Que o humano é efeito da mestiçagem de substâncias tão heterogêneas quanto o são a materialidade do corpo, a imagem do corpo e o verbo enxertado neste corpo, tal é o ensino quotidianamente concedido ao psicanalista.
O que a prática do psicanalista não cessa de lembrar-lhe é que essa mestiçagem, pela qual o real, o simbólico e o imaginário se entrelaçam, institui entre corpo, imaginário e palavra, uma nodulação cujo caráter problemático traduz-se por este sofrimento que se chama sintoma.
Se a ênfase do sofrimento incide sobre o corpo, o sintoma expresso pelo analisando privilegiará o mal-estar que pode um sujeito experimentar na maneira que tem de habitar o próprio corpo. Esse mal-estar é a própria expressão do fato de que, após ter-se tornado falante, o homem se viu despojado daquela naturalidade que tanto o fascina no corpo do animal: será concebível um cavalo, ou um gato, que dê a impressão de estar mal alojado em seu corpo, de sentir-se apertado nele ou, ao contrário, de nele perder-se?
Que poderá a análise transmitir a um sujeito que sofre de não sentir-se "em casa" no seu próprio corpo? De que modo poderá o analisando - o qual, mergulhado na depressão, tem a sensação de receber tamanha pressão da gravidade que não pode erguer um corpo que se tornou excessivamente pesado - reencontrar a leveza saltitante desse corpo?
A experiência nos ensina que o sujeito pode esquecer esta dimensão do corpo que pesa - vale dizer daquele companheiro que é o cadáver potencial - quando o real do corpo redescobre o liame primordial com o poder originário daquele véu humanizante que é a vestimenta, a roupa.
Por efeito da humanização trazida por este véu, o real do corpo subtraído ao reino exclusivo do peso torna-se um real chamado a elevar-se, a erguer-se num movimento que o impele a olhar para o céu. O enigma deste movimento ascensional em que nosso ancestral, o Homo erectus, ergueu-se um dia envolve uma outra força que não a do músculo.
E assim é que esse movimento de reerguimento, que pode transmitir um trabalho analítico, prende-se à capacidade do analisando de poder esquecer que seu corpo não é apenas material: este corpo encerra a possibilidade de ser imaterializado pelo enxerto do véu imaginário e da palavra.
Esse enigmático poder de esquecimento - que o analista articula ao esquecimento primordial do recalque originário - é a primeira pergunta que o analista recebe do artista quando este se faz dançarino: não é o artista aquele que nos instrui sobre a aptidão do corpo para recusar o peso ao dar testemunho de sua parte de imaterialidade?
Se. na primeira face que apresenta, o sintoma humano, ao privilegiar o sofrimento ligado ao corpo, é questionado pelo destino que a dança outorga ao corpo, em sua segunda face, o sintoma humano, estando ligado à perturbação da imagem do homem, recebe, agora do pintor, outra questão fundamental.
O sofrimento ligado à imagem do corpo prende-se ao fato de que esta imagem é estruturada como fundamentalmente dependente do olhar do outro. A expressão desta dependência toma, de modo geral, duas direções antonômicas.
Na primeira destas direções, o sujeito é conduzido à seguinte pergunta: "Serei eu conforme ao que o olho do Outro espera de mim? Tenho eu boa forma, o bom uniforme?".
A experiência nos ensina que, para adquirir tal conformidade, o sujeito está pronto a se renegar. Para isto, uma vez que a função do olhar é a de procurar uma imagem, fundamentalmente silencioso, ele está pronto a desqualificar-se como ser falante e, se este sujeito é uma mulher, a obedecer, como imagem, à seguinte injunção: "Seja bela e cale-se!". O sentido dessa auto-desqualificação é: "Consinto no silêncio já que consinto em não ser mais do que imagem visível, quer dizer, coisa despojada de invisível. Na verdade, sei que o que fala não poderia ser senão invisível".
A segunda direção que pode tomar o sofrimento do sujeito exposto ao olhar prende-se ao que lhe acontecerá quando, deixando-se trnasparente sob o "olho mau" medusante, tem então a experiência de perder aquela coisa viva que há nele e que é a sua parte de invisibilidade. A partir daí, sua imagem, despojada de sua parte de inimaginável, desaparece, pois sua consistência visível vinha-lhe apenas da existência de sua carga de invisível.
Que acontece ao sujeito que é visto de todos os lados por um olhar onividente, onisciente? Ele é medusado, tornado estátua, reduzido à imobilidade. O deslocamento e o movimento só se tornarão de novo possíveis para ele caso reencontre, por um trabalho psicanalítico, aquele ponto para além da imagem que é, como indica o segundo mandamento da lei mosaica, a palavra.
Desse terceiro ponto em que a palavra e a imagem cessam de estar dissociadas, pode aparecer um outro tipo de olhar, completamente diverso daquele do "olho mau": esse novo olhar que o analisando encontra no fim da análise é, contrariamente ao olhar que tudo sabe, um olhar que não sabe tudo e que está, por isto mesmo, disposto a poder não conhecer, mas reconhecer o que há de invisível no sujeito. Poder-se-ia dizer que o advento deste olhar se dá como lhar que ouve: manifesta-se pela primeira vez na cena trágica grega quando Apolo - deus da imagem - consegue "ver" o que ouve: a música de Dionisio.
É neste ponto que o analista que se interroga sobre a estrutura do olhar que ele próprio pousa no analisando encontra a questão do olhar do pintor: não é o pintor aquele que sabe ouvir o invisível e sabe deixá-lo com algumas manchas de cor?
O terceiro sentido em que se experimenta o sintoma é aquele que se induz no sujeito quando a palavra deste, desajeitada, intimidada pelo temor de não articular, de gaguejar, prefere esconder-se no silêncio para não correr o risco de fazer ouvir, para além do que as palavras poderiam fazer escutar, a dimensão do inaudito própria do inconsciente.
Como pode um sujeito, na verdade, assumir o reconhecimento de que é instituído não pelo domínio do que pensa, mas pelo que diz, já que, do momento em que ele se permite falar verdadeiramente, descobre que não é senhor da palavra, pois é ela que é a sua senhora: é a palavra que dispõe do poder criador de transgredir o código e de deixar aparecerem significações inéditas.
É à medida que é levado a reconhecer que o fato de não assumir o poder metafórico da palavra é indutor do sintoma humano, que o analisando é levado a recolher do poeta, do músico, a seguinte pergunta: de que é feita a sua relação com a linguagem se, por sua prática, ele é conduzido a subverter o que a prosa faz ouvir de sensato, fazendo ouvir, pelo poema e pela música, o que o poema ou a música transmite de propriamente inaudito?
(In: Nota azul - Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, p.19-26).