"E então lamento ter de dizer aqui que o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a palavra "democracia" é uma palavra admirável, e será preciso retomá-la e redefini-la, de um jeito ou de outro. Mas a democracia de que estou falando é a que funciona em nossas sociedades de maneira institucional, estatal, regular, normatizada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora da morte de Molière - que o capitalismo é esse mundo que está sempre representando uma peça cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem representada, é a melhor peça de que o capitalismo é capaz. Os espectadores e os participantes em geral aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é que é um rito para o qual são convocados e ao qual se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a democracia imaginária que é representada e, por baixo, o processo mundializado do capitalismo e da pilhagem imperial que prossegue, com seu real impalpável, cuja descrição não serve para nada. Enquanto essa peça durar e um vasto público continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou seja, a capacidade de dividi-lo, de obriga-lo a uma cisão de si mês que seja ativa e que prometa sua dissipação, sua destruição, permanecerá politicamente inacessível. Porque se essa peça é a peça do semblante democrático, se ela é a máscara que fornece ao capitalismo imperial a cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, nenhuma possibilidade de arrancar essa máscara, de interromper essa peça de teatro, está na ordem do dia, então alguma coisa permanece politicamente inacessível para qualquer empreendimento político de acesso ao real nu".
(In. Alain Badiou. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica: 2017, pp. 25-26).
"Então, aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter.
Estou mergulhado em abstrações, e só as crescentes relações entre elas criam a ilusão de um modo conhecido. Quando ouço a palavra "azul", que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de "verde" - que também nunca vi. Considerando-me um inocente, descomprometido com lealdades o obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse, registraria apenas meu futuro dia de nascimento. Sou, ou era, apesar do que me dizem agora os geneticistas, uma lousa em branco. Mas uma lousa porosa e escorregadia, inútil para ser usada numa sala de aula ou no telhado de uma cabana, uma lousa que escreve por si mesma à medida que cresce a cada dia e se torna menos branca. Considero-me um inocente, mas tudo indica que participo de uma conspiração. Minha mãe, abençoado seja seu incansável e barulhento coração, parece estar envolvida.
Parece. Mãe? Não, está de fato. Você está. Está envolvida. Sei desde o começo. Deixe que eu o evoque, aquele momento de criação que chegou com meu primeiro pensamento. Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa. Era eu? Autoadmiração excessiva. Era agora? Dramática demais. Ou algo que antecedia ambas, continha ambas, uma só palavra acompanhada de um suspiro ou de um apagão mental de aceitação, de puramente ser, algo como - isto? Muito pedante. Por isso, chegando mais perto, minha ideia foi Ser. Ou, se não isso, sua variante gramatical, é. Esse foi meu conceito original, que tem na essência é. Apenas isso. Correspondendo a Es muss sein. O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece. Minha mãe está envolvida numa conspiração e, consequentemente, eu também estou, mesmo se meu papel consistir em fazê-la fracassar. Ou, como um tolo relutante, se me demorar demais aqui, então o de ir à forra"".
(Ian McEwan. Enclausurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 6-7).
"Em nenhuma época esteve tão presente a máxima de John Donne ("Nenhum homem é uma ilha...Cada homem é parte do continente". "A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte da humanidade. Por isso nunca procures saber por quem os sins dobram, eles dobram por ti."). Não se trata mais da evocação puramente poética de uma compaixão nobre, porém idealista. É agora um relato factual de vínculos genuínos, tangíveis, que conectam a difícil condição de todos nós. Somos todos responsáveis por qualquer coisa que aconteça a qualquer um de nós, e o postulado de assumir responsabilidade por nossa responsabilidade envolve agora a necessidade de aliviar sofrimentos em qualquer canto do planta em que eles possam ocorrer, incluindo os sofrimentos mais distantes.
Esse novo desafio amplia até o limite (ou talvez mesmo além dele) a durabilidade do "impulso moral", considerando-se que por muitos séculos esse impulso costumava operar (e assim aprendeu a se sentir realmente em casa) apenas na proximidade do outro. Agora ele precisa abarcar um outro distante, na verdade "abstrato", um "outro" que é improvável conhecer, e que dificilmente será algum dia confrontado cara a cara.
