"Pela primeira vez chorou; chorou não por Leonor, mas pela ruína total e sem remédio da sua vida inteira. porque era assim: a partir daquele momento toda a sua vida desabara convertida num montão de escombros. Debaixo dos destroços, ele jazia sepultado - morrera também. Por isso não pensou no suicídio: existem angústias tão desoladoras, tão infinitamente cruéis, que nós temos a sensação nítida - mas é verdade, temos a sensação nítida - de que já passamos para além da morte. Em muitos dias da vida, por coisas de bem menor importância, por mil complicações enervantes e mesquinhas, lembramo-nos de desertar com uma bala - chegamos até a pegar no revólver. Porém, em face duma catástrofe horrível, de tal modo horrível que nunca admitimos a hipótese de a vermos consumada, não pensamos nem por um segundo nessa libertação. Não pensamos porque a nossa dor foi tamanha que mesmo na morte não acharíamos refúgio para ela - a nossa dor foi tamanha que realmente morremos já. E como morremos já, não importa que continuemos vivos. Demais, ao peso dessa angústia, toda a vontade ficou abolida. Ora, digam o que disserem, ainda é imprescindível uma grande força de vontade para desfecharmos uma pistola sobre nós próprios, para nos precipitarmos duma ponte, para embocarmos um frasco de veneno.
(...)Embora dum escritor, estas palavras por acaso são sinceras: tenho vinte e dois anos, e não creio em coisa alguma; olho em volta de mim e não vejo nada que me atraia, nada que me encante, nada para que viva. Sinto, verdadeiramente sinto, que me barraram todo o corpo com uma camada de gesso muito espessa que me prende os movimentos, me anquiolha os músculos.
Para a doença física em que a vida se me tornou, só existe um remédio: o aniquilamento. No entanto, nunca terei a força de vontade necessária para absorver esse temível elixir. Os meus amigos podem estar perfeitamente descansados. Apesar de tudo, continuarei vivendo: apesar de nada me distrair, não deixarei de frequentar os teatros; apesar de não crer em coisa alguma, irei compondo mais livros, sempre mais livros, na conquista ´vã duma quimera de ouro... Gritando sem cessar a minha desgraça, amaldiçoando a existência, irei gozando o que nela houver de bom - como a outra gente afinal. E escrevi tudo isto...
Literatura, meus amigos, literatura...".
(In: Loucura ...e O Incesto. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p.119-121).
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Mário de Sá Carneiro, poeta português, melhor amigo de Fernando Pessoa, suicidou-se em 1916 aos vinte e cinco anos. Abaixo, segue trecho da carta de despedida que escreveu ao amigo:
"Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]".
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