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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

É isto um homem? - Primo Levi (trechos)

"Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar, 
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou não, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los" - (p. 9-10).
*
"desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado" - (p.16).
*
"Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer "infinito". Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida quanto ao amanhã,no segundo. Assim, opõe-se a ela a certeza da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam a cada isntante a nossa atenção da  desgraça que pesa sobre nós, tornando a sua percepção fragmentária, e portanto, suportável.
Foram justamente as privações, as pancadas, o frio, a sede que, durante a viagem e depois dela, nos impediram de mergulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi isso. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: dela poucos homens são capazes, e nós éramos apenas exemplares comuns da espécie humana" - (p.17-8).
*
"Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível , e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota" - (p.25-6).
*
"A explicação é repugnante, porém simples: neste lugar tudo é proibido, não por motivos inexplicáveis e sim porque o Campo foi criado para isso" - (p.36-7).
*
"...porque o Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais..." - (p. 55).
*
"A convicção de que a vida tem um objetivo está enraizada em cada fibra do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza. Para nós, a questão é mais simples.
Hoje, e aqui, o nosso objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em outra coisa" - (p. 102).
 
"Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: "a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado". No Campo, onde o homem está sozinho e onde a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos. Com os mais aptos, os mais fortes e astuciosos, até os chefes mantêm contatos, às vezes quase amistosos, porque esperam poder tirar deles, talvez, mais tarde, alguma vantagem. Quanto aos "muçulmanos", porém, aos homens próximos do fim, nem adianta dirigir-lhes a palavra; já se sabe que eles só se queixariam, ou contariam como comiam bem em sua casa (...).
Nas estatísticas de entradas e saídas do Campo, poderia ler-se o resultado desse implacável processo de seleção natural. Em Auschwitz, no ano de 1944, dos velhos prisioneiros judeus (dos outros não vamos falar, suas condições eram diferentes), dos kleine Nummer, "números pequenos" inferiores ao número 150 mil, sobravam apenas algumas centenas, e nenhum deles era um Haftling normal, que vegetasse nos Kommandos normais e que se contentasse com a ração normal. Restavam apenas os médicos, os alfaiates, os sapateiros, os músicos, os cozinheiros, os homossexuais jovens e atraentes, os amigos ou conterrãneos de alguma pessoa influente do Campo; e, além deles, alguns indivíduos especialmente cruéis, fortes e desumanos, que alcançaram cargo de Kapo, de Chefe de Bloco ou outro, por designação dos SS que, nessa escolha, demonstravam possuir um conhecimento satânico dos homens. Sobravam ainda aqueles que, embora sem exercer funções especiais, com a sua astúcia e energia conseguiam sempre "ajeitar as coisas", merecendo não apenas as vantagens materiais e a reputação, mas também a tolerância e consideração dos poderosos do Campo. Quem não souber tornar-se Organisator, Kombinator, Prominent (oh, a eloquência cruel desses vocábulos!) acaba, em breve, "muçulmano" . Na vida normal, existe um terceiro caminho, aliás, o mais comum. No Campo, não existe.
Sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebia, comer apenas a ração, obedecer à diosciplina do trabalho do Campo. Desse modo, a experiência demonstra que não se aguenta quase nunca mais do que três meses. A história - ou melhor, a não história - de todos os "muçulmanos" que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se;  ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoranara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os "muçulmanos", os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar "morte" a sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la.
Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria esse imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento" - (p. 129-132).
*
"Porque nos Campos perdem-se o hábito da esperança e até a confiança no próprio raciocínio. No Campo, pensar não serve para nada, porque os fatos acontecem, em geral, de maneira incompreensível; pensar é, também, um mal porque conserva viva uma sensibilidade que é fonte de dor, enquanto uma clemente lei natural embota essa sensibilidade quando o sofrimento passa de certo limite.
A gente cansa da alegria, do medo, até da dor; cansa também da espera" - (p. 251-2).
(In. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988).

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A carta de Joyce & a resposta de Nora


29 de agosto de 1904.
"Minha querida Nora Acabei de fazer a refeição da noite mas não tinha o menor apetite. Quando estava no meio descobri que comia com os dedos. Me senti mal ontem à noite. Estou muito angustiado. Perdoa esta pena horrível e este papel medonho.
Devo ter-lhe atormentado esta noite com o que disse mas certamente é bom que você conheça a minha opinião sobre a maioria das coisas. Minha consciência rejeita toda a ordem social atual e o cristianismo - lar, as virtudes reconhecidas, classes sociais e doutrinas religiosas. Como posso gostar da ideia de lar? Meu lar foi simplesmente um de classe média arruinado por hábitos pródigos os quais herdei. Minha mãe foi morta lentamente, penso, pelo péssimo tratamento do meu pai, por anos de dificuldades e pela cínica franqueza da minha conduta. Quando olhei para o seu rosto no caixão - um rosto cinza e consumido pelo câncer - percebi que olhava para o rosto de uma vítima e amaldiçoei o sistema que fizera dela uma vítima. Nós éramos uma família de dezessete. Meus irmãos e minhas irmãs não são nada para mim. Só um irmão é capaz de me entender.
Abandonei a igreja católica há seis anos, odiando-a profundamente. Descobri que me era impossível permanecer em seu seio devido aos impulsos da minha natureza. Quando era estudante travei uma guerra secreta contra ela e recusei aceitar as posições que me oferecia. Ao fazer isso eu me tornei um mendigo, mas mantive o meu orgulho. Agora travo uma guerra aberta contra ela por meio do que escrevo, digo e faço. Não posso fazer parte da ordem social senão como um vagabundo. Comecei a estudar medicina três vezes, direito uma vez. Há uma semana planejava ir embora como ator ambulante. Não consegui por nenhuma energia nesse projeto porque você não parava de me puxar pelo braço. As dificuldades atuais da minha vida são inacreditáveis mas eu as desprezo.
Assim que você se recolheu esta noite eu caminhei até a rua Grafton onde fiquei fumando por muito tempo, recostado a um poste. A rua estava cheia de animação na qual verti um jorro da minha juventude. Enquanto permanecia ali recordei certas frases que escrevi há alguns anos quando morava em Paris - essas frases são - "Passam em dois ou três em meio à animação do boulevard, caminhando como pessoas desocupadas num lugar iluminado para elas. Estão numa confeitaria, tagarelando, triturando os edificiozinhos de massa folhada ou sentadas silenciosamente às mesas perto da porta do café, ou descendo de carruagens com a viva agitação de trajes suaves como a voz do adúltero. Passam num ar perfumado. Sob os perfumes seus corpos têm um cheiro quente e úmido".
Enquanto repetia isso para mim mesmo me dei conta de que essa vida ainda me esperava caso eu decidisse entrar nela. Talvez ela não me embriagasse como fez um dia mas ainda estava lá e agora que sou mais sábio e mais disciplinado ela era segura. Não faria perguntas, não esperaria nada de mim exceto alguns momentos da minha vida, deixando o resto livre, e me prometeria em troca o prazer. Pensei nisso tudo e o rejeitei sem arrependimento. Era inútil para mim; não poderia dar-lhe o que eu queria.
Acho que você não entendeu bem algumas passagens de uma carta que te escrevi e notei certa reserva no teu comportamento como se a lembrança daquela noite te perturbasse. No entanto, eu a considero um tipo de sacramento e sua lembrança me enche de assombrosa alegria. Você talvez não compreenda imediatamente por que é que eu te venero tanto por isso, pois não conhece bem as minhas opiniões. Mas ao mesmo tempo foi um sacramento que me deixou uma sensação final de tristeza porque vi em você uma extraordinária ternura melancólica que havia escolhido esse sacramento como um compromisso, e aviltamento porque compreendi que a seus olhos eu era inferior a uma convenção da nossa sociedade atual.
Falei sarcasticamente esta noite mas falava do mundo e não de você. Sou inimigo da baixeza e da escravização de pessoas mas não de você. Você não consegue ver a simplicidade que está por trás de todos os meus disfarces? Todos nós usamos máscaras. Certas pessoas que sabem que estamos unidos frequentemente me insultam falando de você. Eu os escuto calmamente, desdenhando lhes responder mas a menor palavra deles faz meu coração soçobrar como um pássaro na tempestade.
Não me é agradável ter que ir agora para a cama com a lembrança da última expressão do teu olhar - um olhar de indiferença cansada - a lembrança da tortura na sua voz na outra noite. Penso que nunca um ser humano esteve tão próximo da minha alma como você, e contudo você pode tratar minhas palavras com uma rudeza penosa ("Agora sei o que é falação", você diz). Quando eu era mais novo tive um amigo com quem ficava à vontade - às vezes mais, às vezes menos do que fico com você. Ele era irlandês, quer dizer, ele me traiu.
Não disse nem a metade do que queria dizer mas é muito trabalhoso escrever com esta maldita pena. Não sei o que você vai achar desta carta. Por favor me escreva, está bem? Minha querida Nora, eu te respeito muito, creia-me, mas quero mais do que as tuas carícias. Você me deixou com uma dúvida angustiante".
JAJ - (p. 37-9).


12 de setembro de 1904
"Espero que não tenha ficado molhado se você estava hoje na cidade ficarei aguardando para te ver às 8:15 a manhã à noite esperando que vá ser ótimo eu me sinto muito melhor desde a noite passada mas sente (sic) um pouco solitária hoje à noite pois está tão úmido eu fiquei lendo as tuas cartas o dia inteiro pois não tinha mais o que fazer eu li aquela carta longa várias vezes mas não pude entender vou te levar amnhã à noite - e talvez você poderia me fazer entender
nada mais no momento da tua garota carinhosa
Nora
desculpe escrever com pressa
Suponho que soltará fogos quando receber isso" -  (p. 137).
(*os erros de grafia foram preservados tais como nas cartas)
(In. Cartas a Nora. James Joyce. São Paulo: Iluminuras, 2013).

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Liberté et Patrie - Jean Luc Godard (trechos)


"Se aprende a palavra pensar, e sabe-se como usá-la, mas, dependendo das circunstâncias, não se pode descrevê-la".
*
"E tem de errar muitas vezes, para não voltar a errar...".
*
" - Pai, qual é o melhor modo de saber se alguém é digno de confiança?
- Pergunte: "O que você leu"? Se responder: " Homero, Shakespeare, Balzac", então não é digno de confiança. Mas se responder: "Depende do que você quer dizer com ler", então há esperança".

Link para o curta de Godard na íntegra e legendado no youtube:


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Provocações com Daniela Arbex, autora do livro "Holocausto Brasileiro".

O programa "Provocações", com Antônio Abujamra, transmitiu  pela Tv Cultura na noite de 17/09/2013 a entrevista com Daniela Arbex, autora do livro "Holocausto Brasileiro".
O programa está disponível na íntegra no youtube, dividido em três partes:

Parte I:

Parte II:


Parte III:

*
"Sorôco, sua mãe, sua filha"

É  de Guimarães Rosa a expressão "trem de doido" incluída no conto "Sorôco, sua mãe, sua filha", do livro Primeiras Estórias. Ali o autor resume a situação dos trens que chegavam a Barbacena apinhados de gente "em busca de tratamento psiquiátrico". Ele conta a angústia do personagem Sorôco na despedida das únicas pessoas que tinha no mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva. O importante escritor brasileiro, aliás, morou em Barbacena, em 1933, quando foi oficial médico do 9º Batalhão de Infantaria. O simbolismo da loucura em seus contos são indício de que Guimarães Rosa conhecia a realidade da Colônia. O psiquiatra Francisco Paes Barreto entra no mundo ficcional de Guimarães Rosa e consola Sorôco em carta endereçada ao personagem. "Meu querido Sorôco, esteja onde estiver, quero que ouça o que tenho a lhe dizer. Visitei hoje o lugar onde morreu sua mãe, onde morreu sua filha, onde morreram as mães, os pais, os filhos e os irmãos de um incontável número de pessoas. Sabe o que encontrei lá? Um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Um hospital regional de clínica médica e cirúrgica. Um centro social urbano. Uma escola. (...)Do que havia do antigo hospital resta apenas um edifício imponente, que é a principal atração turística da cidade. Chama-se Museu da Loucura. Está aí exatamente para não deixar esquecer, para registrar uma época. É um templo dedicado à loucura. Não à loucura de pessoas como sua mãe, sua filha, mas a nossa loucura, Sorôco, à loucura dos chamados normais."
Fonte: http://www.tribunademinas.com.br/cidade/a-historia-por-tras-da-historia-1.992847

*

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Masculin, Feminin - Jean-Luc Godard (trechos)



" - Por que você quer sair comigo esta noite?
- Porque você é linda, e todos precisamos de ternura.
- Não há mais nada em mim que o atraia?
- Sim. Tudo".
*
Não se pode viver sem ternura. Seria mortal".
*
"É difícil dizer o que se quer se não se está acostumado".
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"Se matar um homem, você é um assassino.
Se matar milhões, é um conquistador.
Se matar todos os homens, é Deus".

 


Link do youtube com o filme legendado:

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O sonho de um homem ridículo - Dostoiévski

"Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim - aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto - não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender.
Antes, porém, eu me sentia muito consternado por parecer ridículo. Eu não parecia, eu era. Sempre fui ridículo, e sei disso, talvez, desde que nasci. Talvez desde os sete anos já soubesse que sou ridículo. Depois fui para a escola, depois para a universidade, e ora - quanto mais estudava, mais aprendia que sou ridículo. De modo que todos os meus estudos universitários como que só existiram, afinal, para me provar e me explicar, à medida que neles me aprofundava, que sou ridículo. A cada ano aumentava e se fortalecia em mim essa mesma consciência do meu aspecto ridículo em todos os sentidos. Todos riam de mim, o tempo todo. Mas ninguém sabia nem suspeitava que, se havia na terra um homem mais sabedor do fato de que sou ridículo, esse homem era eu, e era justo o que mais me ofendia, que eles não soubessem disso, mas aqui o culpado era eu mesmo: sempre fui tão orgulhoso que por nada no mundo jamais iria querer confessar o fato a ninguém. Esse orgulho cresceu em mim ao longo dos anos, e se acontecesse de me deixar confessar, diante de quem quer que fosse, que sou ridículo, creio que imediatamente, na mesma noite, estouraria os miolos com h, como eu sofria na adolescência com medo de não aguentar e de repente achar de algum jeito me confessando aos amigos. Mas desde que me tornei moço, apesar de reconhecer mais e mais a cada ano a minha horrível qualidade, por um motivo qualquer fiquei um pouco mais tranquilo. Por um motivo qualquer, justamente, porque até hoje não sei bem por que motivo. Talvez porque na minha alma viesse crescendo uma melancolia terrível por causa de uma circunstância que já estava infinitamente acima de todo o meu ser: mais precisamente - ocorrera-me a convicção de que no mundo, em qualquer canto, tudo tanto faz. Fazia muito tempo que eu vinha pressentindo isso, mas a plena convicção surgiu no último ano, assim, de repente. Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber e sentir com todo o meu ser que diante de mim não havia nada. No começo me parecia sempre que, em compensação, tinha havido muita coisa antes, mas depois intuí que antes também não tinha havido nada, apenas parecia haver, não sei por quê. Pouco a pouco me convenci de que também não  vai haver nada jamais. Então de repente parei de me zangar com as pessoas e passei a quase nem nota-las. De fato, isso se manifestava até nas mínimas ninharias: estou, por exemplo, andando na rua e vou dando encontrões nas pessoas. E não era por andar mergulhado em pensamentos: sobre aquilo que eu tinha para pensar, já então cessara completamente de pensar: tudo me era indiferente. E se ao menos eu tivesse resolvido as questões; ah, não resolvi nenhuma, e quantas havia? Mas para mim tudo ficou indiferente, e as questões todas se afastaram.
 Então, depois disso, eu conheci a verdade. Conheci a verdade em novembro passado, mais precisamente em três de novembro, e desde então me lembro de cada instante da minha vida. Isso aconteceu numa noite tenebrosa, na mais tenebrosa noite que pode haver. Eu voltava para casa então às onze horas da noite, e pensei justamente, eu me lembro, que não poderia haver hora mais tenebrosa...." - (p.91-3).
*
"A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade - é superior à felicidade" - é contra isso que é preciso lutar! E é o que vou fazer. basta que todos queiram, e tudo se acerta agora mesmo" - (p.123).
 
(In. Duas narrativas fantásticas. A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Editora 34, 2011).


O olho e o espírito - Merleau Ponty

 
"É preciso que o pensamento de ciência - pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral- torne a se colocar num "há" prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os "outros", que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me freqüentam, que freqüento, com os quais freqüento um único Ser atual, presente, como animal nenhum freqüentou os de sua espécie, seu território ou seu meio" - (p.14-5).
*
"Mas a humanidade não é produzida como um efeito por nossas articulações, pela implantação de nossos olhos (e muito menos pela existência dos espelhos que, não obstante, são os únicos a tornar visível para nós nosso corpo inteiro). Essas contingências e outras semelhantes, sem as quais não haveria homem, não fazem, por simples soma, que haja um só homem.
A animação do corpo não é a junção de suas partes umas às outras nem, aliás, a descida do autômato de um espírito vindo de alhures, o que suporia ainda que o próprio corpo é sem interior e sem "si". Um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer..." - (p.17-8).
*
"Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo"- (p.18).
*
"Não se pode fazer um inventário limitativo do visível como tampouco dos usos possíveis de uma língua ou somente de seu vocabulário e de suas frases. Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi ...sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade" (p.19-20).
*
"...disse André Marchand na esteira de Klee: "Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam [...] Eu estava ali, escutando [...] Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e não querer traspassá-lo [...] Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir". O que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado. Diz-se que um homem nasceu no instante em que aquilo que no âmago do corpo materno era apenas um visível virtual se faz simultaneamente visível para nós e para
si. A visão do pintor é um nascimento continuado"- (p.22).


 (In. O olho e o espírito. São Paulo: Cosacnaify, 2004).



terça-feira, 3 de setembro de 2013

O inconsciente estético - Jacques Ranciere

Não se tratará, aqui, de psicanalisar Freud. As figuras literárias e artísticas por ele escolhidas não me interessam porque remeteriam ao romance analítico do Fundador.
Interessa-me saber a que servem de prova e o que lhes permite servir de... prova. Ora, em sua ampla generalidade, essas figuras servem para provar isto: existe sentido no que parece não ter, algo de enigmático no que parece evidente, uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe anódino. Tais figuras não são o material com que a interpretação analítica prova sua capacidade de interpretar as formações da cultura. Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante. Em suma, se o médico Freud interpreta fatos "anódinos", desprezados por seus colegas positivistas, e pode fazer com que esses "exemplos" sirvam à sua demonstração, é porque eles são em si mesmos testemunhos de um determinado inconsciente" - (p.10-1).
*
"Tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. A grande regra freudiana de que não existem "detalhes" desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética. Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios.
Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo. (...) o romancista de Os miseráveis nos mergulha num esgoto que diz tudo, como um filósofo cínico, e reúne em pé de igualdade tudo aquilo que a civilização utiliza e rejeita, suas máscaras e insígnias, bem como seus utensílios cotidianos. O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos. Ele afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa ou o esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro, como farão o sonho ou o ato falho - mas também a mercadoria marxiana -, desde que sejam primeiro transformados em elementos de uma mitologia ou de uma fantasmagoria" - (p.36-8).
*
"O inconsciente estético, consubstancial ao regime estético da arte, se manifesta na polaridade dessa dupla cena da palavra muda: de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira por um trabal...ho de decifração e de reescrita; do outro, a palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo, mesmo que essa voz anônima e esse corpo fantasmagórico arrastem o sujeito humano para o caminho da grande renúncia, para o nada da vontade cuja sombra schopenhaueriana pesa com toda força sobre essa literatura do Inconsciente" - (p.41).
 
*
"a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho - bobo ou sujo por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da "fantasia", que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica" - (p.47-8).
 
(O inconsciente estético. Jacques Ranciere. São Paulo: Editora 34, 2009).



terça-feira, 27 de agosto de 2013

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

 
"Em meus anos mais vulneráveis da juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:
- Sempre que tiver vontade de criticar alguém - ele disse -, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.
Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de forma contida, e entendi que ele queria dizer muito mais. Como consequência, adquiri o hábito de me abster de todos os julgamentos, um costume que me garantiu o acesso a diversas naturezas curiosas e também me fez vítima de alguns maçantes inveterados. A mente anormal detecta e se apega muito rapidamente a essa qualidade quando ela se manifesta em alguém normal, e por isso me ocorreu de, na faculdade, me acusarem injustamente de ser um homem político, só porque eu guardava as angústias secretas de homens extravagantes e desconhecidos (...). Abster-se de julgamentos é questão de esperança infinita" - (p.65-6).
*
"Se a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos, então havia algo de grandioso naquele homem, certa sensibilidade exaltada às promessas da vida, como se ele guardasse alguma semelhança com aquelas máquinas intrincadas que registram terremotos a quilômetros de distância. Essa receptividade nada tinha a ver com a frouxa vulnerabilidade que muitos qualificam de "temperamento criativo" - era um talento extraordinário para a esperança, um prontidão romântica tal como nunca encontrei em ninguém e dificilmente tornarei a encontrar. Não - Gatsby saiu-se bem no final; é aquilo que estava à espreita em Gatsby, a espécie de poeira imunda que flutuava na superfície de seus sonhos, que matou temporariamente meu interesse pelas tristezas inúteis e pelas alegrias fugazes dos homens" - (p.66).
As quatro versões de Gatsby no cinema.
"Ele sorriu de forma compreensiva - muito mais que compreensiva. Era um daqueles raros sorrisos com o ar de eterno consolo, do tipo que você só encontra umas quatro ou cinco vezes na vida. Parecia encarar a eternidade do mundo inteiro por um instante, e então se concentrava em você com uma irresistível tendência a seu favor. Parecia compreendê-lo até o ponto em que você desejava ser compreendido, confiar o tanto que você gostaria de confiar em si mesmo, e assegurá-lo de haver transmitido exatamente a impressão que, em seu melhor momento, você desejaria passar" - (p. 111).
*
"Nem as maiores lufadas de fogo e vento seriam capazes de competir com aquilo que um homem pode guardar em seu coração etéreo" - (p.158).
 
(In. O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011).
 


Diário de luto - Roland Barthes (trechos)

"Irritação. Não, o luto (a depressão) é bem diferente de uma doença. De que desejam curar-me? Para encontrar que estado, que vida? Se há trabalho, aquele que nascer dele não será um ser comum, mas um ser moral, um sujeito do valor - e não da integração" (p.8).
*
"Solidão = não ter ninguém em casa a quem dizer: voltarei a tantas horas, ou a quem poder telefonar (dizer): pronto, cheguei" - (p.42).
*
"Meu espanto - e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do fato de que, na verdade, não é uma falta (não posso descrever isso como uma falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no coração do amor" - (p.63).
*
"Frio, noite, inverno. Estou aquecido, porém sozinho. E compreendo que será preciso habituar-me a estar naturalmente nesta solidão, nela agir, trabalhar, acompanhado, colado à "presença da ausência" - (p. 67).
"Não posso suportar que reduzam - que generalizem - meu pesar (...) é como se o roubassem de mim" - (p.69).
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"O Irremediável é, ao mesmo tempo, o que me dilacera e o que me contém..." - (p.87).
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"Recomeçar sem descanso. Sísifo" - (p.136).
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Em mim, lutam a morte e a vida (descontinuidade e como que ambiguidade do luto) (quem vencerá?) - mas, por enquanto, uma vida boba (pequenas ocupações, pequenos interesses, pequenos encontros).
O problema dialético é que a luta desemboque numa vida inteligente, e não uma vida-écran" - (p. 147).
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"Luto.
Impossibilidade - indignidade - de confiar a uma droga - sob pretexto de depressão - o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma "possessão" - uma alienação (algo que nos torna estrangeiros) - enquanto ele é um bem essencial, íntimo..." - (p. 159).
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"Habito minha tristeza e isso me faz feliz.
Tudo o que me impede de habitar minha tristeza é insuportável para mim" - (p.169).
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"Continuo (dolorosamente) espantado de poder - finalmente - viver com minha tristeza, o que quer dizer, literalmente, que ela é suportável. Mas - sem dúvida - é porque posso, bem ou mal (isto é, com o sentimento de não o conseguir) dizê-la, fraseá-la. Minha cultura, meu gosto pela escrita me dá esse poder apotropaico, ou de integração: integro, pela linguagem.
Minha tristeza é inexprimível mas, apesar de tudo, dizível. O próprio fato de que a língua me fornece a palavra "intolerável" realiza, imediatamente, certa tolerância" - (p. 171).
 
(In. Diário de Luto. Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2011).
 


Fahrenheit 451 - Ray Bradbury (trechos favoritos)


"O rosto de Clarisse, agora voltado para ele, era um frágil cristal leitoso dotado de uma luz suave e constante. Não era a luz histérica da eletricidade, mas... o quê? A luz estranhamente aconchegante e rara e levemente agradável de uma vela. Certa vez, quando criança, durante uma queda de energia, sua mãe havia encontrado e acendido uma última vela e houve um breve instante de redescoberta, de uma iluminação tal que o espaço perdera suas vastas dimensões e se fechara aconchegante em torno deles, mãe e filho, a sós, transformados, torcendo para que a energia não voltasse tão cedo..." - (p.27).
"Lançou de novo o olhar à parede. Como o rosto dela se parecia também com um espelho! Impossível. Pois quantas pessoas seriam capazes de refletir a luz de uma outra? As pessoas quase sempre eram - procurou uma comparação, encontrou-a em seu ofício - archotes, que ardiam até se extinguir. Quantas pessoas existiam cujos rostos eram capazes de captar e devolver a expressão da outra, seus pensamentos e receios mais íntimos?...Quantos minutos haviam caminhado juntos? Três minutos? Cinco?"- (p.31).
"Escuridão. Não estava feliz. Não estava feliz. Disse as palavras a si mesmo. Admitiu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava sua felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado e não havia como ir bater à sua porta para pedi-la de volta" - (p. 32).
"Bem, afinal de contas, estamos na era do lenço descartável. Assoe seu nariz numa pessoa, encha-a, esvazie-a, procure outra, assoe, encha, esvazie. Cada um está usando as fraldas da camisa do outro. Como torcer para o time da casa quando não se tem nem um programa nem sabemos os nomes? Por falar nisso, que camisa estão usando quando entram em campo?" - (p.38).
"Você não é como os outros. Eu vi alguns; eu sei. Quando eu falo, você olha para mim. Ontem à noite, quando eu disse uma coisa sobre a lua, você olhou para a lua. Os outros nunca fariam isso. Os outros continuariam andando e me deixariam falando sozinha. Ou me ameaçariam. Ninguém tem mais tempo para ninguém. Você é um dos poucos que me toleram. É por isso que eu acho tão estranho você ser bombeiro. É que, de algum modo, não combina com você" - (p. 45).
"Quem dera pudessem ter levado sua mente para uma lavagem a seco, esvaziado seus bolsos, e a tivessem vaporizado, limpado e remontado e a devolvessem pela manhã. Quem dera..." - (p.37).
"-Por que você não está na escola? Todo dia eu a vejo vagando por aí.
- Ah, eles não sentem a minha falta - disse ela. - Dizem que sou antissocial. Não me misturo. É tão estranho. Na verdade, eu sou muito social. Tudo depende do que você entende por social, não é? Social para mim significa conversar com você sobre coisas como esta. - Ela chacoalhou algumas castanhas que haviam caído da árvore do jardim da frente. - Ou falar sobre como o mundo é estranho. É agradável estar com as pessoas. Mas não vejo o que há de social em juntar um grupo de pessoas e depois não deixá-las falar, você não acha? (...) nunca fazemos perguntas; pelo menos a maioria não faz; eles passam as respostas para você, pim, pim, pim, e nós, sentados ali, assistindo a mais quatro horas de filmes educativos. Isso para mim não é nada social. Parece um monte de funis e muita água jorrando da torneira, entrando por um lado e saindo pelo outro, e depois eles vêm nos dizer que é vinho, quando não é" - (p.52).
"Como uma pessoa fica tão vazia?, perguntou a si mesmo. Quem esvazia a gente?" - (p.68).
"- Me deixe em paz - disse Mildred. - Eu não fiz nada.
- Deixar você em paz! Tudo bem, mas como eu posso ficar em paz? Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?" - (p.76).
"Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra (...). Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com os "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com o reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o temerim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido" - (p.86-7).
"Ninguém mais presta atenção. Não posso falar com as paredes, porque elas estão gritando para mim. Não posso falar com a minha mulher; ela escuta as paredes. Eu só quero alguém para ouvir o que tenho a dizer. E talvez, se eu falar por tempo suficiente, minhas palavras façam sentido" - (p.109).
"Eu me agarrei firme ao mundo algum dia. Já pus um dedo nele; é um começo" - (p.197).
 
(In. Fahrenheit 451. Ray Bradbury. São Paulo: Globo, 2012).
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Sobre o livro:
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O filme de Truffaut no youtube:
 


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Carta a D. - André Gorz (trechos).

"...carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher" - (p.5).
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"Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de "experiência fundadora": a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós" - (p.11).
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"Você estava condenada a ser forte porque todo o seu universo era precário. Eu sempre senti, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade subjacente. Eu gostava da sua fragilidade superada, admirava sua força frágil. Nós éramos, eu e voc...ê, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado" - (p.12).
"...o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais (...). Era isso: vo...cê havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia (...). Você era quem punha entre parênteses esse mundo ameaçador, no qual eu era um refugiado de existência ilegítima (...). Até onde consigo lembrar, eu sempre procurei não existir. Você deve ter trabalhado anos a fio até me fazer assumir minha existência. E esse trabalho, estou certo disso, nunca se completou" - (p.16).
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"Tive muitas dificuldades com o amor (ao qual Sartre dedicou umas trinta páginas de O Ser e O Nada), pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras.
Na época..., não procurei a resposta para tal questão na experiência que estava vivendo. Não descobri, como faço agora, qual era o alicerce do nosso amor. Nem que o fato de estar dolorosa e deliciosamente obcecado pela coincidência sempre prometida e evanescente do gosto que temos pelos nossos corpos - e quando digo corpo, não esqueço que "a alma é o corpo" tanto para Merleau-Ponty como para Sartre -, nos remete a experiências fundadoras cujas raízes estão mergulhadas na infância: na descoberta primeira, originária, das emoções que uma voz, um cheiro, uma cor de pele, um jeito de se mover e de ser, que serão para sempre a norma ideal, têm ressonância em mim. É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou com ela. Estamos aquém e além da filosofia" - (p.20).

(In. Carta a D. São Paulo: CosacNaify, 2012).
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André Gorz, jornalista austríaco radicado na França, reconhecido por seus trabalhos nas áreas de filosofia e sociologia, surpreendeu ao mundo ao escrever Carta a D., uma pungente declaração de amor a Dorine, sua companheira por quase sessenta anos. Dirigindo-se à mulher doente, Gorz relata a história de paixão, cumplicidade e militância (com propostas inovadoras no setor trabalhista e uma atuação pioneira em ecologia política) que os uniu para sempre desde que se conheceram em Lausanne, na Suíça, em outubro de 1947. Com o agravamento irremediável da doença de Dorine, os dois se suicidaram e seus corpos foram encontrados lado a lado em 24 de setembro de 2007.
 
 
 


sábado, 10 de agosto de 2013

Alô, Lacan? É claro que não - Jean Allouch (trechos).

 
*A Psicanálise, seu público e o estado.
Graças a uma lei que favorecia, dizia-se, a assimilação dos judeus, seu pai tinha optado por um sobrenome claramente francês. Ele, até aí, não se interessara por esta questão.
Mas eis que ela agora es...tá na ordem do dia em sua análise. Torna-se claro que se trata, para ele, de acrescentar a "seu" nome-próprio o nome de antes da decisão paterna. Ele se chamaria, doravante, Senhor X hífen Y.
Tratar-se-ia de uma veleidade? De fato, Lacan não lhe deixa tempo para hesitação. Presidindo então uma reunião da École freudienne durante a qual seu analisante deveria tomar a palavra, declara:
- Bom, passo agora a palavra a ... (seu nome) X-Y" - ( p.33).
*
*Casamento.
Ele levou muito tempo para se decidir.
Durante muitos meses, contara a Lacan sobre seu amor por XXX, falou dela, de sua relação com ela, de sua vida enfim, tinha analisado tudo, o porquê de sua escolha dela, a que seu nome remetia, etc.
Ele chega a sessão e diz:
- Eu ne caso na próxima semana.
Lacan:
- Com quem?" - ( p.37).
*
* Conjuração?
No tom irritado que é habitualmente o deste tipo de afirmação, ele diz:
- Puxa, sou uma besta.
Lacan:
- Não é porque você diz que não é verdade" - (p. 39).
*
*Deitar
- Sonhei que você ´propôs que eu deitasse e eu lhe dizia:
- Por que isso agora?
Lacan:
- Deite, meu caro" - (p. 42).
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* Dialética de uma intervenção
Jesuíta em análise com Lacan, ele faz parte da primeiríssima geração de alunos. Um dia, na sessão, fala de sua intenção de deixar a Companhia e se casar.
Lacan fez tudo para dissuadi-lo disso, chegando até a dizer-lhe que o supereu, no casamento, seria pior que na igreja.
Resultado? O analisante realiza sua decisão, mas de certa maneira: ficou convencido de que a tomara sozinho" - (p. 45).
*
*Go between?
Médico hindu, ele faz uma pequena análise com Lacan. No fim deste percurso, ousa perguntar:
- Você diz que uma carta sempre chega a seu destino. Ora, Althusser diz o contrário: acontece de uma carta não chegar a seu destinatário. O que você pensa de sua tese, que ele diz materialista?
Lacan, a se crer neste analisante, refletiu bons dez minutos antes de responder:
- Althusser não é praticante" - (p.60).

*
*Primeira sessão com Lacan.
Ela pede a Lacan retomar sua análise com ele, seu analista acaba de morrer, será enterrado naquele dia.
- Quando?
- Agora.
- Você não pretende ir ao enterro?...
- (ela, um pouco hesitante) - sim.
- Você dispõe de um meio de locomoção?
Uma velha 4L a espera, de fato, nas proximidades da Rue de Lille, 5, então, ela responde afirmativamente.
Depois, dirigindo-se a Glória:
- Glória, meu casaco!
Abandonando os clientes que se amontoavam na sala de espera e na biblioteca, eis Lacan em sua 4L, acompanhando-a ao enterro de seu ex-psicanalista. Foi assim a primeira sessão com Lacan" - (p.80).

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*Vidência
Na véspera de um de seus exames de medicina, ele diz a Lacan na sessão:
- Puxa, que noite!
Evocava assim, não sem ênfase, sua noite de trabalho? Ou de insônia, motivada por sua preocupação com o exame?
De toda forma, Lacan logo replicou:
- Leucemia?
Ele decide preparar a questão "leucemia";
No dia seguinte, na sala de exame, inquietação...
Pois bem, não! Não é leucemia que cai.
Mas logo se percebe que há erro: vai ser examinado numa outra sala; e lá, fato extraordinário, lhe é pedido exatamente "tratar" da leucemia!
O que ele fez. Brilhantemente.
Saída do exame. Ele vai a sua sessão. Com esta incrível questão: como Lacan pôde saber?
Resposta:
- É pura questão de lógica*
* lógica do significante: noite branca = leukos = leucemia?!" - (p.96).
*
*É simples.
A um doente que declara que seus convidados ouvem os maus pensamentos que lhe vêm a respeito deles:
- Você assim mesmo deve perceber um pouco que, se você pensa que os outros pensam que você pensa mal sobre eles, isto talvez seja simplesmente pelo fato de que você pense mal" - (p. 103).
*
*Prescrição no sentido certo.
O doente desenvolveu amplamente como, permanentemente, se sentia seguido.
Estamos agora no fim da apresentação, que Lacan termina dizendo a seu interlocutor, muito gentilmente:
- Bom, vamos agora indicar-lhe alguém que vai segui-lo" - (p. 110).
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*Topologia...ou geometria?
Há muito tempo Lacan já se apoiava na escrita topológica, a qual, sabe-se, é de outra ordem que a geometria.
Na época do borromeano, durante uma apresentação de doentes, tratou-se de círculo, isto - é claro - por... parte do doente. Este se definia, de fato, como centro solitário de um círculo solitário, o que não o impedia de também dizer que ele não tinha limites.
Lacan lhe fez um aparte sobre esta contradição:
- Um círculo tem bordas!
Resposta do doente:
- O senhor pensa em termos geométricos!" (p. 112).

*
(Alô, Lacan? É claro que não. Jean Allouch. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999).
 

 
 



 
 
 
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Que revolução será capaz de perturbar esta serenidade? - Graciliano Ramos

 
"Nas horas de serviço conseguia distrair-me. Os livros enormes de lombos de couro e folhas rotas, os ofícios, a campainha do telefone e o tique-taque das máquinas de escrever me arrastam para longe da terra. O que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo não tem aqui nenhuma significação. Tudo é diferente. Respiramos um ar onde voam partículas de papel e de tinta e trabalhamos quase às escuras. A voz do diretor é doce, ranzinza e regulamentar. Se um funcionário comete falta, o diretor mostra o parágrafo e o artigo adequado ao caso. Sucede que o funcionário se defende apontando outro artigo. Aí o diretor perturba-se e descontenta-se: compreende que o serviço não vai bem, mas encolhe-se diante do regulamento e admira e receia o empregado que soube escapar-se nele. Movemo-nos como peças de um relógio cansado. As nossas rodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos. O que tem valor cá dentro são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maquinismo parasse, não daríamos por isto: continuaríamos com o bico da pena sobre a folha machucada e rota, o cigarro apagado entre os dentes amarelos. Deixaríamos de pestanejar, mas ignoraríamos a extinção dos movimentos escassos. Os rumores externos chegam-nos amortecidos. Que barulho, que revolução será capaz de perturbar esta serenidade?".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 132).


domingo, 4 de agosto de 2013

Angústia - Graciliano Ramos (trecho)

 
"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer por que me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se tivesse encolhido de chofre; o automóvel para bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade ceio de vergonha, prometo corrigir-me. "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais e isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Às vezes isso me perturba, tira-me o sono (...) penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição incômoda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na criança que chora perdida, chamando a mamãezinha.. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que passava na multidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direita nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro - e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p.107).