Intrépidas e infatigáveis equipes de TV trazem para os nossos lares, de tempos em tempos, as imagens dessa miséria distante. Isso tem um efeito instantâneo, como acontece com toda proximidade do sofrimento humano. Ajusta a enormidade das novas responsabilidades à capacidade de nossa sensibilidade moral. Seria isso, contudo, suficiente para avaliar a magnitude dos desafios? O resultado comum das campanhas promovidas pela mídia é (...) uma sucessão de "farras piedosas" e períodos de "fadiga da caridade". De tempos em tempos ocorrem surtos de compaixão, mas é só isso, e não mais do que nossos sentimentos morais podem suportar por si mesmos. Logo aplacados, eles tiram uma soneca até o próximo "evento" em que serão uma vez mais brutalmente acordados para o fato de que nada pode ser alterado no que se refere ao volume e à profundidade da miséria humana, a despeito dessas breves explosões de piedade.
Por sua natureza, as "farras piedosas" conduzidas pela mídia são mal-equipadas para sedimentar um vínculo institucionalizado sólido, permanente e efetivo, para além dos surtos temporários de sentimentos do tipo "somos todos parte do mesmo continente". Comprovam a horrorosa semelhança do sofrimento humano, mas ficam muito longe de expor suas causas, como os meios de subsistência destruídos pelo livre comércio, os solos devastados pela monocultura imposta pelo mercado ou as inimizades tribais apoiadas e instigadas pela indústria e pelo tráfico de armamentos que enchem os cofres de nossos tesouro e aumentam o PIB doméstico.
Não admira que as raízes da miséria permaneçam intactas, independentemente do êxito que possam ter tido as sucessivas campanhas de "ajuda humanitária". Além disso, nossa própria responsabilidade direta ou indireta pela miséria que lamentamos com tanta sinceridade permanece encoberta. É como se não devêssemos coisa alguma a essas pessoas miseráveis. O que fazemos por elas não deveria ser visto como uma tentativa de quitar nossas dívidas e nos arrepender de nossos pecados, mas louvado como expressão de nossos nobres sentimentos, aumentando assim nossa glória moral".
(Bauman por Bauman. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 137-138).
" Eu observava minhas filhas quando elas estavam distraídas e sentia por elas uma complicada alternância entre simpatia e antipatia. Bianca é antipática, eu pensava às vezes, e sofria por isso. Depois eu descobria que ela era muito querida, tinha amigas e amigos, sentia que só quem a achava antipática era eu, a mãe dela, e aquilo me dava remorso. Eu não gostava de sua risadinha de escárnio. Não gostava de sua ânsia de querer sempre mais do que os outros: à mesa, por exemplo, ela pegava mais comida do que todos, não para comer, mas para ter certeza de que não perderia nada, deque não seria negligenciada ou passada para trás. Eu não gostava da sua mudez teimosa quando ela percebia que havia errado, mas não conseguia admitir o erro.
Você também é assim, dizia meu marido. Talvez fosse verdade, e o que me parecia antipático em Bianca se tratasse somente do reflexo da antipatia que eu sentia por mim mesma. Ou não, não era tão simples, tudo era mais intrincado. Mesmo quando reconhecia nas duas garotas aquilo que eu considerava minhas qualidades, sentia que algo não funcionava. Tinha a impressão de que elas não sabiam usá-las bem, de que a melhor parte de mim mesma, no corpo delas, resultava em um enxerto equivocado, uma paródia, e ficava com raiva, sentia vergonha.
Na verdade, pensando bem, o que eu mais amava nas minhas filhas era o que me parecia estranho. Delas - eu sentia - agradavam-me mais os traços que haviam puxado ao pai, mesmo após o fim tempestuoso do casamento. Ou os traços que tinham vindo de seus antepassados, dos quais eu nada sabia. Ou os traços que pareciam, na combinação dos organismos, uma invenção caprichosa do acaso. Em outras palavras, quanto mais eu me sentia próxima delas, mais parecia não carregar a responsabilidade por seus corpos.
Mas aquela proximidade estranha era rara. Os incômodos, os desgostos, os conflitos delas tornavam a se impor, continuamente, e eu me amargurava, sentia culpa. De alguma maneira, eu era sempre a origem e o ponto de fuga dos sofrimentos delas. Acusavam-me em silêncio ou gritando. Ressentiam-se não apenas da má distribuição das semelhanças evidentes, mas também das secretas, aquelas que percebemos tarde, a aura dos corpos, justamente, a aura que atordoa como uma bebida forte. Tons de voz quase imperceptíveis. Um gesto pequeno, um modo de bater as pálpebras, um sorriso-careta. O passo, o ombro que pende um pouquinho à esquerda, um balançar gracioso dos braços. A impalpável mistura de movimentos mínimos que, combinados de um certo modo, tornam Bianca sedutora e Marta, não, ou vice-versa, e então causam soberba, dor. Ou ódio, porque a potência da mãe parece sempre se dar de maneira injusta, desde o nicho vivo do ventre".
(In. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 59-60).
"Então, um dia, Olivia, a única italiana do prédio, habitado quase que só por porto-riquenhos, decidiu que seria minha amiga e começou a contar a história da sua vida em capítulos. Olivia era uma autêntica solteirona. Tinha uns sessenta anos, era baixa e gorda, dando a ideia de um tijolo. Seu cabelo era pintado de preto-azulado, e na rua ela usava uma capa preta horrível batendo nos tornozelos e uma boina escocesa vermelha (...). Toda vez que eu subia as escadas o apartamento de Olivia estava aberto, e ela me convidava para bater papo, o que significava que me contaria mais uma parte da história da sua vida.
(...) Na última vez em que fui lá, Olivia nem me ofereceu café solúvel antes de começar a falar, numa voz entrecortada, como se o ar estivesse preso no peito. Percebi que naquele dia chegaríamos ao ponto importante da sua história.
- Minha vida foi arruinada. Está vendo esses sapatos pretos horríveis? São sapatos ortopédicos. Você nunca notou como eu ando? Devagar, como o tique-taque do relógio. As crianças caçoavam de mim quando a gente ia para a escola. Eu nunca podia manter o mesmo paço que elas. Nunca me casei por causa dos meus pés. Falo três línguas mas nunca viajei. Desisti de ser religiosa porque sou muito amarga.
Naquela noite, fui acordada com um bater de asas histérico. Um pardal estava voando dentro da minha sala, batendo nas paredes, esbarrando a cabeça no teto. Como eu não conseguia ver o passarinho, muito menos pegá-lo, chamei Jason.
Ele encurralou o pardal na prateleira de baixo da estante de livros e pegou-o com as mãos em concha. Olhou para o bichinho um instante, fez um carinho na sua cabeça com o dedo, esticou a mão na janela e o passarinho saiu voando.
Quando voltei para a cama não consegui mais dormir. Fiquei pensando nos passarinhos que saíam dos ninhos voando e ficavam presos em algum lugar. Depois me lembrei dos pés de Olivia, que lhe haviam atrapalhado a vida. Na verdade, ela é que tinha atrapalhado sua vida pensando nos pés.
Durante metade da minha vida, desde que fiquei grávida, sempre pensei que Jason tinha atrapalhado a minha vida. Mas essa era uma forma de ver as coisas. Outra forma era achar que Jason havia enriquecido a minha vida, e talvez evitado que eu entrasse em mais encrenca. Com um filho para cuidar, por pior que eu agisse, tinha que manter pelo menos um pé no chão, sempre. Talvez eu tenha tido vantagem com isso. Talvez nunca tivesse oportunidade de ir para a faculdade se não fosse uma mãe vivendo à custa do seguro social. Talvez não me sentisse tão mais velha agora se não tivesse tido um filho; ao ser forçada a crescer depressa, me rebelei e me mantive criança muito mais tempo, o que contribuiu para minha vida boêmia (que começava a ficar fora de moda na metade da década de oitenta) e minha falta de dinheiro (idem), mas também manteve minhas perspectivas frescas, com amigas que queriam comprar Harley-Davidsons aos 45 anos de idade, e uma porção de interesses focalizados na alegria.
Jason tinha arruinado ou enriquecido a minha vida. A escolha era minha. A gente passa por umas coisas na vida que não pode controlar, portanto é melhor aprender com elas do que se deixar vencer por elas. Como Olivia, cheia de fel e amargura num apartamento branco brilhante, sozinha com passarinhos presos na janela".
(In. Os garotos da minha vida. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 193-195).
"Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa tarde de novembro de 1980 - ambas já estávamos com trinta e cinco anos, casadas, com filhos -, ela me contou minunciosamente o que lhe acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a essa palavra.
Estávamos ao ar livre, no topo de um dos prédios do bairro. Embora fizesse muito frio, usávamos roupas leves e soltas para parecermos bonitas. Observávamos os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras negras arrebatadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendíamos o pavio dos fogos de artifício para festejar o Ano Novo, ritual para cuja realização Lila, como contarei adiante, tinha colaborado muitíssimo, tanto que agora se sentia contente e olhava os rastros de fogo no céu. Mas subitamente - me disse -, apesar do frio, começara a cobrir-se de suor. Tivera a impressão de que todos gritavam demais e se moviam em grande velocidade. Essa sensação fora acompanhada de uma náusea, e ela teve a sensação deque algo absolutamente material, presente em torno de todos e de tudo desde sempre, mas sem que conseguisse percebê-lo, estivesse destruindo o contorno das pessoas e das coisas, revelando-se.
O coração se pusera a bater descontroladamente. Começara a sentir horror pelos gritos que saíam das gargantas de todos os que se moviam pelo terraço entre a fumaça e as explosões, como se sua sonoridade obedecesse a leis novas e desconhecidas. A náusea aumentara, o dialeto perdera toda familiaridade, tornara-se insuportável o modo como nossas gargantas úmidas molhavam as palavras no líquido da saliva. Um sentido de repulsa atingira todos os corpos em movimento, sua estrutura óssea, o frenesi que os sacudia. Como somos malformados, pensara, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos lhe pareceram atributos de seres monstruosos, descidos de algum recesso do céu negro. E a repulsa, quem sabe por que, se concentrara sobretudo no corpo de seu irmão Rino, a pessoa que lhe era a mais familiar, a pessoa que mais amava.
(...).
Na ocasião em que me fez esse relato, Lila também disse que o que chamava de desmarginação, mesmo tendo ocorrido de modo claro apenas naquela oportunidade, não era inteiramente novo para ela. Por exemplo, já tinha experimentado muitas vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de Ano Novo lhe ocorrera pela primeira vez de perceber entidades desconhecidas, que destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora. Aquilo a transtornara".
(In. A amiga genial - série napolitana, v. 1 - Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015, p. 61).
Unheimilich = “relaciona-se ao que
é terrível, ao que desperta angústia e terror. Também está claro que o termo
não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale
ao angustiante (...); a condição essencial para que surja o sentimento do
inquietante é a incerteza intelectual (...), seria sempre algo em que nos
achamos desarvorados, por assim dizer (...); o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que,
não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e
a do que é estranho, mantido oculto (...) Unheimlich
seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” .
(Freud. O inquietante. In. Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 329-338).
*
Unheimlich é o que aparece
quando algo toma o lugar da inscrição da castração: “quando aparece algo ali,
portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar”.
(Lacan. O Seminário, livro X - A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52).
A Terra é um minúsculo ponto, distante 6.4 bilhões de quilômetros, no meio de um raio solar, circulado em azul. *
A foto que inspirou Carl Sagan:
No dia 14 de fevereiro de 1990, tendo completado sua missão primordial, foi enviado um comando a Voyager 1 para se virar e tirar fotografias dos planetas que havia visitado. A NASA havia feito uma compilação de cerca de 60 imagens criando neste evento único um mosaico do Sistema Solar. Uma das imagens que retornou da Voyager era a da Terra, a 6,4 bilhões de quilômetros de distância, mostrando-a como um "pálido ponto azul" na granulada imagem. Sagan disse que a famosa fotografia tirada da missão Apollo 8, mostrando a Terra acima da Lua, forçou os humanos a olharem a Terra como somente uma parte do universo. No espírito desta realização, Sagan disse que pediu para que a Voyager tirasse uma fotografia da Terra do ponto favorável que se encontrava nos confins do Sistema Solar. Essa foto acabou inspirando Carl Sagan a escrever o livro Pálido Ponto Azul em 1994.
A reflexão :
Numa conferência em 11 de Maio de 1996, Sagan falou dos seus pensamentos sobre a histórica fotografia:
"Olhem de novo esse ponto. É aqui, é a nossa casa, somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveram as suas vidas. O conjunto da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas confiantes, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada professor de ética, cada político corrupto, cada "superestrela", cada "líder supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali - em um grão de pó suspenso num raio de sol. A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios. A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga vida. Não há outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, sim. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, a Terra é onde temos de ficar por enquanto. Já foi dito que astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humana do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o "pálido ponto azul", o único lar que conhecemos até hoje".
Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas vilhando de gente, de gritos e vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença inapelável: "O Levante é cheio de micróbios".
(...) Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico cor de rosa, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão, costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o dr. Kumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, D´us não permita, lhe acontecer.
Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror dos micróbios era soberano. Morreu no banho.
De fato, teve um infarto.
Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema de sua vida em Jerusalém, "O Levante é cheio de micróbios", aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores.
Eis aí, talvez, uma fresta por onde será possível dar uma espiada e reconstituir um pouco do efeito das visões do Oriente, suas cores e cheiros, sobre minha avó e talvez sobre os outros imigrantes refugiados, que também vieram de aldeias cinzento-outonais da Europa Oriental e ficaram tão apavorados com a transbordante sensualidade do Levante que decidiram se proteger de suas ameaças construindo um gueto para si próprios.
Ameaças? A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos à sua volta, deixando-a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam (...). Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções, desde seu primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois?
Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque, de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou - nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados ilhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e fervidos, esse desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios"
(De amor e de trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 45-48).
Se a primeira dimensão do igualitarismo diz respeito à luta contra a desigualdade econômica, a segunda se refere à estrutura das demandas de reconhecimento na vida social. Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos chamar de necessidade de uma política da indiferença. Uma maneira de compreender tal necessidade é partir da constatação do esgotamento da diferença como valor maior para a ação política.
Durante certo tempo, embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na "diferença" o valor supremo de toda crítica social e ação política. Assim, os anos 1970 e 1980 foram palco da constituição de políticas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daqueles que exigiam o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc. Uma política das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa política gerou, no seu bojo, as exigências de tolerância multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim.
Sabemos como multiculturalismo diz respeito, inicialmente, a uma lógica da ação política baseada no reconhecimento institucionalizado da diversidade cultural própria às sociedades multirraciais ou às sociedades compostas por comunidades linguísticas distintas. Isso implica transformar o problema da tolerância à diversidade cultural, ou seja, o problema do reconhecimento de identidades culturais, no problema político fundamental. Dessa forma, abriram-se as portas para certa secundarização de questões marxistas tradicionais veiculadas à centralidade de processos de redistribuição e de conflito de classe na determinação da ação política. No limite, os conflitos fundamentais no interior do universo social foram compreendidos como conflitos culturais.
Por um lado, tal dinâmica teve sua importância por dar maior visibilidade a alguns dos setores mais vulneráveis da sociedade (como negros, mulheres e homossexuais). No entanto, a partir de um certo momento, começou a funcionar de maneira contrária àquilo que prometia, pois podemos atualmente dizer que essa transformação de conflitos sociais uma equação usada à exaustão pela direita mundial, em especial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as classes pobres europeias serem compostas majoritariamente por imigrantes árabes africanos e, assim, patrocinarem uma política brutal de estigmatização e exclusão política travestida de choque de civilizações.
Desse modo, posso estigmatizar pobres aproveitando-me do fato de eles serem culturalmente diferentes, criando com isso situações de profunda precarização do trabalho, de contínua insegurança de trabalhadores, que são espoliados de todo e qualquer direito por serem imigrantes. Um clássico conflito de classe e espoliação transformou-se em choque civilizatório.
Ou seja, há uma linha reta que vai da tolerância multicultural à perpetuação racista da exclusão daqueles para quem nossos valores nunca deram prova de inclusão modernizadora. Afinal, trata-se de dizer que o único lugar onde a diferença pode florescer em liberdade é em nosso Ocidente defendido por mega-aparatos securitários contra terroristas. Talvez o saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que não se adaptam a nosso "campo das diferenças" não são diferentes, mas simplesmente irrepresentáveis, objetos de perpétua exclusão.
Este é um ponto importante por nos mostrar como a organização discursiva do campo social das diferenças é sempre solidária à exclusão de elementos que não poderão ser representados por esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que não serão mais ouvidos, elementos cujas palavras serão definidas por nós como desprovidas de racionalidade e de possibilidade de reconhecimento. A única maneira de evitar isso é organizar o campo social a partir da equação das diferenças.
A equação das diferenças, tão presente nas dinâmicas multiculturais, parte da seguinte questão: até onde podemos suportar uma diferença? Esta é, no entanto, uma péssima questão. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade. Como se minha identidade já estivesse definida e simplesmente se comparasse à identidade do outro. Nada mais falso.
(...) O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. No limite, isso nos leva a criticar a existência de uma nação e um Estado francês, kosovar, judeu, flamengo, inglês, brasileiro etc. Condição maior para discutir a possibilidade de construção de Estados pós-identitários, que não precisem repetir compulsivamente identidades ilusórias construídas pelos interesses políticos do dia.
(...) Contra aqueles que não veem relação alguma entre fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais reacionária do catolicismo e política multicultural das diferenças, valeria a pena fazer aqui algumas considerações. Não podemos perder de vista que se trata, no fundo, de impor uma escolha forçada. Ou de um modo de experiência social da diferença que se realiza na multiplicação de maneiras de ser coerente com os imperativos da modernidade capitalista. Ou a procura pela reconstituição social de vínculos identitários substanciais patrocinada pela polícia e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nação, família etc.).
Diante dessa situação, devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. Nossas formas hegemônicas de vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a geografia mental da liberalização e da restrição.
(In. A esquerda não ousa dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 26-33).
Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por que perder tempo com teoria e discussão sobre princípios se as urgências práticas da política parecerem tão prementes. Nesse sentido, valeria a pena lembra-lo dos parágrafos iniciais de Carta ao humanismo, em que Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensa-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age enquanto pensa.
Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento, no fundo, ser um subterfúgio para a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir. Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa, é porque ele é a única atividade que tem força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir. É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.
A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais "customizadas" e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.
Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação não efetiva pare, a fim de que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a força crítica e a força radical do pensamento.
Quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa. Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas. E talvez devamos colocar novamente esta questão simples: para uma perspectiva de esquerda, quais são os verdadeiros problemas?
(In. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 17-19).
- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....
"Poderíamos recuperar a beatitude, como um dia falou Spinoza, poderíamos falar do contentamento, tal como um dia falou Kant, ou mesmo tentar recuperar a felicidade, como atualmente faz Badiou, mas essas seriam formas de ignorar que, para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual. Há uma compreensão da inevitabilidade do impossível, do colapso do nosso sistema de possíveis que faz de um indivíduo um sujeito.
Nesse sentido, há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. Talvez fosse mais correto chamar tal demanda de cuidado pelo Outro de "frustração". Mas há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício da liberdade. Uma liberdade que consiste na não sujeição ao Outro, em uma, como bem disse uma vez Derrida, "heteronomia sem sujeição". Uma não sujeição que não é criação de ilusões autárquicas de autonomia, mas capacidade de se relacionar àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar do Outro, algo que desampara o Outro. Assim, sou causa da minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterônomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio. O que talvez seja o sentido mas profundo de uma heteronomia sem servidão. O que também não poderia ser diferente, já que amar alguém é amar suas linhas de fuga".
(In. Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 39-40).
"Então vamos à grande questão: qual seria hoje o ato ético-político verdadeiramente radical no Oriente Médio? Tanto para os israelitas como para os árabes consistiria no gesto de renúncia ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o controle (temporário) de uma força internacional neutra. O que os dois lados deveriam aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão efetivamente renunciando a nada. Antes, estão conseguindo a elevação de Jerusalém a um autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política o sentido de São Paulo: "Para nós não existem nem judeus nem palestinos". Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente "puro" seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um faria ao outro.
Recordemos a história do círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o fato de a pequena história brechtiana ser uma evidente variante do juízo do Rei Salomão que aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto - não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar? Tal solidariedade partilhada é a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente".
(Violência. Slavoj Zizek. São Paulo: Boitempo, 2014, pp. 106-107).
"As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções sociais que são a arte, a religião e a filosofia e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, a caricatura de uma religião, e um delírio paranoico, de um sistema filosófico. A diferenciação remonta, em última análise, ao fato de as neuroses serem formações associais; elas procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo.
Na análise instintual das neuroses percebemos que nelas a influência determinante é a das forças instintuais de origem sexual, enquanto as formações culturais correspondentes baseiam-se em instintos sociais, aqueles oriundos da junção de elementos egoístas e eróticos. Pois a necessidade sexual não é capaz de unir os homens da mesma forma que as exigências da autopreservação; a satisfação sexual é, antes de tudo, assunto particular do indivíduo.
Do ponto de vista genético (de gênese), a natureza associal da neurose resulta de sua tendência original de escapar de uma realidade insatisfatória, rumo a um prazeroso mundo da fantasia. O mundo real, evitado pelo neurótico, é governado pela sociedade dos homens e pelas instituições que eles criaram conjuntamente; dar as costas à realidade é, ao mesmo tempo, retirar-se da comunidade humana".
(Sigmund Freud. Totem e Tabu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp.119-120).
...enquanto Freud identificava-se com Aníbal para associar sua descoberta a um princípio de resistência, Lacan ia bem mais longe: queria fazer dessa descoberta o paradigma de todas as formas possíveis de rebelião humana. Sob esse aspecto, inscrevia sua trajetória na tradição da exceção francesa. A França, sabemos, é o único país do mundo onde foi afi...rmada com força a ideia de que Freud realizara uma revolução no sentido pleno da palavra: teórica, política e ideológica. A origem dessa exceção remonta, em primeiro lugar, à revolução de 1789, que deu uma legitimidade científica e jurídica ao olhar da razão sobre a loucura, fazendo nascer a instituição do hospício, e, depois, ao caso Dreyfus, que tornou possível a instauração de uma consciência de si da classe intelectual. Ao designar-se como vanguarda, esta pôde apoderar-se das ideias mais inovadoras e fazê-las frutificar. (...) Para firmar essa hipótese de uma natureza subversiva do freudismo, de que ele era o herdeiro por seu convívio com os surrealistas, com Bataille e a obra nietzschiana, Lacan havia buscado fazer remontar a origem dela ao próprio Freud. Mas, como dar a prova de tal afirmação quando ela não se encontrava em nenhum lugar? Lacan resolvera esse delicado problema ao visitar Carl Gustav Jung por volta de 1954. O mais célebre dissidente da saga freudiana estava então com 79 anos. Em sua esplêndida casa de Kusnacht, às margens do lago de Zurique, distribuía atenções, conselhos e erudição, qual um sábio velho oriental, aos numerosos visitantes vindos dos quatro cantos do mundo para encontrá-lo. Consciente da dificuldade de chegar até ele, Lacan havia pedido a seu colega Roland Cohen que interviesse a seu favor. Psiquiatra e germanista, este conhecera Jung em 1936, tornara-se seu discípulo e depois realizara a primeira tradução francesa de suas obras. Frequentando Nacht, Lacan, Ey e Lagache no hospital Saint-Anne depois da guerra, ele havia tentado em vão convencê-los a levar em conta o ensinamento junguiano em seus trabalhos. Quando Lacan pediu-lhe uma carta de recomendação para Jung, Cahen acreditou numa confrontação possível entre duas doutrinas: "Escuta, meu velho, entre teus significados e nossos arquétipos, somos primos-irmãos". Lacan opôs uma recusa categórica: "Jamais", respondeu, "mas desejo ver Jung porque estou certo de que ele tem lembranças a contar sobre Freud e quero publicá-las". Nessa data, Jung ainda não havia empreendido a redação de suas Memórias, sua correspondência com Freud não fora publicada e nenhum trabalho biográfico a respeito dele estava em andamento. Para compreender a história das origens e dos começos da Psicanálise, dispunha-se apenas da hagiografia freudiana. Ora, Jung sempre aparecia aí como uma personagem negativa e infiel ante a sacrossanta figura do mestre vienense, apresentado como um herói sem temor e sem pecha. A ideia de Lacan de fazer Jung testemunhar sobre suas relações com Freud era portanto excelente. O encontro realizou-se, mas Roland Cahen lamentou o que se passara, e Jung guardou da conversa apenas uma lembrança fugaz. Se Lacan não quis dizer nada a seu colega, é que reservava sua informação a outros ouvintes. Em 7 de novembro de 1955, em sua conferência sobre a "coisa" freudiana pronunciada em alemão em Viena, mencionou pela primeira vez a visita a Kusnacht: "É assim que o dito de Freud a Jung, da boca de quem eu o devo, quando, convidados ambos pela Clark University, chegaram diante do porto de Nova York e sua célebre estátua que ilumina o universo: ´Eles não sabem que lhe trazemos a peste´, lhe é devolvido como uma sanção de uma hybris cuja antífrase e sua perfídia não extinguem o confuso brilho". Ao comentar esse dito, Lacan sublinhava que Freud havia se enganado: acreditara que a Psicanálise seria uma revolução para a América, e foi a América que devorou sua doutrina ao retirar-lhe seu espírito de subversão. Esse suposto dito de Freud foi ouvido como algo que ia muito além de qualquer esperança. Na França, com efeito, ninguém duvida da realidade subversiva do freudismo; sobretudo, ninguém ousa imaginar que Freud certamente jamais pronunciou essa frase durante sua viagem aos Estados Unidos, em 1909, acompanhado de Jung e de Ferenczi. Entretanto, o estudo dos textos, das correspondências e dos arquivos mostra que Jung reservou apenas para Lacan esse preciosa confidência. Em suas Memórias, fala da viagem mas não faz nenhuma alusão a peste. Por seu lado, Freud e Ferenczi jamais empregaram a palavra. Quanto a historiadores do freudismo, de Ernest Jones a Max Schur passando por Henri Ellenberger, Vincent Brome, Clarence Oberdorf, Paul Roazen, Nathan G. Hale e Peter Gay, eles observam que Freud disse apenas: "Eles ficarão surpresos quando souberem o que temos a lhes dizer". Imbuído dessa confidência de que era o único depositário, Lacan inventou portanto uma ficção mais verdadeira que o real, destinada a impor, contra a psicanálise dita americana, sua própria retomada da doutrina vienense, doravante marcada pelo selo da subversão. E se essa visão da "peste freudiana" chegou a se estabelecer tão bem na França, a ponto de os próprios não lacanianos acreditarem hoje que ela pertence a Freud, é que se inscrevia na continuação direta dessa exceção francesa da qual Lacan, após ter sido o difamador, era ao mesmo tempo o herdeiro e renovador.
(In. Elisabeth Roudinesco. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 359-362).
Não se trata do poema e sim do homem e sua vida — a mentida, a ferida, a consentida vida já ganha e já perdida e ganha outra vez. Não se trata do poema e sim da fome de vida, o sôfrego pulsar entre constelações e embrulhos, entre engulhos. Alguns viajam, vão a Nova York, a Santiago do Chile. Outros ficam mesmo na Rua da Alfândega, detrás de balcões e de guichês. Todos te buscam, facho de vida, escuro e claro, que é mais que a água na grama que o banho no mar, que o beijo na boca, mais que a paixão na cama. Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns te acham e te perdem. Outros te acham e não te reconhecem e há os que se perdem por te achar, ó desatino ó verdade, ó fome de vida!
O amor é difícil mas pode luzir em qualquer ponto da cidade. E estamos na cidade sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto ela é fabril e imaginária, se entrega inteira como se estivesse pronta. Vista do alto, com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém. Mas vista de perto, revela o seu túrbido presente, sua carnadura de pânico: as pessoas que vão e vêm que entram e saem, que passam sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro sangue urbano movido a juros. São pessoas que passam sem falar e estão cheias de vozes e ruínas. És Antônio? És Francisco? És Mariana? Onde escondeste o verde clarão dos dias? Onde escondeste a vida que em teu olhar se apaga mal se acende? E passamos carregados de flores sufocadas. Mas, dentro, no coração, eu sei, a vida bate. Subterraneamente, a vida bate. Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi, sob as penas da lei, em teu pulso, a vida bate. E é essa clandestina esperança misturada ao sal do mar que me sustenta esta tarde debruçado à janela de meu quarto em Ipanema na América Latina.