Pesquisar este blog

domingo, 28 de abril de 2013

Noites brancas - Dostoiévski (trechos favoritos)

*
"Agora, querida Nástienka, agora pareço o espírito do rei Salomão, que ficou mil anos numa caixa lacrada com sete selos, os quais foram finalmente retirados. Agora, querida Nástienka, quando nos encontramos novamente depois de tão longa separação - porque eu a conheço há muito tempo, Nástienka, porque há muito tempo procurava alguém, e isto é um sinal de que procurava justamente a senhorita e que estávamos fadados a nos encontrar neste momento -, agora em minha cabeça abriram-se milhares de válvulas e tenho de me derramar feito um rio de palavras, senão ficarei sufocado" - (p.33).
*
"...- Agora, quando estou sentado ao seu lado e falo consigo, tenho medo de pensar no futuro, pois no fututo está novamente a solidão, novamente esta vidaa inútil e cheirando a mofo; e com o quê vou sonhar se, desperto, fui tão feliz ao seu lado? Oh, bendita seja a senhorita, minha querida, por não ter me rejeitado logo na primeira vez. porque agora posso dizer que vivi ao menos duas noites em minha vida!
- Oh, não, não! - gritou Nástienka, e pequenas lágrimas brilharam em seus olhos. - Não será mais assim, não vamos nos separar assim! O que são duas noites?
- Oh, Nástienka, Nástienka! A senhorita sabe que me reconciliou por muito tempo comigo mesmo? Sabe que agora já não penso tão mal de mim mesmo como pensava em certos momentos? Sabe que, talvez, eu já não vá mais sofrer por ter cometido um crime e um pecado, pois uma vida assim é um crime e um pecado? E não pense que exagerei algo; pela graça de Deus, não pense isto, Nástienka, porque às vezes sou tomado por momentos de tanta tristeza, e tanta tristeza...Porque nesses momentos já começa a me parecer que nunca serei capaz de começar a viver uma vida autêntica; porque já me parecia que eu tinha perdido todo o tato, toda noção do autêntico, do real; porque, enfim, eu maldizia a mim mesmo; porque depois de minhas noites fantásticas eu logo sou tomado por terríveis momentos de desilusão! Entretanto, sente-se que ao redor gira e ressoa uma multidão de pessoas no turbilhão da vida; sente-se, vê-se como as pessoas vivem: vivem de verdade; vê-se que a vida para elas não é proibida, que a vida delas não se dissipa como um sonho, como uma visão; que a vida delas se renova eternamente, é eternamente jovem, e que nenhuma de suas horas se assemelha a outra, ao passo que é triste e monótona até a vulgaridade a fantasia tímida, escrava de uma sombra, de uma idéia, escrava da primeira nuvem que cobrir de repente o sol e oprimir de tristeza o autêntico coração peterbursgense, que tanto aprecia o seu sol - e que fantasia pode haver na tristeza! Sente-se que ela, essa fantasia inesgotável, finalmente se cansa, enfraquece numa tensão eterna, pois você amadurece, abandona seus antigos ideiais: estes se desfazem em pó, em pedaços; se não há outra vida, então é preciso construí-la a partir desses pedaços. E no entanto, é outra coisa que a alma pede e quer! E em vão o sonhador remexe, como que nas cinzas, em seus velhos sonhos, procurando nessas cinzas ao menos uma centelha para soprá-la e, através do fogo renovador, aquecer o coração esfriado e ressuscitar novamente tudo o que antes era tão belo, que tocava a alama, que fazia o sangue fervilhar, que arrancava lágrimas dos olhos e que iludia com tanta perfeição! Sabe a que ponto cheguei, Nástienka? Sabe que já estou obrigado a celebrar o aniver´sario de minhas sensações, o aniversário daquilo que na realidade nunca aconteceu - porque esse aniversário é celebrado em memória daqueles mesmos sonhos tolos e incorpóreos -, e devo fazer isto porque estes sonhos tolos não existem, pois não há nada para substituí-los, e os sonhos devem ser substituídos! (...) E me pergunto: onde é que estão os meus sonhos? E balançando a cabeça, digo: como os anos voam depressa! E novamente pergunto: mas o que você fez dos seus anos? Onde sepultou a sua melhor época? Você viveu ou não? Veja, digo a mim mesmo, veja que o mundo está ficando frio. Ainda passarão anos, e atrás deles virá a solidão sombria, virá a velhice trêmula com uma bengala, e atrás dela a tristeza e a melancolia (...)" - (p.43-4).
*
"- Vamos, Nástienka, vamos! - gritei de entusiasmo. - E se eu a amasse já há vinte anos, ainda assim não a amaria mais do que agora!" (p.45).
*
"Meu Deus! Um momento inteiro de júbilo! Não será isto o bastante para uma vida inteira?" - (p.82).
 
 
(Noites brancas. São Paulo: Editora 34, 2005).


terça-feira, 16 de abril de 2013

Soneto de Homenagem - Antero de Quental

 
Cena do filme - As Pontes de Madison

"Se há nesta vida um Deus para os acasos,
Que pela humanidade o bem reparte
Que te dê da fortuna a melhor parte
Que venturas te dê, sem lei nem prazos.
...

Eu, de alegrias tenho os olhos rasos
de lágrimas, querida, ao vir brindar-te
Quando vejo que até para saudar-te,
As flores se debruçam sobre os vasos.

O meu brinde é sumário, curto e breve
Se o nome que se quer, quando se escreve
Move-se a pena com traços ideais.

Um anjo como tu, quando se brinda
Tem-se a missão cumprida e a festa finda
Quebra-se a taça e não se bebe mais".


segunda-feira, 15 de abril de 2013

A primeira noite de um homem - (trecho)


"Sinto-me muito bem com você.
(...).
Você é a primeira......
A primeira coisa agradável que me aconteceu em muito tempo.
A primeira pessoa cuja companhia eu suporto.
Toda a minha vida é uma desordem.
Uma nulidade" -
(Ben para Elaine).




*
Curiosidade: "Quando o filme foi lançado em Portugal, os censores do então regime ditatorial cortaram o final. Ou seja, o longa terminava com Benjamin atrás do vidro da igreja, vendo Elaine se casar. A idéia era não deixar passar nenhum mau exemplo para a juventude - no caso, o da jovem abandonando o altar".
(Do Livreto "A primeira noite de um homem" - da cinemateca Veja. São Paulo: Editora Abril, 2008, p.51). 
*
O trecho censurado em Portugal:
*
"The sound of silence", de Paul Simon and Garfunkel - tema do filme:

segunda-feira, 8 de abril de 2013

A questão que o artista propõe ao psicanalista - Alain Didier-Weill

Que o humano é efeito da mestiçagem de substâncias tão heterogêneas quanto o são a materialidade do corpo, a imagem do corpo e o verbo enxertado neste corpo, tal é o ensino quotidianamente concedido ao psicanalista.
O que a prática do psicanalista não cessa de lembrar-lhe é que essa mestiçagem, pela qual o real, o simbólico e o imaginário se entrelaçam, institui entre corpo, imaginário e palavra, uma nodulação cujo caráter problemático traduz-se por este sofrimento que se chama sintoma.
Se a ênfase do sofrimento incide sobre o corpo, o sintoma expresso pelo analisando privilegiará o mal-estar que pode um sujeito experimentar na maneira que tem de habitar o próprio corpo. Esse mal-estar é a própria expressão do fato de que, após ter-se tornado falante, o homem se viu despojado daquela naturalidade que tanto o fascina no corpo do animal: será concebível um cavalo, ou um gato, que dê a impressão de estar mal alojado em seu corpo, de sentir-se apertado nele ou, ao contrário, de nele perder-se?
Que poderá a análise transmitir a um sujeito que sofre de não sentir-se "em casa" no seu próprio corpo? De que modo poderá o analisando - o qual, mergulhado na depressão, tem a sensação de receber tamanha pressão da gravidade que não pode erguer um corpo que se tornou excessivamente pesado - reencontrar a leveza saltitante desse corpo?
A experiência nos ensina que o sujeito pode esquecer esta dimensão do corpo que pesa - vale dizer daquele companheiro que é o cadáver potencial - quando o real do corpo redescobre o liame primordial com o poder originário daquele véu humanizante que é a vestimenta, a roupa.
Por efeito da humanização trazida por este véu, o real do corpo subtraído ao reino exclusivo do peso torna-se um real chamado a elevar-se, a erguer-se num movimento que o impele a olhar para o céu. O enigma deste movimento ascensional em que nosso ancestral, o Homo erectus, ergueu-se  um dia envolve uma outra força que não a do músculo.
E assim é que esse movimento de reerguimento, que pode transmitir um trabalho analítico, prende-se à capacidade do analisando de poder esquecer que seu corpo não é apenas material: este corpo encerra a possibilidade de ser imaterializado pelo enxerto do véu imaginário e da palavra.
Esse enigmático poder de esquecimento - que o analista articula ao esquecimento primordial do recalque originário - é a primeira pergunta que o analista recebe do artista quando este se faz dançarino: não é o artista aquele que nos instrui sobre a aptidão do corpo para recusar o peso ao dar testemunho de sua parte de imaterialidade?
Se. na primeira face que apresenta, o sintoma humano, ao privilegiar o sofrimento ligado ao corpo, é questionado pelo destino que a dança outorga ao corpo, em sua segunda face, o sintoma humano, estando ligado à perturbação da imagem do homem, recebe, agora do pintor, outra questão fundamental.
O sofrimento ligado à imagem do corpo prende-se ao fato de que esta imagem é estruturada como fundamentalmente dependente do olhar do outro. A expressão desta dependência toma, de modo geral, duas direções antonômicas.
Na primeira destas direções, o sujeito é conduzido à seguinte pergunta: "Serei eu conforme ao que o olho do Outro espera de mim? Tenho eu boa forma, o bom uniforme?".
A experiência nos ensina que, para adquirir tal conformidade, o sujeito está pronto a se renegar. Para isto, uma vez que a função do olhar é a de procurar uma imagem, fundamentalmente silencioso, ele está pronto a desqualificar-se como ser falante e, se este sujeito é uma mulher, a obedecer, como imagem, à seguinte injunção: "Seja bela e cale-se!". O sentido dessa auto-desqualificação é: "Consinto no silêncio já que consinto em não ser mais do que imagem visível, quer dizer, coisa despojada de invisível. Na verdade, sei que o que fala não poderia ser senão invisível".
A segunda direção que pode tomar o sofrimento do sujeito exposto ao olhar prende-se ao que lhe acontecerá quando, deixando-se trnasparente sob o "olho mau" medusante, tem então a experiência de perder aquela coisa viva que há nele e que é a sua parte de invisibilidade. A partir daí, sua imagem, despojada de sua parte de inimaginável, desaparece, pois sua consistência visível vinha-lhe apenas da existência de sua carga de invisível.
Que acontece ao sujeito que é visto de todos os lados por um olhar onividente, onisciente? Ele é medusado, tornado estátua, reduzido à imobilidade. O deslocamento e o movimento só se tornarão de novo possíveis para ele caso reencontre, por um trabalho psicanalítico, aquele ponto para além da imagem que é, como indica o segundo mandamento da lei mosaica, a palavra.
Desse terceiro ponto em que a palavra e a imagem cessam de estar dissociadas, pode aparecer um outro tipo de olhar, completamente diverso daquele do "olho mau": esse novo olhar que o analisando encontra no fim da análise é, contrariamente ao olhar que tudo sabe, um olhar que não sabe tudo e que está, por isto mesmo, disposto a poder não conhecer, mas reconhecer o que há de invisível no sujeito. Poder-se-ia dizer que o advento deste olhar se dá como lhar que ouve: manifesta-se pela primeira vez na cena trágica grega quando Apolo - deus da imagem - consegue "ver" o que ouve: a música de Dionisio.
É neste ponto que o analista que se interroga sobre a estrutura do olhar que ele próprio pousa no analisando encontra a questão do olhar do pintor: não é o pintor aquele que sabe ouvir o invisível e sabe deixá-lo com algumas manchas de cor?
O terceiro sentido em que se experimenta o sintoma é aquele que se induz no sujeito quando a palavra deste, desajeitada, intimidada pelo temor de não articular, de gaguejar, prefere esconder-se no silêncio para não correr o risco de fazer ouvir, para além do que as palavras poderiam fazer escutar, a dimensão do inaudito própria do inconsciente.
Como pode um sujeito, na verdade, assumir o reconhecimento de que é instituído não pelo domínio do que pensa, mas pelo que diz, já que, do momento em que ele se permite falar verdadeiramente, descobre que não é senhor da palavra, pois é ela que é a sua senhora: é a palavra que dispõe do poder criador de transgredir o código e de deixar aparecerem significações inéditas.
É à medida que é levado a reconhecer que o fato de não assumir o poder metafórico da palavra é indutor do sintoma humano, que o analisando é levado a recolher do poeta, do músico, a seguinte pergunta: de que é feita a sua relação com a linguagem se, por sua prática, ele é conduzido a subverter o que a prosa faz ouvir de sensato, fazendo ouvir, pelo poema e pela música, o que o poema ou a música transmite de propriamente inaudito?
(In: Nota azul - Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, p.19-26).

domingo, 7 de abril de 2013

O sonho de Irma e a pulsão invocante - Alain Didier-Weill

"Lacan supõe, naquele que vai se tornar analista, um desejo X ligado ao instinto de morte, do qual dá uma ilustração marcante no Seminário Le mois dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, ao comentar o sonho de Irma: Lacan interpreta a produção do significante trimetilamina, como a produção de um significante no plano do qual acontecem o que ele chama uma "liberação do sujeito" e uma "saída da culpa inconsciente".
Eis a maneira como Lacan comenta a produção de trimetilamina: "Tal como um oráculo, a fórmula não dá resposta alguma a qualquer coisa que seja". Mas o modo pelo qual ela se enuncia, seu caráter enigmático, é que é a resposta do sentido do sonho. Pode-se decalcar a formulação islâmica: "Não há outro Deus senão Deus: não há outra palavra, outra solução para o vosso problema, senão a palavra".
Uma outra voz toma a palavra...Poderíamos chamar de Nemo este sujeito fora do sujeito que designa toda a estrutura do sonho...Não há outra palavra do sonho senão a própria natureza do simbólico...Esta palavra não quer dizer senão o que é, uma palavra...
Seria uma palavra delirante se o sujeito sozinho tentasse achar aí, à maneira de um ocultista, a designação secreta do ponto onde está, na verdade, a solução do mistério do sujeito e do mundo. Mas ele não está sozinho.
É dentro dessa possibilidade de dirigir-se a - pela qual o sujeito sai da solidão - que Freud, a nosso ver, entra na dimensão de uma invocação que estrutura não a demanda, mas a pulsão invocante.
A diferença entre ambas está em que a demanda visa um Outro que deve estar imediatamente presente, ao passo que a invocação dorige-se a um Outro que não está presente senão como por-vir. A pulsão invocante é assim transferência no tempo.
O paradoxo temporal ligado à produção do significante trimetilamina é o seguinte: de um lado, por intermédio deste significante, o sujeito se dirige a um Outro que ainda não está presente, mas cujo advento é esperado em virtude de uma certa transferência no tempo; por outro lado, nesta invocação para o futuro, o Sujeito toma nota, no presente, do fato de que ele está fazendo uma aposta com a qual afirma que acredita "nisso".
Acreditar nisso, e não acreditar "nele" ou "nela", é a definição mais sucinta que podemos dar ao amor".
(In: Nota Azul - Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, p.15-6).

terça-feira, 2 de abril de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou - (III)

 
Mas, ao mesmo tempo em que é potência, toda verdade é uma impotência. Pois aquilo sobre o que ela tem jurisdição não poderia ser uma totalidade.
Verdade e totalidade serem incompatíveis é, decerto, o ensinamento decisivo - ou pós-hegeliano - da modernidade.
Jacques Lacan exprime essa idéia em seu aforismo famoso: a verdade não pode se dizer "por inteiro", só pode se meio-dizer. Mallarmé, por sua vez, criticava os parnasianos, que, como dizia, "tomam a coisa por inteiro e mostram-na". Por aí, acrescentava, "perdem o mistério".
Como quer que seja que uma verdade seja verdade, não se poderia pretender que ela a investisse "por inteiro", que fosse sua mostração integral. O poder de revelação de um poema enreda-se em torno de um enigma, de modo que a verificação desse enigma faça todo o real de impotência da potência do verdadeiro. Nesse sentido, o "mistério nas letras" é um verdadeiro imperativo. Quando Mallarmé sustenta que "sempre deve haver enigma em poesia", funda uma ética do mistério que é o respeito, pelo poder de uma verdade, de seu ponto de impotência.
O mistério é de fato que toda verdade poética deixe em seu centro o que ela não tem o poder de fazer vir à tona.
Mais geralmente, uma verdade sempre encontra, em um ponto do que investe, o limite em que se prova que ela é esta verdade singular, e não a consciência de si do Todo.
O fato de que toda verdade é sempre um processo singular, embora ela proceda indefinidamente, é atestado no real por ao menos um ponto de impotência, ou, como diz Mallarmé, "uma rocha, falso solar de imediato evaporado em brumas que impôs um limite no infinito".
Uma verdade se depara com a rocha de sua própria singularidade, e é apenas aí que se enuncia, como impotência, que uma verdade existe.
Chamemos esse deparar o inominável. O inominável é aquilo cuja nomeação uma verdade não pode forçar. Aquilo cuja transformação em verdade ela não pode antecipar.
Todo regime da verdade baseia-se no real em seu inominável próprio.
 
(In: Pequeno Manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.38-9).

 
"Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas" - Clarice Lispector


segunda-feira, 1 de abril de 2013

O Dia que durou 21 anos - (filme)



Este documentário mostra a influência do governo dos Estados Unidos no Golpe de Estado no Brasil em 1964. A ação militar que deu início à ditadura contou com a ativa participação de agências como CIA e a própria Casa Branca. Com documentos secretos e gravações originais da época, o filme mostra como os presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson se organizaram para tirar o presidente João Goulart do poder e apoiar o governo do marechal Humberto Castelo Branco.
*
Parte 1:
*
Parte 2:
*
Parte 3:

domingo, 31 de março de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou (II)

 
"Ora, o que se constata? Que, no esquema romântico, a relação da verdade com a arte é de fato imanente (a arte expõe a descida finita da Idéia), mas não singular (pois se trata da verdade, e o pensamento do pensador não se coaduna com nada que difere do que o dizer do poeta desvela). Que, no didatismo, a relação é certamente singular (só a arte pode expor uma verdade sob a forma de aparência), mas de modo algum imanente, pois em definitivo a posição da verdade é extrínseca. E que, finalmente, no classicismo, trata-se apenas do que uma verdade coage no imaginário, sob a forma do verossímil.
Nos esquemas herdados, a relação das obras artísticas com a verdade jamais consegue ser ao mesmo tempo singular e imanente.
Afirmar-se-á, portanto, essa simultaneidade. O que também se diz: a própria arte é um procedimento de verdade. Ou ainda: a identificação filosófica da arte depende da categoria de verdade.
A arte é um pensamento cujas obras são o real (e não o efeito). E esse pensamento, ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras verdades, sejam elas científicas, políticas ou amorosas. O que também quer dizer que a arte, como pensamento singular, é irredutível à filosofia.
Imanência: a arte é rigorosamente coextensiva às verdades que prodigaliza.
Singularidade: essas verdades não são dadas em nenhum outro lugar a não ser na arte.
Nessa visão das coisas, o que ocorre com o terceiro termo do entrelaçamento, a função educativa da arte? A arte educa simplesmente porque produz verdades e porque "educação" jamais quis dizer nada além (a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas) do seguinte: dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se estabelecer.
A coisa pela qual a arte educa é simplesmente a sua existência.
Trata-se apenas de encontrar essa existência, o que quer dizer: pensar um pensamento.
A filosofia deve, a partir de então, no que diz respeito à arte e a todo procedimento de verdade, mostrá-Ia como tal. A filosofia é de fato a intermediária dos encontros com as verdades, a alcoviteira do verdadeiro. E da mesma maneira que a beleza deve estar na mulher encontrada, mas não é absolutamente exigida da alcoviteira, as verdades são artísticas, científicas, amorosas ou  políticas, e não filosóficas".
Continua...
*
 (In.Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.20-1).
 


sábado, 30 de março de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou



Por "inestética" entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando que a arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte.

Alain Badiou, abril de 1998


*
Laço que desde sempre é alterado por um sintoma, o de uma oscilação, de um batimento.
Nas origens, existe o repúdio sustentado por Platão acerca do poema, do teatro, da música. De tudo isso, deve-se dizer que o fundador da filosofia, evidentemente refinado conhecedor de todas as artes de seu tempo, só dá importância, na República, à música militar e ao canto patriótico. Na outra extremidade, encontra-se uma devoção piedosa em relação à arte, um ajoelhar-se contrito do conceito, pensado como niilismo técnico, diante da palavra poética que oferece sozinha o mundo ao Aberto latente de seu próprio desamparo.
 
 
Mas o sofista Protágoras já designava, afinal, o aprendizado artístico como a chave da educação. Havia uma aliança de Protágoras e de Simônides, o poeta cuja impostura o Sócrates de Platão tenta frustrar e sujeitar a seus próprios fins a intensidade pensável. Vem-me à mente uma imagem, uma matriz analógica do sentido: filosofia e arte são historicamente acopladas tal qual são, segundo Lacan, o Mestre e a Histérica. Sabe-se que a histérica vem dizer ao mestre: "A verdade fala por minha boca, estou aqui, e tu, que sabes, diga-me quem sou." E adivinha-se que, por maior que seja a sutileza douta da resposta do mestre, a histérica lhe dará a entender que ainda não é isso, que seu aqui escapa à apreensão, que se deve retomar tudo e redobrar esforços para lhe agradar. Nesse momento, ela ruma para o mestre e torna-se sua cortesã. E, da mesma maneira, a arte já está sempre aqui, dirigindo ao pensador a questão muda e cintilante de sua identidade, enquanto, por sua constante invenção, por sua metamorfose, ela declara-se decepcionada com tudo o que o filósofo enuncia a seu respeito. O mestre da histérica praticamente não tem outra escolha, caso demonstre má vontade à servidão amorosa, à idolatria que deve pagar com uma produção de saber estafante e sempre decepcionante, a não ser lhe passar o cetro. E, da mesma maneira, o mestre filósofo permanece dividido, no que diz respeito à arte, entre idolatria e censura. Ou dirá aos jovens, seus discípulos, que o cerne de qualquer educação viril da razão é manter-se afastado da Criatura, ou acabará por conceder que só ela, esse brilho opaco do qual só podemos ser cativos, nos ensine sobre o viés por onde a verdade comanda que o saber seja produzido.
Continua.....
*
(Pequeno manual de inestética. Sao Paulo: Estaçao cultural, 2002, p.11-2).

quinta-feira, 28 de março de 2013

Zizek em São Paulo


Questionado sobre o porquê de estar editando um jornal para a classe menos privilegiada, uma vez que era um banqueiro, Kane responde:
"Se eu não defender o interesse dos privilegiados, então uma outra pessoa irá fazê-lo. Talvez alguém sem nenhum dinheiro ou propriedade, talvez eles mesmos comecem a defender os seus privilégios; e a gente não quer isso" -
 
(Zizek citando um diálogo do filme Cidadão Kane, de Orson Wells, na conferência de 8/3/13, em SP).
*
Link para a conferência de Zizek no youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=IKDQ7ZJ3Aho

Conversas de botequim - (I)



Na fila de entrada para um evento marxista, encontrei uma senhora que comentava enfaticamente sobre o seu orgulho em não ter permitido que a sua filha adolescente assistisse ao fenômeno de bilheteria "Titanic".
Perguntei: - Mas por que não?...
- Porque o filme foi uma infâmia, lavagem cerebral. Pão e circo. Nada de bons valores sociais que pudessem sensibilizá-la.
-Não? E o drama da família burguesa que beirava a crise? E por que o romance entre Jack e Rose era mal visto? Mais, por que Rose se viu arrebatada por Jack? Mais: Por que haviam tantos imigrantes na terceira classe do navio? Mais ainda: E quanto as condições do navio, a luta dos ocupantes da terceira classe para se salvarem, dentre as classes sociais ocupantes, quem se salvou em maior número, e a custa de quem? Enfim, tem certeza de que sua filha não teria nada com o que ficar sensibilizada?
A inflamada senhora emudeceu.
Se Marx e Engels encontravam nos romances de Balzac, burguês autoproclamado, elementos de reflexão, quem somos nós para fazer por menos? Nada mais atual que o velho provérbio revisitado, a maldade da alienação está naquele que olha mas não vê, algo tanto ou mais assustador quanto as nosssas mazelas sociais, caros companheiros.

terça-feira, 19 de março de 2013

Diário da tua ausência - Margarida Rebelo Pinto (I)

"É possível que no meu patrimônio genético exista o gene da espera, herdado das avós das avós das minhas avós, séculos a fio repletos de gerações de mulheres que viveram toda a sua vida à espera dos homens, desde a reconquista de Portugal, escondidas nas pequenas aldeias do norte  sob a proteção do condado. Depois, até o reinado de D. Afonso IV, enquanto combatiam a mourama. E mais tarde, na era dos Descobrimentos, quando partiam em naus e caravelas e ficavam por lá, a plantar a bandeira de Portugal nas praias que iam conquistando, erguendo padrões e fortes onde podiam, desde a costa africana até às Índias, passando pelo Brasil e por tantos outros lugares.
As mulheres portuguesas sempre esperaram pelos homens e a isso chamo a vocação de Penélope, a sábia e sensata mulher de Ulisses que esperou vinte anos pelo marido, sem nunca permitir que nenhum outro homem se casasse com ela e usurpasse o trono de Ítaca. A lenda não revela se ela satisfez as suas necessidades sexuais com outros homens, por isso nunca saberemos se a mulher do guerreiro era mesmo um modelo de abnegação e sacrifício, ou apenas sabia como fazer as coisas. O que conta é o que a lenda reza e a lenda diz que Penélope nunca cedeu ao medo, nunca deixou de acreditar que um dia Ulisses voltaria (...).
Como é incompleta a Odisséia! A história devia ter contado os milhares de trabalhos de Penélope a tentar defender a sua casa e o seu coração (...). De que valem Cíclopes aterradores, ilhas encantadas, cercos de guerras que duram dez anos e sereias que fazem naufragar navios, comparados com a luta pela sobrevivência de um amor incerto e sem garatias durante mais de vinte anos, num tempo em que ausência não tinha outra resposta que não fosse o silêncio e desconhecimento? Penélope era forte. Não desistiu de esperar, mesmo sem telefones, e-mails, ou mensagens escritas.
A história da humanidade esqueceu-se de contar a outra história, a história de todas as Penélopes...".
(In: Diário da tua ausência. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012, p.12-15).
*
Penélope retratada na arte:









domingo, 17 de março de 2013

O dia em que te esqueci - Margarida Rebelo Pinto (II)

 
"Não há culpa nem mérito em tudo o que o destino decide por nós, muito menos quando somos ainda umas crianças e o inesperado nos atinge na maior fragilidade e esmaga os nossos virgens espíritos.
A tua natureza fugidia e arisca não é a tua primeira natureza, antes uma reação à realidade com que  te confrontaste. Nunca te habituaste a dar. Quando eras ainda uma criança, a tua vida mudou tão repentinamente que eese choque só é comparável a um refugiado de guerra" - (p.27).
*
"É mais fácil arrancar uma árvore com todas as suas raízes do que esquecer a intimidade" - (p.31).
*
"Nunca tive medo da luz, nem tampouco me assustei com a minha sombra, mas aprendi a ver nas trevas dos outros a grandeza da minha própria escuridão, e demorei demasiados anos a a aceitar que, se há coisas que nunca se agarram, o amor é uma delas. Sempre que tentas correr atrás dele, brinca com a tua dor, faz-se de gato da Alice, que escarnece de nós para desaparecer em seguida, brincando aos impostores como Oz, o feiticeiro, que se divertia a ser mau, só para provar que a maldade é uma força indomável, com vida própria, que não vale a pena tentar domesticar ou fingir ignorar. O amor aparece para alterar o rumo da tua vida, e acaba sempre por conseguir, quer queiras, quer não" - (p.30-1).
*
"Se não crer em si mesmo é um sinal de fraqueza, de si nunca duvidar é outro, e ainda mais ridículo" - (p.57).
 
(Margarida Rebelo Pinto. O dia em que te esqueci. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012).


sexta-feira, 15 de março de 2013

O dia em que te esqueci - Margarida Rebelo Pinto (I)

"Todas as famílias escondem tragédias, guardam segredos e revelam idiossincrasias. Lembro-me de uma frase de Lucía Etxebarría que te enviei há alguns anos e que adotaste como uma das tuas poucas verdades: as únicas famílias felizes são as que se conhecem mal.
Ambos sabemos muito bem quanta sabedoria está contida em tal afirmação. Várias vezes aludiste à falta de intimidade que tens com a tua família, sempre com o cuidado de nunca a confundires com ausência de afeto ou proximidade.
A intimidade é outra coisa, e disso sabemos nós. A nossa assusta-te tanto, que ainda foges dela".
(O dia em que te esqueci. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p.16-7)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Retorno á questão judaica - Elisabeth Roudinesco (trecho)

 
"Quando Báal Shem Tov tinha uma tarefa difícil para cumprir, ia para certo local na floresta, acendia uma fogueira e mergulhava numa oração silenciosa; e o que ele tinha para cumprir se realizava. Quando, uma geração depois, o Maguid de Meseritz se viu confrontado com a mesma tarefa, foi para aquele mesmo local na floresta e disse:" Já não sabemos acender a fogueira, mas ainda sabemos dizer a oração". E o que ele tinha para cumprir se realizou. Uma geração depois, Rabi Moshe ...Leib de Sassov teve de cumprir a mesma tarefa. Também ele foi para a floresta e disse: "Já não sabemos acender a fogueira, já não conhecemos os mistérios da oração, mas ainda conhecemos o local preciso da floresta onde aquilo acontecia, e isso deve bastar". E bastou. Mas quando outra geração passou e o Rabi Israel de Rishin teve de enfrentar a mesma tarefa, ficou em casa sentado na sua poltrona e disse: "Já não sabemos acender a fogueira, já não sabemos dizer as orações, já nem conhecemos o local na floresta, mas ainda sabemos contar a história". E a história que ele contou teve o mesmo efeito que as práticas de seus predecessores.
Para além do hassidismo, esse episódio revela o que é o pertencimento identitário vivido pelos judeus...definido como um "resto" e como um "lembra-te!".
*
(Elisabeth Roudinesco. Retorno à questão judaica. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p.21)

Frankenweenie - (trecho)

"- Você deveria ser cientista.
- Ninguém gosta de cientistas.
- Eles gostam do que a ciência nos dá, mas não das perguntas que ela faz.
- Eu tenho uma pergunta.
- Haaaaaa.....é por isso que você é um cientista.
- Eu estava fazendo meu projeto. E da primeira vez deu super certo. Mas da segunda vez não. Tipo, meio que funcionou, mas não deu, e eu não sei o porquê.
- Talvez não tenha entendido direito da primeira vez. As pessoas acham que a ciência está aqui [na mente], mas ela também está aqui dentro [do coração]. Na primeira vez, amava seu experimento?
- Amava.
- E na segunda?
- Não, só queria terminar logo.
- Então você mudou as variáveis".
*
Trailer do filme disponível no youtube: