Pesquisar este blog

sábado, 5 de março de 2011

Restos do carnaval - Clarice Lispector

Clarice com 10 anos, vestindo preto, de luto pela morte da  mãe
"Mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma pessoa feliz".

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - àidéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
(In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p.25-8)

sexta-feira, 4 de março de 2011

O valor da vida (Entrevista rara de Sigmund Freud)

Socidedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - IDE - 1988 - nº15
Entre as preciosidades encontradas na biblioteca da Sociedade Sigmund Freud está essa entrevista. Foi concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926. Deve ter sido publicada na imprensa americana da época. Acreditava-se que estivesse perdida, quando o Boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada, em 1976. Na verdade, o texto integral havia sido publicado no volume Psychoanalysis and the Future, número especial do "Journal of Psychology", de Nova Iorque, em 1957. É esse texto que aqui reproduzimos, provavelmente pela primeira vez em português.

TRADUÇÃO DE PAULO CÉSAR SOUZA
Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade”.


Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.
Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou.
Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação.

- Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.
Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.
- Por quê - disse calmamente- deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu.. Que mais posso querer?
- O senhor teve a fama. Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo - com exceção da sua própria Universidade.
- Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não é virtude.
- Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?
- Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não é certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liqüidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.
Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.
- Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.
- Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?
- Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.
- O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?
- Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem constituir uma exceção?
- Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?
- Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar à vida; movendo-se num círculo, seria ainda a mesma. Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.
- Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco, disse eu. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.
- É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição.
Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro Além do Princípio do Prazer. No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.
- Isto, exclamei, é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio.. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.
- A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte. Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós. Neste sentido, acrescentou Freud com um sorriso, pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.
Estava ficando frio no jardim.
Prosseguimos a conversa no gabinete.
Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.
- Em que o senhor está trabalhando?
- Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopolizá-la.
- O senhor teve muito apoio dos leigos?
- Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.
- O senhor está praticando muito a psicanálise?
- Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente.
- Minha filha também é psicanalista, como você vê...
Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud, acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxônicas.
- O senhor já analisou a si mesmo?
- Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.
- Minha impressão é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristã. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. "Tout comprec'est tout pardonner".
- Pelo contrário! - bravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. Compreender tudo não é perdoar tudo.. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância para com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento.
Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, porque ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.
- Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desdeentão prefiro me considerar judeu.
Fiquei algo desapontado com esta observação. Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raça, que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava-o mais atraente como ser humano.Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!
- Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!
- Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas, com freqüência, são também a fonte de nossa força.
- Imagino, observei, quais seriam os meus complexos!
- Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à "caça aos leões". Você procurou sempre as pessoas de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, Georg Brandes , Gerhart Hauptamann e George Bernard Shaw...
- É parte do meu trabalho.
- Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo.. A sua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu "complexo do pai".
Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levou a ele.
- Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através do seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito informando sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções.
- A inteligência num paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.
Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob o seu escrutínio.
- Ás vezes imagino, questionei, se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.
- Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.
- Por que?
- Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão, acrescentou Freud pensativamente, lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
- Meu cachorro, disse eu, é um Doberman Pinscher chamado Ajax.
Freud sorriu.
- Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!
- Mesmo o senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise fez da vida um quebra-cabeças complicado.
- De maneira alguma, respondeu Freud. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.
- Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. E a cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais intrigante e mais contraditório.
- A psicanálise, pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.
- Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, apegam-se a cada pronunciamento que sai da sua boca.
- A vida muda. A psicanálise também muda, observou Freud. Estava apenas no começo de uma nova ciência.
- A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos - a teoria do "deslocamento", da "sexualidade infantil", do "simbolismo dos sonhos", etc. - parecem permanentes.
- Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.
- O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?
- Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: "Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo" ("Yet all were lacking, if sex were lacking"). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está "além" do prazer - a morte, a negociação da vida.
- Este desejo explica por que alguns homens amam a dor - como um passo para o aniquilamento! Explica por que todos buscam o descanso, porque os poetas agradecem a
                                                              Whatever gods there be,
That no life lives forever
That dead men rise up never
And even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.
("Quaisquer deuses que existam/ Que a vida nenhuma viva para sempre/ Que os mortos jamais se levantem/ E também o rio mais cansado/ Deságüe tranqüilo no mar"..)
- Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo desinteressante.
- Shaw, respondeu Freud sorrindo, não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeira do amor de Júlio César - talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a uma insignificante garota.A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade, e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.
- O senhor, sem dúvida, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.
- Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O de Zaratustra diz:
"A dor
Grita: Vai!
Mas o prazer quer eternidade
Pura, profundamente eternidade".
- A psicanálise pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é imensa, porém. Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthak muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.
- O senhor, repliquei, não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes, Harvrey O'Higgins e outros fazem-se de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O'Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. The Silver Cord, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.
- Eu sei, replicou Freud, e aprecio o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus.
A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark University concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são divulgadores inteligentes, raramente são pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos, e ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação estritamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista. É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro do estudioso.
Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador.Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade!
Havia escurecido.
Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos.Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus.
- Não me faça parecer um pessimista, ele disse após o aperto de mão. Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais infeliz que os outros.
O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância.

O profeta - Khalil Gibran (trecho)

O amor não possui nem é possuído;
Pois o amor é suficiente ao amor.
Quando vós amaos, não deveis dizer: "Deus está no meu coração", mas sim "Estou no coração de Deus".
E não pensai que podeis drigir o curso do amor, pois o amor, se achar que mereceis, dirige o vosso curso.
O amor não tem outro desejo além de satisfazer a si mesmo.
Mas, se vós amais e precisais ter desejos, que sejam estes os vossos desejos:
Derreter e ser como um riacho que corre e canta sua melodia paa a noite.
Conhecer a dor do carinho demasiado.
Ser ferido pela vossa própria compreensão do amor;
E sangrar por vossa própria vontade e com alegria.
Acordar ao amanhecer com o coração leve e agradecer por mais um dia de amor;
Descansar ao meio-dia e meditar sobre o êxtase do amor;
Voltar para casa ao entardecer com gratidão;
E então dormir com uma prece ao bem-amado em vosso coração e uma canção de louvor em vossos lábios.
(...)
Amai um ao outro, mas não façais uma ligação de amor:
Deixai que seja como um mar em movimento entre as praias de vossas almas.
Enchei o cálice um do outro, mas não bebei do cálice do outro.
(...)
Cantai e dançai juntos e sejais alegres, mas deixai que cada um fique sozinho,
Assim como as cordas de uma lira são sozinhas, apesar de vibrarem com a mesma música.
Dai vossos corações, mas não para que o outro os guarde.
Pois apenas a mão da Vida pode conter vossos corações.
E ficai juntos, mas não juntos demais:
Pois os pilares do templo ficam separados,
E o carvalho e o cipreste não crescem na sombra um do outro.
(...)

quinta-feira, 3 de março de 2011

Genealogia da Moral - Nietzsche (fragmentos)

"O homem se inclui entre os mais emocionantes lances no jogo da "grande criança" de Heráclito, chame-se ela Zeus ou Acaso - ele desperta um interesse, uma tensão, uma esperança, quase uma certeza, como se com ele algo se anunciasse, algo se preparasse, como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um caminho, um episódio, uma ponte, uma grande promessa...".
*
"Ouça-se o timbre de um espírito quando fala: cada espírito tem o seu timbre, ama-o".
*
"O fato de Deus ter se feito homem indica apenas que o homem não deve buscar no infinito sua felicidade, mas fundar na Terra o seu céu".
*
"Entre castidade e sensualidade não há oposição necessária; todo bom casamento, todo verdadeiro caso amoroso está além dessa oposição".

terça-feira, 1 de março de 2011

A natureza em termos humanos - Sigmund Freud

"Reitler parece ter uma visão muito antropomórfica do modo como a natureza persegue sua meta, como se nela se tratasse da realização coerente de uma única intenção, a exemplo das obras humanas. Pelo que vemos, no entanto, em geral há uma série de objetivos que correm paralelamente nos processos naturais, sem excluírem uns aos outros. Se é para falarmos da natureza em termos humanos, devemos dizer que ela nos parece ser aquilo que, em relação a uma pessoa, chamaríamos de incoerente. Acho que Reitler não deveria dar tanto peso a seus argumentos teleológicos. O emprego da teleologia como hipótese heurística tem suas dificuldades; nunca sabemos, em casos particulares, se deparamos com uma "harmonia" ou com uma "desarmonia". è como quando se coloca um prego numa parede; não sabemos se topamos com um tijolo ou uma concavidade".
(Debate sobre a masturbação (1912). In: Obras completas, v.10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1911-1913], p.245-6).

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Primeiras Estórias - Guimarães Rosa (fragmentos)

"Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? (...). Suas duas almas se transformaram? E tudo à razão do ser (...) Amavam-se".
*
"A vida é constante, progressivo desconhecimento".
"E, se, para quê? Se ninguém entende ninguém; e ninguém entenderá nada, jamais; esta é a prática verdade".
*
"Sem saber o amor, a gente não pode ler romances grandes".
"Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em si juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de todos os pássaros".
"O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo".
*
"A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer seguro".
"E vindo o outro dia, no-não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado..."
*
"A gente nunca podia apreciar direito, mesmo as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Ás vezes, porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de um lado e de outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo".

(Imagens do filme Caminhando nas Nuvens)

Primeiras Estórias p/ download: http://www.mediafire.com/?nttjy1gy3m3

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A arte segundo Nietzsche:

"A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, vincula os não educados a leis de conveniência, delimpeza, de cortesia, de falar e calar a tempo-certo. Em seguida, a arte deve esconder ou reintepretar tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com a condição da natureza humana: deve proceder desse modo especialmente em vista das paixões e das dores e angústias da alma e, no inevitável ou insuperavelmente feio, fazer transparecer o significativo".
(citado por Rosa Maria Dias em: Arte e vida no pensamento de Nietzsche.  In: Nietzsche e Deleuze: intensidade e paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000)

Um pouco de Brecht

" - A verdade pode ser mortal e a mentira eterna?
- Tudo me leva a crer".
*
"Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam: - Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que reina a confusão,
Em que corre o sangue,
Em que o arbitrário tem força de lei,
Em que a humanidade se desumaniza...
Não digam nunca: - Isso é natural!
A fim de que nada passe por ser imutável"

Manifesto do partido comunista - Marx & Engels (fragmentos)

"O que o operário obtém com o seu trabalho é o estritamente necessário para a mera conservação e reprodução de sua vida".
*
"Acusai-vos de querer abolir a exploração das crianças por seus próprios pais? Somos culpados desse crime".
*
"A burguesia pretende induzir o proletariado a manter-se na sociedade atual, desembaraçando-se, porém, do ódio que ele dedica a essa sociedade".
*
"A dissolução das velhas idéias marcha ao lado da dissolução das antigas condições de vida".
*
"Será preciso grande perspicácia para compreender que as idéias, as nações e as concepções, numa palavra, a consciência do homem se modifica com cada mudança em suas condições de vida, em suas relações sociais, em sua existência social?"
Marx & Engels

Admirável mundo novo - Aldous Huxley (fragmentos)

"O remorso crônico, e nisso estão de acordo todos os moralistas, é um sentimento muito indesejável. Se você se comportou mal, arrependa-se, faça as correções que puder e dedique-se à tarefa de portar-se melhor da próxima vez. De modo algum acalente sua má ação. Rolar na sujeira não é o melhor meio de se limpar".
*
"Os maiores triunfos da propaganda não se deveram à ação, mas sim, à omissão de algum ato. A verdade é grande, mas maior ainda, do ponto de vista prático, é o silêncio sobre a verdade. Os propagandistas totalitários influenciaram a opinião com muito maior efeito do que teriam conseguido pelas denúncias mais eloquentes, pela discussão lógica e irrefutável".
*
"O problema dos manipuladores não é mais chamado "o problema da felicidade", e sim, "o problema de fazer o povo amar a servidão"".
*
"Com a restrição da liberdade política e econômica, em compensação, tende a crescer a liberdade sexual"
Aldous Huxley

Boletim do Fórum do Campo Lacaniano - SP

Em anexo, agenda de atividades do Fórum do Campo Lacaniano - SP para 2011.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Uma história dos perversos- Elisabeth Roudinesco

"Confundida com a perversidade, a perversão era vista antigamente - em especial da Idade Média até o fim da Idade Clássica - como uma formar particular de abalar a ordem natural do mundo e converter os homens ao vício, tanto para desvirtuá-los e corrompê-los como para lhes evitar toda forma de confronto com a soberania do bem e da verdade.
O ato de perverter supunha então a existência de uma autoridade divina. E aquele que se atribuía como missão arrastar a humanidade inteira para a  autodestruição não tinha outro destino senão espreitar, no rosto da Lei por ele transgredida, o reflexo do desafio singular que ele lançara a Deus. Demoníaco, amaldiçoado, criminoso, devasso, torturador, lascivo, fraudador, charlatão, delituoso, o pervertedor era em primeiro lugar uma criatura dúbia, atormentada pela figura do Diabo, mas ao mesmo tempo habitada por um ideal de bem que ele não cessava de destruir a fim de oferecer a Deus, seu senhor e seu carrasco, o espetáculo de seu próprio corpo reduzido a um dejeto.
Embora vivamos num mundo em que a ciência ocupou o lugar de autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. E,sejam quais forem seus aspectos, ela aponta sempre, como antigamente mas por meio de novas metamorfoses, para uma espécie de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, crueldade, gozo.
Mas a perversão é também criatividade, superação de si, grandeza. Nesse sentido, pode ser entendida como o acesso à mais elevada das liberdades, uma vez que autorizaaquele que a encarna a ser simultaneamente carrasco e vítima, senhor e escravo, bárbaro e civilizado. O fascínio exercido sobre nós pela perversão deve-se precisamente que ela pode ser ora sublime, ora abjeta. Sublime, ao se manifestar nos rebeldes decaráter prometéico, que se negam a se submeter à lei dos homens, ao preço de sua própria exclusão; abjeta, ao se tornar, como no exercício das ditaduras mais ferozes, a expressão soberana de uma fria destruição de todo laço genealógico.
Seja gozo do mal ou paixão pelo soberano bem, a perversão é uma circunstância da espécie humana: o mundo animal está excluído dela, assim como do crime. Não somente é uma circunstância humana, presente em todas as culturas, como supõe a preexistência da fala, da linguagem, da arte, até mesmo de um discurso sobre a arte e sobre o sexo: "Imaginemos uma sociedade sem linguagem", escreve Roland Barthes, "eis que um homem nela copula com uma mulher, a tergo, misturando à sua ação um pouco de pasta de trigo. Nesse nível, não há nenhuma perversão".
A perversão não existe, em outras palavras, senão como uma extirpação do ser da ordem da natureza. E com isso, através da fala do sujeito, só faz imitar o reino natural de que foi extirpada a fim de melhor parodiá-lo. Eis efetivamente por que o discurso do perverso repousa sempre num maniqueísmo que parece excluir a parte de sombra à qual não obstante deve sua existência. Absoluto do bem ou loucura do mal, vício ou virtude, danação ou salvação: este é o universo fechado no qual o perverso circula deleitosamente, fascinado pela idéia de poder libertar-se do tempo e da morte.
Se nenhuma perversão é pensável sem a instauração de interditos fundamentais - religiosos ou profanos - que governem as sociedades, nenhuma prática sexual humana é possível sem o suporte de uma retórica. E é efetivamente porque a perversão é desejável, como o crime, o incesto e o excesso, que foi preciso designá-la não apenas como uma transgressão ou anomalia, mas também como um discurso noturno em que sempre se enunciaria, no ódio de si e na fascinação pela morte, a grande maldição do gozo ilimitado. Por esta razão - e é Freud o primeiro a avaliar seu lcance teórico -, ela está presente, decerto em diversos graus, em todas as formas de sexualidade humana.
 A perversão, portanto, é um fenômeno sexual, político, psíquico, trans-histórico, estrutural, presente em todas as sociedades humanas. E se todas as culturas partilham atitudes coerentes - proibição do incesto, delimitação da loucura, designação do monstruoso ou do anormal -, a perversão naturalmente tem seu lugar nessa combinatória. Porém, pelo seu status psíquico, que remete à essência de uma clivagem, ela é igualmente uma necessidade social. Ao mesmo tempo em que preserva a norma, assegura à espécie humana a subsistência de seus prazeres e transgressões. Que faríamos sem Sade, Mishima, Jean Genet, Pasolini, Hitchcock e muitos outros, que nos deram as obras mais refinadas possíveis? Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios - isto é, perversos - aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?
Sejam sublimes que se voltam para a arte, a criação ou a mística, sejam abjetos quando se entregam às suas pulsões assassinas, os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos.

(In: A parte obscura de nós mesmos - uma história dos perversos. Elisabeth Roudinesco. Rio de Janeiro, Zahar, 2008. p.10-13).

Vejam a entrevista de Elisabeth Roudinesco no programa Saia Justa, da GNT, sobre o livro:

Entrevista de Elisabeth Roudinesco na Tv UOL:

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

XI Encontro Nacional da AFCL - Anais

Os Anais do encontro estão disponíveis para download no link:

Excelentes textos de Vera Pollo, Jairo Gerbase, Ana  Prates, dentre outros tantos, e o artigo que escrevi com meu orientador, Daniel Migliani Vitorello: "Da ilusão de completude ao encontro simbólico: a peregrinação amorosa do sujeito desejante em "Uma Aprendizagem ou o livro dos prazeres", de Clarice Lispector".
Não há palavras suficientes para descrever este romance de Clarice; só lendo...
Download disponível no link:


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Poema patético - Emílio Moura

Como a voz de um pequeno braço de mar perdido dentro de uma caverna,
Como um abafado soluço que irrompesse de súbito de um quarto fechado,
Ouço-te agora, a voz, ó meu desejo, e instintivamento recuo até as origens da minha angústia.
Policiada e vencida, oh! Afinal vencida por tantos séculos de resignação e humildade.
Em que hora remota, em que época já tão distanciada, foi que os ares
Vibraram pela última vez, diante de teu último grito de rebeldia?
Quantas vezes, oh meu desejo, tu me obrigaste a acender grandes fogueiras no meio da noite.
E esperar, cantando, pela madrugada?
Mas, e hoje? Hoje a tua voz ressoa dentro de mim, como um cântigo de órgão.
Como a voz de um pequeno braço de mar perdido dentro de uma caverna,
Como um abafado soluço que irrompesse, de súbito, de um quarto fechado.

Dedução - Vladimir Mayakovsky

Não acabarão com o amor,
Nem as rusgas,
Nem a distância.
Está provado,
Pensado,
Verificado.
Aqui levanto solene
Minha estrofe de mil dedos
E faço o juramento:
Amo firme,
Fiel,
E verdadeiramente.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O livro de cabeceira - filme

"Escrever é uma ocupação muito comum. Todavia é uma ocupação muito preciosa. Se a escrita não existisse de que depressão terrível nos sofreríamos".
*
"Trate-me como a página de um livro".
*
"Tenho certeza de que há duas coisas na vida que são dignas de confiança. Os prazeres da carne e os prazeres da literatura. Eu tive a grande sorte de desfrutar dessas duas coisas da mesma forma"
*
"A única verdadeira posse de um ser humano é o amor que ele possui (...) a única coisa que levamos da vida é o que nós sentimos"