Pesquisar este blog

segunda-feira, 10 de março de 2014

Poemas de Wislawa Szymborska

Entre muitos
Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos
Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.
No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.
Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.
Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.
Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.
Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.
E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?
Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?
A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.
Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.
Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.
*
A mulher de Lot
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
*
Uma certa gente
Uma certa gente fugindo de outra gente
em um certo país sob o sol
e algumas nuvens.
Deixam para trás um certo seu tudo
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.
Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.
É no silêncio que alguém cai de exaustão
é no alarido que alguém rouba de alguém o pão
e o filho morto de alguém é sacudido.
À sua frente uma estrada sempre errada
uma ponte, mas não a que precisam
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
No alto um avião que rodopia.
Viria a calhar certa invisibilidade
uma cinzenta rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou longo.
Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê?
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
serão quantos e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
*
Fim e Começo
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
*
A vida na hora
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Nao dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.

E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
*
 
Escrevendo um curriculo
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai,
esse por quem você se passa.

Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando o papel.

*
Sob uma estrela pequenina
Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

(In. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012).
 

Hemingway & Gellhorn - o Filme (trecho).


"O homem pode ser estruído mas não derrotado. Se ainda está de pé, ele pode lutar".
*
"Escrever é como ir à missa. Deus se aborrece se você não aparecer".
*
 "Martha...você tem que ficar comigo. A felicidade em pessoas inteligentes é a coisa mais rara que eu conheço".

Trailer do filme:


Sobre o filme:



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Memorial do convento - Saramago (trechos)


"...e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os olhos, olhos que não te viram, coração que sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí estiver..." (p.53).


"Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios" - ( p.70).


"Dormiu cada qual como pôde, com seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal" - ( p.121)
 
 
"Já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades, porém, estando deitados, assistem as vontades e as almas ao gosto dos corpos, ou talvez ainda se agarrem mais a eles para tomarem parte no gosto, difícil é saber que parte há em cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma quando Blimunda levanta as saias e Baltasar descalça as bragas, se está a vontade ganhando ou perdendo quando ambos suspiram e gemem, se ficou o corpo vencedor ou vencido quando Baltasar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando" - ( 137-8).
*
"Durante muitas horas desse dia não verá Baltasar o rosto de Blimunda, ela sempre adiante, avisando se tem de voltar-se, é um estranho jogo o destes dois, nem um quer ver, nem o outro quer ser visto, parece tão fácil, e só eles sabem quanto lhes custa não se olharem. Por isso, lá pelo fim do dia, quando Blimunda já tiver comido e os seus olhos regressarem à comum humanidade, Baltasar poderá sentir acordar o seu próprio e entorpecido corpo, menos cansado da caminhada que de não ser olhado" - (p.179).
 

"Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas"
*
"Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda" .

(In. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989).

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Teorema - Pasolini ( trecho).

 "Não me reconheço mais.
O que me tornava igual aos outros foi destruído.
Eu era como os outros, talvez, com muitos defeitos... os meus e os do meu mundo.
Você me tirou da ordem natural das coisas.
E, enquanto você estava perto, eu não tinha percebido.
Agora entendo que você vai embora. E perder você me conscientizou da minha diferença.


O que será de mim?
O futuro será como viver perto de um outro "eu"  que não tem nada a ver comigo.
Devo chegar ao fundo dessa diferença que você me revelou e que é a minha íntima e equidistante natureza?
Mas, se não quero, tudo isso não vai me colocar contra tudo e contra todos?





Sobre o filme:
*


Trailer do filme:



sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A obscena senhora D - Hilda Hilst (trechos).


"...por que fecha sempre as janelas?
e por que devo abri-las?
e por que as abre de repente e assuta as gentes e grita?
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com benquenrença, aceitando o agrado dos outros?" 
*
"...Agonizava essa e eu encostava o ouvido à sua boca, ouvia: querido, perdoa incompreensão, recusa, indiferença de muitos dias, perdoa solidões, os contatos com o nada, a palha colada à alma, perdoa se não te dei claridade, emoção, se quando tu me querias os olhos se banhavam de umas águas do passado.
Eu Hillé respondia esquece esquece, está tudo bem agora. Mentia."
*
"ás vezes queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha e nojo, não queremos?
Sim
então, eu queria também, queria sim tocar teu medo, teu amor, tua vaidade de homem, existir no teu sonho, me ouves?
Sim
Espera, que gritos são esses agora?
(...) Gritos como facas rombudas, soluços, me muero si, me muero, as pedras polidas, o frio, há anos que te procuro.
Eu também.
há anos que queria ter cordas, malhas de fio-ferida à minha volta, há anos que queria pertencer, ouviste?
Sim" .
 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Flores raras - filme (trecho)

"Elisabeth: - Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.
Lota: - Mas por quê?
Elisabeth: - Porque quando eu não tenho o que quero eu me sinto sozinha e triste...e quando eu tenho o que quero tenho certeza que vou perder. E a espera é insuportável".

Trailer do filme:

Cena do filme:

Reportagem sobre o filme:

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Misto-quente - Bukowski (trechos)


"Meu pai não gostava de gente. Não gostava de mim.
- As crianças foram feitas para serem olhadas e não ouvidas - ele me falou" - (p. 18).
*
"- Este é o Henry Jr.?
- Sim.
- Ele só fica olhando. É tão quietinho.
- É assim que queremos que ele seja.
- As águas paradas são as que têm maior profundidade.
- Não nesse caso. A única profundidade que ele tem são os buracos nos ouvidos" - (p.24).
*
"- Você vai comer cada cenoura e cada ervilha em seu prato! - disse meu pai.
(...) Comecei a comer. Era terrível. Sentia como se os estivesse comendo, comendo as coisas em que acreditavam, aquilo que eles eram. Não mastiguei os alimentos, engoli-os apenas, como que para me livrar da obrigação (...). Quando voltei ao meu quarto, pensei: essas pessoas não são meus pais, devem ter me adotado e agora não estão satisfeitas com o que me tornei" - (.45-6).
*
"Não sabia se estava infeliz. Sentia-me miserável demais para ser infeliz" - (.73).
"Levei algumas surras do meu pai por sair com Frank, mas percebi que iria apanhar de qualquer jeito. Assim, pelo menos, eu me divertia" - (p.93).
*
"Um dia eu estava ali parado, esperando como de costume, de mal com o pessoal, mas a fim de fazer as pazes com eles, quando Gene se aproximou de mim correndo:
- Ei, Henry, venha cá!
- O que é?
- Venha de uma vez!
Gene começou a correr e fui atrás dele. Seguimos até o quintal dos Gibson. Os Gibson tinham um muro alto de tijolo ao redor de todo o pátio dos fundos.
- Veja! Ele está com o gato encurralado! Ele vai matá-lo!
Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos enm fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldoque fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.
- Cara, vocês armaram essa - eu disse.
- Não - rebateu Chuck -, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se vire agora para escapar.
- Odeio vocês, seus desgraçados - eu disse.
- Barney vai matar o gato - disse Gene.
- Barney vai fazer picadinho do bichano - disse Eddie. - Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerrado.
Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pelos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.
O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?
Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas não tinnha forças. Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.
- Chuck - eu disse -, deixe o gato ir, por favor. Chame seu cachorro.
- Vai, Barney, pegue ele! Pegue o gato!
Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bichano se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.
- Pegue ele, Barney - disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito! - gritei para ele.
- Não fale comigo desse jeito - retrucou.
- Cara, vocês armaram tudo isso aqui - eu disse.
Ouvi um leve ruído atrás de n´s e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela de seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por quê?
(...)
O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse sscapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a Humanidadeinteira. 
Dei meia-volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chagando à calçada. Caminhei emdireção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente à sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.
- Onde você estava? - ele eprguntou.
Não respondi.
- Já pra dentro - ele disse. - E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei para que você realmente sinta o que é infelicidade! " - (p.97-9).
*
"Precisávamos de compaixão. Nossas vidas já eram suficientemente idiotas. Alguma coisa tinha que nos salvar " - (p. 110).
*
"Que tempos penoso foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade" - (p.238).
(In. Misto-quente. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2013).

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"As coisas não existem..." - Hilda Hilst

"O que nós vemos das coisas são as coisas"
(Ferbnando Pessoa).

As coisas não existem.
O que existe é a idéia
melancólica e suave

que fazemos das coisas.

A mesa é feita de amor
e de submissão.
No entanto
Ninguém a vê
como eu a vejo.
Para os homens
é feita de madeira
e coberta de tinta.
Para mim também
mais a madeira
somente lhe protege o interior
e o interior é humano.

Os livros são criaturas
Cada página um ano de vida,
cada leitura um pouco de alegria
e esta alegria
é igual ao consolo dos homens
quando permanecem inquietos
em resposta às suas inquietudes.

As coisas não existem
A idéia, sim.

A idéia é infinita
igual ao sonho das crianças.

(In. Baladas. São Paulo: Globo, 2003, p. 91-2).

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Terceira - Anna Akhmatova

"A mim, como a um rio,
A época severa desviou-me.
A mim substituíram-me a vida. Para outro curso,
Passou a fluir perto de outro,
E eu as minhas margens não conheço,
Oh, quantos espetáculos eu perdi,
E a cortina erguia-se sem mim
E sem mim caía. Quantos amigos
Meus nenhuma vez na vida encontrei,
E quantos contornos de cidades
Aos meus olhos poderiam fazer vir lágrimas,
Mas eu conheço uma única cidade no mundo
E às cegas encontrá-la-ia no sono.
E quantos versos não escrevi,
 E o seu coro secreto vagueia em meu redor,
E, talvez ainda em qualquer altura
Me estrangulem...
Por mim são conhecidos os princípios e os fins,
E a vida depois do fim, e algo
Que não vale a pena lembrar agora.
E uma mulher qualquer o meu
Lugar único ocupou,
Leva o meu nome legítimo,
Tendo-me deixado a alcunha, da qual,
Eu fiz, julgo, tudo o que foi possível.
Eu não me deito, ah, no meu túmulo.
*
Mas por vezes o travesso vento primaveril,
Ou a combinação das palavras num livro de acaso,
Ou o sorriso de alguém puxam-me de repente
Para a vida que não se realizou.
Nesse ano teria acontecido isso e aquilo,
Nessoutro - isto: viajar, ver, pensar
E lembrar, e em novo amor
Entrar, como num epselho, com a consciência obtusa
Da traição e com, ontem não a tinha,
Uma pequena ruga...
Mas se eu olhasse de algures
Para a minha vida de agora,
Teria finalmente conhecido a inveja...
*
(2/9/1945 - Leningrado)



(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.77).

Sobre os anos 10 - Anna Akhmatova

E nenhuma infância cor-de-rosa
Nem pequeninas sardas, nem ursinhos, nem anéis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras de rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio
Ou o reflexo em expelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raízes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
"Ela chegou, ela por si própria chegou!"
Mas eu olhava com espanto
E pensava: "Perderam o juízo!"
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicômio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu - mas continuava a tortura da felicidade!"
*
(4/7/1955 - Moscovo).
(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.85).

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

É isto um homem? - Primo Levi (trechos)

"Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar, 
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou não, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los" - (p. 9-10).
*
"desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado" - (p.16).
*
"Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer "infinito". Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida quanto ao amanhã,no segundo. Assim, opõe-se a ela a certeza da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam a cada isntante a nossa atenção da  desgraça que pesa sobre nós, tornando a sua percepção fragmentária, e portanto, suportável.
Foram justamente as privações, as pancadas, o frio, a sede que, durante a viagem e depois dela, nos impediram de mergulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi isso. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: dela poucos homens são capazes, e nós éramos apenas exemplares comuns da espécie humana" - (p.17-8).
*
"Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível , e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota" - (p.25-6).
*
"A explicação é repugnante, porém simples: neste lugar tudo é proibido, não por motivos inexplicáveis e sim porque o Campo foi criado para isso" - (p.36-7).
*
"...porque o Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais..." - (p. 55).
*
"A convicção de que a vida tem um objetivo está enraizada em cada fibra do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza. Para nós, a questão é mais simples.
Hoje, e aqui, o nosso objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em outra coisa" - (p. 102).
 
"Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: "a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado". No Campo, onde o homem está sozinho e onde a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos. Com os mais aptos, os mais fortes e astuciosos, até os chefes mantêm contatos, às vezes quase amistosos, porque esperam poder tirar deles, talvez, mais tarde, alguma vantagem. Quanto aos "muçulmanos", porém, aos homens próximos do fim, nem adianta dirigir-lhes a palavra; já se sabe que eles só se queixariam, ou contariam como comiam bem em sua casa (...).
Nas estatísticas de entradas e saídas do Campo, poderia ler-se o resultado desse implacável processo de seleção natural. Em Auschwitz, no ano de 1944, dos velhos prisioneiros judeus (dos outros não vamos falar, suas condições eram diferentes), dos kleine Nummer, "números pequenos" inferiores ao número 150 mil, sobravam apenas algumas centenas, e nenhum deles era um Haftling normal, que vegetasse nos Kommandos normais e que se contentasse com a ração normal. Restavam apenas os médicos, os alfaiates, os sapateiros, os músicos, os cozinheiros, os homossexuais jovens e atraentes, os amigos ou conterrãneos de alguma pessoa influente do Campo; e, além deles, alguns indivíduos especialmente cruéis, fortes e desumanos, que alcançaram cargo de Kapo, de Chefe de Bloco ou outro, por designação dos SS que, nessa escolha, demonstravam possuir um conhecimento satânico dos homens. Sobravam ainda aqueles que, embora sem exercer funções especiais, com a sua astúcia e energia conseguiam sempre "ajeitar as coisas", merecendo não apenas as vantagens materiais e a reputação, mas também a tolerância e consideração dos poderosos do Campo. Quem não souber tornar-se Organisator, Kombinator, Prominent (oh, a eloquência cruel desses vocábulos!) acaba, em breve, "muçulmano" . Na vida normal, existe um terceiro caminho, aliás, o mais comum. No Campo, não existe.
Sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebia, comer apenas a ração, obedecer à diosciplina do trabalho do Campo. Desse modo, a experiência demonstra que não se aguenta quase nunca mais do que três meses. A história - ou melhor, a não história - de todos os "muçulmanos" que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se;  ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoranara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os "muçulmanos", os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar "morte" a sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la.
Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria esse imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento" - (p. 129-132).
*
"Porque nos Campos perdem-se o hábito da esperança e até a confiança no próprio raciocínio. No Campo, pensar não serve para nada, porque os fatos acontecem, em geral, de maneira incompreensível; pensar é, também, um mal porque conserva viva uma sensibilidade que é fonte de dor, enquanto uma clemente lei natural embota essa sensibilidade quando o sofrimento passa de certo limite.
A gente cansa da alegria, do medo, até da dor; cansa também da espera" - (p. 251-2).
(In. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988).

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A carta de Joyce & a resposta de Nora


29 de agosto de 1904.
"Minha querida Nora Acabei de fazer a refeição da noite mas não tinha o menor apetite. Quando estava no meio descobri que comia com os dedos. Me senti mal ontem à noite. Estou muito angustiado. Perdoa esta pena horrível e este papel medonho.
Devo ter-lhe atormentado esta noite com o que disse mas certamente é bom que você conheça a minha opinião sobre a maioria das coisas. Minha consciência rejeita toda a ordem social atual e o cristianismo - lar, as virtudes reconhecidas, classes sociais e doutrinas religiosas. Como posso gostar da ideia de lar? Meu lar foi simplesmente um de classe média arruinado por hábitos pródigos os quais herdei. Minha mãe foi morta lentamente, penso, pelo péssimo tratamento do meu pai, por anos de dificuldades e pela cínica franqueza da minha conduta. Quando olhei para o seu rosto no caixão - um rosto cinza e consumido pelo câncer - percebi que olhava para o rosto de uma vítima e amaldiçoei o sistema que fizera dela uma vítima. Nós éramos uma família de dezessete. Meus irmãos e minhas irmãs não são nada para mim. Só um irmão é capaz de me entender.
Abandonei a igreja católica há seis anos, odiando-a profundamente. Descobri que me era impossível permanecer em seu seio devido aos impulsos da minha natureza. Quando era estudante travei uma guerra secreta contra ela e recusei aceitar as posições que me oferecia. Ao fazer isso eu me tornei um mendigo, mas mantive o meu orgulho. Agora travo uma guerra aberta contra ela por meio do que escrevo, digo e faço. Não posso fazer parte da ordem social senão como um vagabundo. Comecei a estudar medicina três vezes, direito uma vez. Há uma semana planejava ir embora como ator ambulante. Não consegui por nenhuma energia nesse projeto porque você não parava de me puxar pelo braço. As dificuldades atuais da minha vida são inacreditáveis mas eu as desprezo.
Assim que você se recolheu esta noite eu caminhei até a rua Grafton onde fiquei fumando por muito tempo, recostado a um poste. A rua estava cheia de animação na qual verti um jorro da minha juventude. Enquanto permanecia ali recordei certas frases que escrevi há alguns anos quando morava em Paris - essas frases são - "Passam em dois ou três em meio à animação do boulevard, caminhando como pessoas desocupadas num lugar iluminado para elas. Estão numa confeitaria, tagarelando, triturando os edificiozinhos de massa folhada ou sentadas silenciosamente às mesas perto da porta do café, ou descendo de carruagens com a viva agitação de trajes suaves como a voz do adúltero. Passam num ar perfumado. Sob os perfumes seus corpos têm um cheiro quente e úmido".
Enquanto repetia isso para mim mesmo me dei conta de que essa vida ainda me esperava caso eu decidisse entrar nela. Talvez ela não me embriagasse como fez um dia mas ainda estava lá e agora que sou mais sábio e mais disciplinado ela era segura. Não faria perguntas, não esperaria nada de mim exceto alguns momentos da minha vida, deixando o resto livre, e me prometeria em troca o prazer. Pensei nisso tudo e o rejeitei sem arrependimento. Era inútil para mim; não poderia dar-lhe o que eu queria.
Acho que você não entendeu bem algumas passagens de uma carta que te escrevi e notei certa reserva no teu comportamento como se a lembrança daquela noite te perturbasse. No entanto, eu a considero um tipo de sacramento e sua lembrança me enche de assombrosa alegria. Você talvez não compreenda imediatamente por que é que eu te venero tanto por isso, pois não conhece bem as minhas opiniões. Mas ao mesmo tempo foi um sacramento que me deixou uma sensação final de tristeza porque vi em você uma extraordinária ternura melancólica que havia escolhido esse sacramento como um compromisso, e aviltamento porque compreendi que a seus olhos eu era inferior a uma convenção da nossa sociedade atual.
Falei sarcasticamente esta noite mas falava do mundo e não de você. Sou inimigo da baixeza e da escravização de pessoas mas não de você. Você não consegue ver a simplicidade que está por trás de todos os meus disfarces? Todos nós usamos máscaras. Certas pessoas que sabem que estamos unidos frequentemente me insultam falando de você. Eu os escuto calmamente, desdenhando lhes responder mas a menor palavra deles faz meu coração soçobrar como um pássaro na tempestade.
Não me é agradável ter que ir agora para a cama com a lembrança da última expressão do teu olhar - um olhar de indiferença cansada - a lembrança da tortura na sua voz na outra noite. Penso que nunca um ser humano esteve tão próximo da minha alma como você, e contudo você pode tratar minhas palavras com uma rudeza penosa ("Agora sei o que é falação", você diz). Quando eu era mais novo tive um amigo com quem ficava à vontade - às vezes mais, às vezes menos do que fico com você. Ele era irlandês, quer dizer, ele me traiu.
Não disse nem a metade do que queria dizer mas é muito trabalhoso escrever com esta maldita pena. Não sei o que você vai achar desta carta. Por favor me escreva, está bem? Minha querida Nora, eu te respeito muito, creia-me, mas quero mais do que as tuas carícias. Você me deixou com uma dúvida angustiante".
JAJ - (p. 37-9).


12 de setembro de 1904
"Espero que não tenha ficado molhado se você estava hoje na cidade ficarei aguardando para te ver às 8:15 a manhã à noite esperando que vá ser ótimo eu me sinto muito melhor desde a noite passada mas sente (sic) um pouco solitária hoje à noite pois está tão úmido eu fiquei lendo as tuas cartas o dia inteiro pois não tinha mais o que fazer eu li aquela carta longa várias vezes mas não pude entender vou te levar amnhã à noite - e talvez você poderia me fazer entender
nada mais no momento da tua garota carinhosa
Nora
desculpe escrever com pressa
Suponho que soltará fogos quando receber isso" -  (p. 137).
(*os erros de grafia foram preservados tais como nas cartas)
(In. Cartas a Nora. James Joyce. São Paulo: Iluminuras, 2013).

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Liberté et Patrie - Jean Luc Godard (trechos)


"Se aprende a palavra pensar, e sabe-se como usá-la, mas, dependendo das circunstâncias, não se pode descrevê-la".
*
"E tem de errar muitas vezes, para não voltar a errar...".
*
" - Pai, qual é o melhor modo de saber se alguém é digno de confiança?
- Pergunte: "O que você leu"? Se responder: " Homero, Shakespeare, Balzac", então não é digno de confiança. Mas se responder: "Depende do que você quer dizer com ler", então há esperança".

Link para o curta de Godard na íntegra e legendado no youtube:


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Provocações com Daniela Arbex, autora do livro "Holocausto Brasileiro".

O programa "Provocações", com Antônio Abujamra, transmitiu  pela Tv Cultura na noite de 17/09/2013 a entrevista com Daniela Arbex, autora do livro "Holocausto Brasileiro".
O programa está disponível na íntegra no youtube, dividido em três partes:

Parte I:

Parte II:


Parte III:

*
"Sorôco, sua mãe, sua filha"

É  de Guimarães Rosa a expressão "trem de doido" incluída no conto "Sorôco, sua mãe, sua filha", do livro Primeiras Estórias. Ali o autor resume a situação dos trens que chegavam a Barbacena apinhados de gente "em busca de tratamento psiquiátrico". Ele conta a angústia do personagem Sorôco na despedida das únicas pessoas que tinha no mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva. O importante escritor brasileiro, aliás, morou em Barbacena, em 1933, quando foi oficial médico do 9º Batalhão de Infantaria. O simbolismo da loucura em seus contos são indício de que Guimarães Rosa conhecia a realidade da Colônia. O psiquiatra Francisco Paes Barreto entra no mundo ficcional de Guimarães Rosa e consola Sorôco em carta endereçada ao personagem. "Meu querido Sorôco, esteja onde estiver, quero que ouça o que tenho a lhe dizer. Visitei hoje o lugar onde morreu sua mãe, onde morreu sua filha, onde morreram as mães, os pais, os filhos e os irmãos de um incontável número de pessoas. Sabe o que encontrei lá? Um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Um hospital regional de clínica médica e cirúrgica. Um centro social urbano. Uma escola. (...)Do que havia do antigo hospital resta apenas um edifício imponente, que é a principal atração turística da cidade. Chama-se Museu da Loucura. Está aí exatamente para não deixar esquecer, para registrar uma época. É um templo dedicado à loucura. Não à loucura de pessoas como sua mãe, sua filha, mas a nossa loucura, Sorôco, à loucura dos chamados normais."
Fonte: http://www.tribunademinas.com.br/cidade/a-historia-por-tras-da-historia-1.992847

*

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Masculin, Feminin - Jean-Luc Godard (trechos)



" - Por que você quer sair comigo esta noite?
- Porque você é linda, e todos precisamos de ternura.
- Não há mais nada em mim que o atraia?
- Sim. Tudo".
*
Não se pode viver sem ternura. Seria mortal".
*
"É difícil dizer o que se quer se não se está acostumado".
*
"Se matar um homem, você é um assassino.
Se matar milhões, é um conquistador.
Se matar todos os homens, é Deus".

 


Link do youtube com o filme legendado: