Nasci na América, na cidade de São Francisco, no dia em que lá rebentou uma revolução. A revolução, naturalmente, era "dourada"; era um dia "dourado" quando todos os bancos em São Francisco foram à falência. Multidões enfurecidas vociferavam nas ruas. No dia daquela catástrofe, minha mãe esperava meu nascimento de uma hora para outra. Mais tarde ela me disse que tinha certeza de que a criança que esperava seria alguém extraordinário. Acontece que meu pai estava envolvido na catástrofe dos banqueiros. Nossa casa foi rodeada de um multidão ameaçadora, e minha mãe teve certeza de que toda essa preocupação, excitação emedo teria algum efeito na criança que estava esperando. Por isso acreditava que eu seria algo extraordinário.
Depois daqueles dias tempestuosos minha mãe foi abandonada ao seu destino com quatro criancinhas nas mãos. Embora fosse uma mulher instruída, praticamente não conseguia ganhar um pedaço de pão para si e as crianças, dando aulas de música. Ganhava pouco, e não o bastante para nos alimentar. Sempre que recordo minha infância, vejo diante de mim uma casa vazia. Com minha mãe, dando aulas, nós crianças ficávamos sentadas sozinhas, em geral com fome, e nos invernos em geral com frio.
Mas embora nossa mãe não pudesse nos dar bastante alimento físico, dava-nos suficiente alimento espiritual. Quando tocava Schubert e Beethoven para nós, ou lia trechos de Shakespeare e Shelley e Browning, esquecíamos nossa fome e frio.
Na infância, não tive brinquedos ou brincadeiras de criança. Muitas vezes fugia sozinha para as florestas ou à praia junto ao mar, e lá dançava. Sentia que meus sapatos e roupas apenas me estorvavam. Meus sapatos pesados eram como correntes; minhas roupas eram minha prisão. Por isso, eu tirava tudo. E sem olhos me espiando, inteiramente só, eu dançava nua diante do mar. E parecia-me que o mar e todas as árvores dançavam comigo.
Como minha mãe fosse muito pobre, e frequentemente nos faltasse dinheiro até para as coisas mais necessárias, nossos vizinhos - sabendo da minha habilidade para dançar - insistiam com minha mãe que me fizesse dançar em público, para eu poder ganhar dinheiro. E assim, por necessidade, eu, uma menininha de quatro anos, fui forçada a dançar diante do público. Por isso não gosto que crianças dancem diante do público por dinheiro, porque eu própria sei o que significa, dançar em troca de um pedaço de pão".
(In. Isadora Duncan - Fragmentos autobiográficos. Porto Alegre: LP&M, 1985, p. 23-4).
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