Ausência: todo episódio de linguagem que encena a ausência do objeto amado - sejam quais forem sua causa e duração - e tende a transformar essa ausência em provação de abandono.
(...) Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos de saia). É a mulher que dá forma à ausência, elabora-lhe a ficção, pois tem tempo para isso; ela tece e ela canta; as Fiandeiras, as Canções de fiar dizem ao mesmo tempo a imobilidade (pelo ronrom da roca) e a ausência (ao longe, ritmos de viagem, vagas marinhas, cavalgadas). Segue-se que, em todo homem que diz a ausência do outro, o feminino se declara: este homem que espera e sofre com isso é miraculosamente feminizado.Um homem não é feminizado porque é invertido, mas porque está enamorado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que o feminino está presente). (...)
Nas fotos: Penélope, personagem de "Odisséia", à espera de Ulisses.
Sustento ao infinito, para o ausente, o discurso da sua ausência; situação em suma inaudita; o outro está ausente como referente, presente como alocutário (...).
Um koan budista diz: "O mestre segura a cabeça do discípulo debaixo da água, durante muito, muito tempo; pouco a pouco as bolhas começam a se rarefazer; no último momento, o mestre tira o discípulo, reanima-o: quando você desejar a verdade como desejou o ar, então saberá o que ela é".
A ausência do outro segura minha cabeça debaixo da água; pouco a pouco, sufoco, meu ar se rarefaz: é por essa asfixia que reconstituo minha "verdade" e preparo o Intratável do amor.
(In: Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 35-41)
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