aperte-a com força Robert, não solte.
Na outra tarde, quando você dormiu no meu ombro, eu também cochilei. Mas antes pensei em dar uma olhada nas suas coisas e no seu trabalho e, passando por anos de trabalho na minha cabeça, vi que, de todos os seus trabalhos, você ainda é o mais bonito. O trabalho mais lindo de todos.
Patti".
 
*
 
(Só Garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 252).
 
 
 
 
 


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Amor, poesia, sabedoria - Edgar Morin

 
 
*
"Terminarei fornecendo à pesquisa sobre o amor a fórmula de Rimbaud, a da pesquisa de uma verdade que se situe, simultaneamente, numa alma e num corpo" .
*
"A autenticidade do amor não consiste apenas em projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro".
*
"A totalidade é a não-verdade" .
*
"Mas o amor é paradoxal como a vida e, por isso, há amores que duram, do mesmo modo que dura uma vida".
*
 
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A queda - Albert Camus (trechos)


"Se os proxenetas e os ladrões fossem sempre condenados em toda parte, as pessoas de bem, meu caro senhor, julgar-se-iam todas e incessantemente inocentes. E, no meu entender - pronto, pronto já chega lá! - é, sobretudo isso que é preciso evitar".
*
"Conheci um homem que deu vinte anos de sua vida a uma desmiolada, por quem tudo sacrificou, as amizades, o trabalho, a própria decência de sua vida, para uma noite conhecer que nunca a havia amado. Ele se entediava, nada mais. Entendia-se... como a maior parte das pessoas. Havia construído, peça por peça, uma vida de complicações e dramas. É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros".
*
"Talvez não amemos a vida o bastante. Já reparou que só a morte desperta nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos nossos mestres que já não falam mais, que estão com a boca cheia de terra...! A homenagem vem, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez tivessem esperado de nós a vida inteira. Mas sabe por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples. Em relação a eles, já não há obrigações. Deixam-nos livres, podemos dispor de nosso tempo, encaixar a homenagem entre o coquetel e uma doce amante: em resumo, nas horas vagas. Se nos impusessem algo, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, não é o morto recente que nós amamos em nossos amigos, o morto doloroso, nossa emoção, enfim, nós mesmos".
*
"Fazia a guerra por meios pacíficos e obtinha, enfim, pelo desinteresse, tudo que cobiçava. Por exemplo, nunca me lamentava de terem esquecido a data de meu aniversário; as pessoas chegavam a se surpreender, com uma ligeira dose de admiração, de minha discrição no caso. Mas a razão de meu desinteresse era ainda mais discreta: eu desejava ser esquecido para poder lamentar-me disso a mim mesmo. Vários dias antes da data, entre todas gloriosa, que eu conhecia bem, ficava à espreita, atento para nada deixar escapar que pudesse despertar a atenção e a memória daqueles cuja falha eu contava (não tive um dia a intenção de alterar um calendário?). Uma vez bem demonstrada minha solidão, podia então entregar-me aos encantos de uma tristeza viril".
*
"A libertinagem nada tem de frenético, ao contrário do que se pensa. É apenas um longo sono".
*
"O ato de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, aí a vaidade se exibe ou, então, aí se revela a verdadeira generosidade".
*
"Para deixar de ser duvidoso, é preciso, pura e simplesmente, deixar de ser".
*
"Sim, caro amigo, o casamento burguês colocou nosso país de chinelos e em breve vai leva-lo às portas da morte".
*
"Cada homem é testemunha do crime de todos os outros, eis minha fé e minha esperança".
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"Que importa, afinal? As mentiras não conduzem finalmente ao caminho da verdade? E minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tendem todas ao mesmo fim, não têm o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas, se, em ...ambos os casos, são representativas do que fui e do que sou? Pode-se, às vezes, ver com mais clareza em quem mente do que em quem fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto".
 
 
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terça-feira, 22 de abril de 2014

Esperança do mundo - Albert Camus


"No mosteiro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio guarnecido de arcadas, tomado por flores vermelhas, pelo sol e por abelhas amarelas e pretas. Em um canto, um regador verde. Por toda parte, o zunido de moscas. Temperado de calor, o pequeno jardim fumega suavemente. Sentado no chão, eu penso nos franciscanos cujos aposentos vi há pouco, cuja inspiração percebo agora, e sinto realmente que, se eles têm razão, é junto de mim que eles têm razão. Atrás da parede em que me apoio, sei que existe a colina que resvala em direção à cidade e essa dádiva de toda Florença com seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação desses homens. E deposito todo meu orgulho em acreditar que ele também é o meu e o de todos os homens de minha raça - que sabem que uma pobreza extrema encontra sempre o luxo e a riqueza do mundo. Se eles se despem, é por uma vida maior ( e não por uma outra vida). É o único sentido que posso atribuir à palavra "desnudamento". "Estar nu" conserva sempre um sentido de liberdade física e esse acordo da mão e das flores, esse entendimento amoroso da terra e do homem liberado do humano, ah eu bem que me converteria se essa já não fosse minha religião.
Hoje, me sinto livre em relação ao meu passado e ao que perdi. Só quero esse aperto e esse espaço fechado - esse fervor lúcido e paciente. E como pão quente que se aperta e que se reduz a quase nada, eu quero apenas ter minha vida nas mãos, como aqueles homens que souberam encerrar suas vidas entre flores e colunas. E ainda essas longas noites de trem nas quais se pode falar consigo mesmo e se preparar para viver, de si para si, e a paciência admirável de retomar ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. Lamber a vida como um torrão doce, moldá-la, afiá-la, amá-la enfim, como se busca a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquilo ou aquela que conclui, que detém, com o que se partirá e que fará dali em diante todo o colorido do nosso olhar. Eu bem que poderia parar aí, encontrar finalmente o termo de um ano de vida desenfreada e louca. Essa presença de mim diante de mim mesmo - meu esforço é levá-la até o limite, mantê-la diante de todas as faces de minha vida, mesmo ao preço da solidão, que eu sei agora o quanto é difícil suportar. Não ceder: tudo está ali. Não consentir, não trair. Toda minha violência me ajuda nisso e, no  ponto em que ela me leva, meu amor me reencontra e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
Sempre que cedemos (que eu cedo) às próprias vaidades, sempre que pensamos e vivemos para "parecer", nos traímos. Todas as vezes, sempre foi a desgraça de querer parecer que me diminuiu diante do verdadeiro. Não precisamos nos entregar aos outros, mas somente àqueles que amamos. Pois nesse caso não se trata mais de se entregar para parecer, mas somente para oferecer. Quando é necessário, um homem tem muito mais força do que parece. Ir até o limite é saber guardar seu segredo. Eu sofri por ser sozinho, mas, por ter guardado meu segredo, venci o sofrimento de ser sozinho. E hoje não conheço maior glória que viver sozinho e ignorado. Escrever, minha alegria profunda" Consentir ao mundo e ao prazer - mas somente no desnudamento. Eu não queria ser digno de amar a nudez das praias se não soubesse ficar nu diante de mim mesmo. Pela primeira vez, o sentido da palavra felicidade não me parece duvidoso. É um pouco o contrário do que se entende pelo banal "eu sou feliz".
Certa continuidade no desespero acaba por gerar a alegria. E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm seu aposento o crânio que alimenta suas meditações, com Florença pela janela e a morte sobre a mesa. Em minha opinião, se eu me sinto em um ponto decisivo da minha vida, não é por causa do que adquiri, mas do que perdi. Sinto que tenho uma extrema e profunda força. É graças a ela que devo viver, da maneira como desejo. Se hoje me encontro tão distante de tudo, é porque não tenho outra capacidade além de amar e admirar. Vida com a aparência de lágrimas e sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como eu gosto e desejo, me parece que ao acariciá-la, todas as forças do desespero e do amor se conjugarão.
Hoje não é como uma hesitação entre sim e não. Mas hoje é sim e é não. Não e revolta diante de tudo o que não são lágrimas e e sol. Sim para a minha vida da qual sinto pela primeira vez a promessa por vir. Um ano fervilhante e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta diante de meu passado e de mim mesmo. Aí está minha pobreza e única riqueza. É como se eu recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência de minhas capacidades e, o desprezo de minhas vaidades e essa febre, lúcida, que me lança diante de meu destino".


(Anotação feita em 15/09/1937 - do caderno: Esperança do mundo (1935-37). São Paulo: Hedra, 2014, p.66-69.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Galopando insana pela casa - Hilda Hilst


S.O.S! Help! Socorro! Aiuto! Aide!
Tô no poço, no bueiro, na cova ainda não, mas tô por perto, e tô olhando o meu retrato aqui na sala, eu aos 26 (todo mundo pergunta quando entra: quem é?) e ao contrário daquele de Dorian Gray o meu é lindo e mais pro "Dorian Gay", e eu na carne, velhíssima, tristíssima, paupérrima, amarela... Comprem alguma coisa minha, meu dedo mindinho por exemplo, que tem uma "anomalia de distribuição de sulcos" segundo meu admirável professor de biologia, que me fazia decorar tudo aquilo de anélias platelmintes nematelmintes artrópodas moluscas moluscoideias. Então comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu abismo de ser e de ter sido, meu lado compassivo, o fervoroso de mim que foi perdido, minha boca aberta (ou comprem meus dentes, ao menos para sorrir amarelo), comprem minhas frases (se as houver) na agonia visceral d despedida, e se eu nada disser comprem o silêncio do poeta, ou minha pele manchada, égua vermelhusca e manca galopando insana pela casa. Comprem minha mesa, minha terra, meu lápis, meu sovaco claro, meus poemas primeiros, meus versos derradeiros, ah sim, minha garganta preclara, meus rutilantes neurônios, minhas rugas magras, comprem comprem! Tô inteirinha à venda, negada!
Estamos todos à venda, os escritores, nesta terra de bolas ladrões eleições presidentes doutores, terra onde a apalavra vale menos que um gato putrefato, onde um poema no jornal só serve para uma eventual escarrada, onde um livro só é lido se for de um pulha rábula, ou se for um guia para tua melhor trepada.
Mas a verdade é que há este amanhecer, estes lilases orvalhados pela cara, este porre patético, eu e meu jovem e sóbrio amigo que chamo de Vivo, também ele um poeta, que para me arrancar desta noite de sombras e de mitos, leu para mim, este seu poema, enquanto eu maldizia a mim mesma e a Deus:

Deixa-me tatear teu hálito
obscuro que estou
de todos os sentidos.
Deixa-me (ao menos) concluir
que esta ilusão de formas
é apenas munha inconclusa
maneira de ocultar-te.
Deixa-me (em sigilo)
beirar a secura do teu corpo
- o abismo de tocar-te.

P.S: Dialogozinho eotérico à maneira da URV:
Depois disso ela morreu, é?
"Não sei ao certo. Mas alguém teve a liberdade de enterrá-la" (frase atribuída ao pai de James Joyce).
E "Gloomy Sunday" pra vocês também".
*
(crônica escrita no domingo, 13/3/94).

(In: Cascos & Carícias & Outras crônicas. Rio de Janeiro: Globo, 2006, p. 202-204).

segunda-feira, 10 de março de 2014

Poemas de Wislawa Szymborska

Entre muitos
Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos
Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.
No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.
Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.
Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.
Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.
Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.
E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?
Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?
A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.
Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.
Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
*
A mulher de Lot
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
*
Uma certa gente
Uma certa gente fugindo de outra gente
em um certo país sob o sol
e algumas nuvens.
Deixam para trás um certo seu tudo
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.
Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.
É no silêncio que alguém cai de exaustão
é no alarido que alguém rouba de alguém o pão
e o filho morto de alguém é sacudido.
À sua frente uma estrada sempre errada
uma ponte, mas não a que precisam
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
No alto um avião que rodopia.
Viria a calhar certa invisibilidade
uma cinzenta rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou longo.
Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê?
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
serão quantos e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
*
Fim e Começo
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
*
A vida na hora
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Nao dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.

E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
*
 
Escrevendo um curriculo
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai,
esse por quem você se passa.

Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando o papel.

*
Sob uma estrela pequenina
Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

(In. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012).
 

Hemingway & Gellhorn - o Filme (trecho).


"O homem pode ser estruído mas não derrotado. Se ainda está de pé, ele pode lutar".
*
"Escrever é como ir à missa. Deus se aborrece se você não aparecer".
*
 "Martha...você tem que ficar comigo. A felicidade em pessoas inteligentes é a coisa mais rara que eu conheço".

Trailer do filme:


Sobre o filme: