Escrita pelo português João Marques Lopes, que atualmente desenvolve doutorado na área de Literatura brasileira da Universidade de Lisboa, esta é a mais recente biografia de Saramago que vem a público após a morte do escritor, e que teve grande destaque na Bienal do Livro ocorrida este ano em São Paulo.
Apesar da narrativa abusar de termos acadêmicos, o que não compromete a compreensão e fruição do texto, ela acrescenta poucas novidades ao que já fora amplarmente divulgado pelas mídias sobre a vida do prêmio Nobel de Literatura; foi dada demasiada ênfase ao envolvimento do escritor com questões políticas em detrimento de suas outras facetas, como criador e mesmo como homem.
Creio que quem deseja ter um maior contato com a vida e a obra de Saramago fará melhor lendo aos "Cadernos de Lanzarote", nos quais é o próprio escritor que narra as suas aventuras e desventuras, acrescidas da sua aguda sensibilidade perceptória, imensurável bagagem cultural e emotividade.
Entrementes, a biografia de João é válida para quem deseja tomar um primeiro contato com Saramago, por trazer à baila um apanhado geral sobre a vida e as obras do escritor.
A seguir, destaco alguns pontos interessantes do livro.
As origens de Saramago são humildes; seus avós maternos foram camponeses analfabetos, criadores de porcos (o avô fora injeitado quando pequeno e colocado na roda da Misericórdia). Nos vinte e um anos em que viveu com os pais, Saramago mudou-se dez vezes, pois vivia em casas de aluguel, e sempre que este aumentava, a famíla tinha que se deslocar para locais mais "acessíveis". Num desses locais, o sexto andar de um prédio velho na periferia de Lisboa, a família tinha que roubar água; neste lugar havia apenas dois livros, que lá jaziam por terem sido abandonados por outros inquilinos: tratava-se de um guia de conversação português-francês, e da "Toutinegra do Moinho," de Émile de Richebourg; durante muito tempo estes foram os únicos livros com os quais Saramago teve contato.
As origens humildes ficará marcada num episódio curioso envolvendo o nome do escritor. O pai, batizado como José de Sousa, fora registrar o menino em cartório, revelando ao escrevente que desejava que o filho tivesse o mesmo nome . Tudo feito, deixara o cartório e só alguns anos depois, ao acessar a certidão para matricular o menino na escola, descobriu que o escrevente adicionara arbitrariamente ao José de Sousa o sobrenome Saramago. O pai ficou arrasado, pois Saramago se tratava de um nome jocoso, que aludia a uma espécie de erva ruim, dessas que crescem espontanemente, o que denunciava como a família era denegrida entre os vizinhos da aldeia onde moravam.
Ainda que a mãe de Saramago fosse analfabeta, ela fez questão que o filho estudasse, sendo que a sua formação básica se deu numa escola de excelente qualidade, o Liceu Gil Vicente; nesta escola é que o menino terá o primeiro contato com as artes e literatura, pelas quais desenvolverá intenso interesse; certa feita, quando Saramago ficou doente e acamado, ainda menino, a mãe percorreu toda a vizinhança implorando que lhe emprestassem livros, para levá-los ao filho e assim agradá-lo, de forma a apressar seu restabelecimento.
Impossibilitado de prosseguir os estudos no Liceu por conta das dificuldades econômicas, Saramago seguiu os estudos secundários na Escola Industrial de Afonso Domingues, como serralheiro mecânico; ele jamais cursou o ensino superior.
Sua vida profissional evoluiu do ofício como serralheiro mecânico para empregos administrativos; apesar das adversidades, Saramago nunca se manteve longe dos livros, frequentando a bilbioteca assiduamente; por este hábito é que adquiriu uma incomensurável bagagem cultural e o gosto por escrever. No entanto, seu primeiro livro só seria publicado quando o escritor já contava com 53 anos.
O encontro com Pilar del Rio
José Saramago já fora casado com Ilka Reis, com quem compartilhou trinta anos de convivência e tivera sua única filha, Violante; depois mantera um relacionamento de quase dez anos com Isabel de Nóbrega; mas foi com Pilar del Rio que, segundo ele, encontrou a verdadeira felicidade.
É Pilar que em entrevista a Juan Airas revelou como se deu o encontro. A jornalista espanhola por acaso entrou numa livraria com as amigas e encontrou um livro de Saramago, "Memorial do convento"; leu-o avidamente e lhe interessou especialmente a o destaque que Saramago conferia às mulheres na narrativa, pois Pilar sempre fora uma defensora ferrenha dos direitos femininos.
Pilar retornou à livraria e comprou outro romance, desta vez "O ano da morte de Ricardo Reis", que se tratava de uma história fictícia criada em torno de um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Segue trecho da biografia que narra o que se deu a partir de então. Diz Pilar:
"Acabei de ler o livro e chorar compulsivamente porque estava a terminar e perguntava-me: que vou fazer o resto da minha vida se o livro está a acabar? Então decidi ir percorrer os lugares de Lisboa que aparecem no romance e pareceu-me de justiça telefonar ao escritor para lhe agradecer o livro e a emoção que me tinha oferecido - assim Pilar define o início do contato com Saramago. Entretanto, mesmoantes de conhecê-lo pessoalmente, faria um programa de televisão sobre ele, e a visita a Lisboa aconteceria em junho de 1986. Consegue marcar um encontro com Saramago, que a leva ao túmulo de Pessoa no Cemitério dos Prazeres, a outros lugares do roteiro pessoano, e leem ambos fragmentos da obra. Daí nasceriam uma amizade e uma troca de correspondência baseadas em literatura, com ela e lhe enviar resenhas da imprensa espanhola a respeito dos livros dele e Saramago a lhe recomendar leituras de escritores portugueses. A relação epistolar começaria a evoluir para algo mais profundo quando, na quinta carta que enviava, o escritor lhe pergunta se haveria algum incoveniente em uma visita sua a Servilha. Após outras visitas, a relação sedimenta-se, e Pilar se mudará para Lisboa, onde se casará com o escritor em 29 de outubro de 1988. Ela tinha 37 anos e ele, 66" (Lopes, 2010, p114-5).
Os dois viveram juntos até a morte do escritor, ocorrida em junho deste ano. Todos os livros que Saramago escreveu depois de conhecer Pilar foram dedicados a ela.
A história de amor do casal é narrada em meio ao processo de concepção do livro "A viagem do elefante" no belíssimo filme "José e Pilar", em cartaz nos cinemas de SP.
Encerro este breve ensaio com uma citação de Saramago:
"Nada me causa mais desagrado do que ouvir um político dizer que não há que causar alarme social. A sociedade tem de estar alarmada, é a sua forma de estar viva".
Vale à pena conferir os blogs oficiais do escritor, que contêm documentos, fotos e resenhas originais: