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domingo, 5 de agosto de 2012


"...a perda da aura, a famosa “desauratização”, é um fenômeno que não pode ser reduzido a uma transformação do estatuto contemporâneo da arte. É um fenômeno estético no sentido etimológico amplo de uma transformação da percepção humana, isto é, da percepção do mundo, do(s) outro(s) e de si mesmo. O poeta não é mais o mensageiro dos deuses, mas um produtor de mercadorias (poéticas!). Eros não é mais daimôn (o intermediário, o “demônio” no sentido grego do termo) que estabelece uma ponte entre a vida amorosa e sexual e a veneração da beleza divina transcendente. Parece ter sido encerrado numa fixação narcisista que a ideologia individualista da competitividade e do consumo exacerba. Contra essa “dessublimação repressiva” (Marcuse) a luta só pode ser política e, conjuntamente, estética: não reinventar uma transcendência soberana e distante, mas desconstruir a aparência lisa e comportada do real para nele abrir rachaduras e fissuras que permitem vislumbrar um “longínquo” tão desconhecido como imanente. Somente então poderá Eros ser novamente um verdadeiro demônio” .

(Jeane Marie Gagnebin em: "A questão de Eros na obra de Benjamin. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_01_jeanne_marie_gagnebin.pdf).

Uma carta de amor de Walter Benjamin

Walter Benjamin conheceu Anna Maria  Blaupot ten Cate em maio de 1933, em Berlin, durante a queima de livros pelos nazistas. Tendo reencontrado a amada durante o exílio em Ibiza, Benjamin escreve, aproximadamente em 6/8/33:
"...Você é o que eu jamais poderia amar numa mulher: você ... é muito mais. Das suas feições surge tudo o que a torna de mulher a guardiã (Hüterin), de mãe a puta (Hure).
Você transforma uma em outra e a cada uma confere mil formas. Em seus braços o destino pararia para sempre de me encontrar. Sem susto e sem nenhum risco, ele poderia deixar de me surpreender.
O silêncio profundo que paira em torno de você indica o quão distante você está daquilo que te preocupa. Nesse silêncio acontece a mudança das figuras: seu interior. Elas jogam uma nas outras como as ondas: puta e sibila, ampliando mil vezes.”
(Fonte: citado por Carla Milani Damião no artigo: Pequena incursão sobre imagens femininas nos escritos benjaminianos. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_03_carla_milani_damiao.pdf).  

sábado, 4 de agosto de 2012

Antigone - Sophocles (trechos)

Ismênia & Antígona (Emil Teschendorff).
Ismênia: Queres tu, realmente, sepultá-lo, embora isso tenha sido vedado a toda a cidade?
Antígone: Uma coisa é certa: Polinice era meu irmão, e teu também, embora recuses o que eu te peço. Não poderei ser acusada de traição para com o meu dever.
Ismênia:Infeliz! Apesar da proibição de Creonte?
Antígone: Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!
Ismênia: Ai de nós! Pensa, minha irmã, em nosso pai, como morreu esmagado pelo ódio e pelo opróbrio, quando, inteirado dos crimes que praticara, arrancou os olhos com as próprias mãos! E também em sua mãe e esposa, visto que foi ambas as coisas, que pôs termo a seus dias com um forte laço! Em terceiro lugar, em nossos irmãos, no mesmo dia perecendo ambos, desgraçados, dando-se à morte reciprocamente! E agora, que estamos a sós, pensa na morte ainda mais terrível que teremos se contrariarmos o decreto e o poder de nossos governantes! Convém não esquecer ainda que somos mulheres, e, como tais, não podemos lutar contra homens; e, também, que estamos submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso obedecer a suas ordens, por muito dolorosas que nos sejam. De minha parte, pedindo a nossos mortos que me perdoem, visto que sou obrigada, obedecerei aos que estão no poder. É loucura tentar aquilo que ultrapassa nossas forças!
Antígone: Não insistirei mais; e, ainda que mais tarde queiras ajudar-me, já não me darás prazer algum. Faze tu o que quiseres; quanto a meu irmão, eu o sepultarei! Será um belo fim, se eu morrer tendo cumprido esse dever.1 Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no túmulo... com alguém a quem amava; e meu crime será louvado, pois o tempo que terei para agradar aos mortos, é bem mais longo do que o consagrado aos vivos... Hei de jazer sob a terra eternamente!... Quanto a ti, se isso te apraz, despreza as leis divinas!
Ismênia: Não! Não as desprezo; mas não tenho forças para agir contra as leis da cidade.
Antígone: Invoca esse pretexto; eu erguerei um túmulo para meu irmão muito amado!
(...)
Ismênia: Tu pareces desejar, com o coração ardente, o que nos causa calafrios de pavor!
Antígone: Só sei que cumpro a vontade daqueles a quem devo agradar.
Ismênia: Se tu o fizeres... mas o que desejas é impossível!
Antígone: Quando me faltarem as forças, eu cederei
Ismênia: Mas não é prudente tentar o que é irrealizável!
Antígone: Visto que assim me falas, eu te odiarei! E serás odiosa, também, ao morto, junto a quem serás um dia depositada... E com razão! Vamos! Deixa-me, com minha temeridade, afrontar o perigo! Meu sofrimento nunca há de ser tão grande, quanto gloriosa será minha morte!
Ismênia: Já que assim queres, vai! Bem sabes que cometes um ato de loucura, mas provas tua dedicação por aqueles a quem amas!

A sentença de Creonte - Antígona (Silvagini).
Creonte: Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
Antígone: Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte: E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígone: Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!- Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei: é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte?Assim, a sorte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!
(...)
Antígone : Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!
Creonte : Desce, pois, à sepultura!... Visto que queres amar, ama aos que lá encontrares! Enquanto eu vivo for, nenhuma mulher me dominará!
Morte de Antígona (Riotti)

Coro: Amor, invencível Amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!  Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, Amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós!

(...)

Antigone: E agora sou arrastada, virgem ainda, para morrer, sem que houvesse sentido os prazeres do amor e os da maternidade. Abandonada por meus amigos, caminho, viva ainda, para a mansão dos mortos. Deuses imortais, a qual de vossas leis eu desobedeci? Mas... de que me serve implorar os deuses? Que auxílio deles posso receber, se foi por minha piedade que atraí sobre mim o castigo reservado aos ímpios? Se tais coisas merecem a aprovação dos deuses, reconheço que sofro por minha culpa; mas se provém de meus inimigos, eu não lhes desejo um suplício mais cruel do que o que vou padecer!
Antígone - 1961 (com Irene Papas) - Filme completo disponível no youtube

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Experiência e pobreza - Walter Benjamin

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (...).
Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras (...).
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.
Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.

Escrito em 1933

(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-9).

De Hannah para Heidegger



"Caro Martin,
Dirijo-me a você com a antiga certeza e com o velho pedido: não se esqueça de mim e não esqueça o quão profundamente sei que o nosso amor foi a bênção da minha vida. Nada é capaz de abalar esse saber – e isso mesmo agora, no momento em que encontrei uma pátria e um porto seguro para o meu desespero (...) Escuto às vezes algo sobre você. No entanto, tudo envolto em um tom particularmente estranho e indireto: no tom que sempre está presente na elocução dos nomes famosos. De um modo quase torturante, gostaria tanto de saber como você está, em que está trabalhando e como Freiburg o está recebendo!
Um beijo meu em sua fronte e em seus olhos.
Sua Hannah"
Trecho de carta de 1929
  
(In: Estranho amor. Matéria da revista Veja de 13/12/00. Disponível em: http://veja.abril.com.br/131200/p_230.html)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O feitiço de Áquila (Ladyhawke - 1985) - trecho

"Phillipe: Are you flesh, or are you spirit?
Isabeau: I am sorrow".

Uma história de tanto amor - Clarice Lispector (trecho)

"...dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 142).

Cem anos de perdão - Clarice Lispector (trecho)

"Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens".
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.62).
“Se alguém me perguntasse o que somos, o que o homem é, responder-lhe-ía: é a abertura a todo o possível, é expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar”.

(Georges Bataille. O Erotismo. Citado por Catarina Moura in: "A vertigem - da ausência como lugar do corpo. Artigo disponível no link: http://www.bocc.ubi.pt/pag/moura-catarina-culturas-vertigem.pdf).

terça-feira, 31 de julho de 2012

Instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir


"Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de outros cinco anos”, disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu".

( Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio - citado por Maria Rita Kehl no programa Fronteiras do Pensamento de 26/10/09. Vídeo disponível no youtube em 4 partes: http://www.youtube.com/watch?v=pPAi4N8koHE).

segunda-feira, 30 de julho de 2012


“... fui internado onti, na cabine centoitres, d’hospício
d’Engenho d’Dentro, só comigo tinha dez. Eu tô doente do
peito, tô doente do coração, a minha cama já virou leito,
disseram que eu perdi a razão...”
Sérgio Sampaio

Antígona

“...o que é a transgressão da lei contra a transgressão que pertence à própria lei?”
Bertold Brecht
Ópera dos Três Vinténs

Amor sem fim

Heidegger e Hannah Arendt falam sobre o que é o amor e a possibilidade da eternidade dessa paixão, a partir da leitura de Agostinho e de Kierkegaard.

Matéria disponível no link:

sexta-feira, 27 de julho de 2012

terça-feira, 5 de junho de 2012

Intervalo doloroso - Fernando Pessoa

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, como um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela.
(Fernando Pessoa. O livro do desassossego (trecho n*80). São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p.109-10).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Crime & Castigo (Dostoiévski) - trechos favoritos

"É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia...Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem, acima de tudo? - O que for capaz de mudar-lhes os hábitos: eis o que mais apavora..." - ( v.I, p. 12).
*
"...entregava-se àquele alheamento profundo, uma espécie de torpor, continuando o caminho sem dar a mínima importância às coisas circunstantes, sem querer reparar no que o cercava. De quando em vez, entretanto, resmungava palavras indistintas, em virtude do hábito de monologar, de que, ainda havia pouco, se confessava atacado. Percebia que, às vezes, as idéias se lhe embaralhavam no cérebro e adquiria consciência de sua extrema fraqueza" - (Raskólnikov,v.I, p.13).
*
"Por que me lastimar?", disseste. Sim, o caso não é para lastimar, é preciso crucificar-me, pregar-me numa cruz e não me lastimar. Crucifique-me, pois, juiz, faça-o e, crucificando-me, tenha dó do crucificado. Então eu mesmo superarei o próprio suplício porque não é de alegria que tenho sede, mas de dor e de lágrimas" - (Marmeládov, v.I, p.37).
"Humanidade crápula, que se adapta a tudo" - (Raskólnikov).
*
"Era assim que se torturava, propondo a si mesmo todas essas (...) antigas questões já familiares a seu espírito e que o fizeram sofrer de tal modo que seu coração estava todo ferido, marcado por elas. Havia muito tempo que nascera essa agonia que o atormentava: crescera no seu coração, acumulara-se, desenvolvia e, nestes últimos tempos, parecia ter se difundido dob a forma de uma espantosa, fantástica e selvagem interrogação que o torturava sem cessar, exigindo-lhe, imperiosamente, uma resposta" - (Raskólnikov, v.I, p.68).
*
"Afastando-se de todos, vivia como uma tartaruga escondida em seu casco. Mesmo a presença da criada, encarregada de fazer a limpeza do quarto, que algumas vezes aparecia, o irritava e o punha furioso. É o que se dá com certos maníacos, absorvidos por uma idéia fixa" - (v.I,44-5). 
*
"Os sonhos de um homem doente tomam, sempre, um relevo extraordinário a ponto de a própria realidade confundir-se com eles. O quadro que, assim, se desenrola é por vezes monstruoso, mas o fundo, no qual se desenvolve, e todos os meandros da representação são, por sua vez, de tal modo verossímeis, cheios de minúcias tão imprevistas, tão engenhosas e tão adequadas, que o próprio indivíduo que os son...ha seria, certamente, incapaz de inventá-los acordado, fosse ele um artista da estatura de Púchkin ou Turguéniev. Estes sonhos - referimo-nos aos sonhos mórbidos - não são facilmente esquecíveis; produzem uma viva impressão sobre o organismo cansado, presa da excitação nervosa" - (v.I, p. 80).
"Não sabia aonde ir e até não se preocupava com isso. Não pensava senão numa coisa: que era preciso acabar com tudo isso, hoje, de uma vez, agora mesmo, de modo contrário não voltaria para casa, de modo algum, porque não queria continuar a viver assim. Mas como fazê-lo? (....). Esforçava-se para não pensar no assunto. Quanto mais recalcava esse pensamento, mais ele o torturava. não tinha mais do que um sentimento, não pensava senão em uma coisa: que era preciso que tudo mudasse, de uma maneira ou de outra, "custe o que custar", repetia com uma certeza desesperada e uma firmeza indomável" - (v.I, p.212-3).
*
"-Como estás diferente, Sônia! Enlaças-me e vens abraçar-me depois que te confessei aquilo. Não tens consciência do que fazes.
(...) Um sentimento havia muito esquecido veio quebrantar a alma do moço. Ele não resistiu; duas lágrimas saltaram-lhe dos olhos, ficando-lhe suspensas nas pestanas.
-Então, não me abandonarás, Sônia? - disse com uma espécie de esperança.
-Não, nunca, em parte alguma! - prometeu ela. - Acompanhar-te-ei sempre (....). E por que, por que não te conheci mais cedo? Por que não vieste antes? (...)
- Bem vês que vim.
-Agora! Oh, que fazer agora? Juntos, juntos - repetiu com exaltação, enlaçando-o mais. Acompanhar-te-ei às galés". (diálogo entre Sônia e Raskolnikov,v.II, p.180-1).
"-...Agora choras e me abraças, mas dize... por quê? Porque não tive coragem de carregar meu fardo e vim descarregá-lo sobre outrem, dizendo-lhe: "Sofre também, ficarei aliviado". Entretanto, como podes amar um covarde assim?
-E tu também não sofres? - redarguiu ela.
O mesmo sentimento encheu de novo o coração do moço, enternecendo-o.
-Sônia, tenho mau coração: toma cuidado; isso explica muita coisa...
-Não, não, tu fizeste bem em vir! - exclamou Sônia (....).
Estavam ali, tristes e abatidos como dois náufragos atirados pela tormenta numa praia deserta. Ele olhava para Sônia e sentia o quanto ela o amava. Mas, coisa estranha, aquela imensa ternura de que ele se via objeto causava-lhe uma impressão aflitiva e dolorosa." - ( diálogo entre Sônia e Raskolnikov,v. II, pg.182-191).
*
"...nunca responda pelo que se passa entre marido e mulher ou entre dois amantes. Há sempre ali um cantinho que fica escondido de todos e só é conhecido dos interessados " - (v.II,p. 264).
"Súbito, Sônia estava ao seu lado. Aproximou-se sem ruído, sentou-se perto dele (...). Ela sorria ao prisioneiro com ar amável e feliz, todavia, conforme seu hábito, estendeu-lhe timidamente a mão.
Fazia sempre esse gesto com timidez. às vezes abstinha-se dele ...com receio de ver repelida a mão, que ele parecia sempre aceitar com repugnância. Por vezes parecia mesmo aborrecido de vê-la e não abria a boca durante todo o tempo da visita. Em certos dias, ela tremia diante dele e deixava-o profundamente aflita. Agora, porém, as suas mãos podiam soltar-se (...) De repente, sem que o prisioneiro soubesse por que, uma força invisível lançou-o aos pés da moça. Pôs-se a chorar, abraçando-lhe os joelhos (...). Uma infinita felicidade irradiou-lhe dos olhos. Compreendia que ele a amava, sim, não podia duvidar. Amava-a infinitamente! O esperado minuto chegara afinal. Queriam falar, contudo nenhuma palavra puderam proferir (...). Ambos estavam magros e pálidos, mas, nas pobres faces transtornadas, cintilava a aurora de uma vida nova, de uma ressureição. Era o amor que os ressuscitava. O coração de um continha a fonte de vida inesgotável do outro....."
(Crime & Castigo. São Paulo.Abril Cultural,2010, v.II, p. 353-4).
*
Documentário sobre o livro:

Biografia de Dostoiévski: