"Confundida com a perversidade, a perversão era vista antigamente - em especial da Idade Média até o fim da Idade Clássica - como uma formar particular de abalar a ordem natural do mundo e converter os homens ao vício, tanto para desvirtuá-los e corrompê-los como para lhes evitar toda forma de confronto com a soberania do bem e da verdade.
O ato de perverter supunha então a existência de uma autoridade divina. E aquele que se atribuía como missão arrastar a humanidade inteira para a autodestruição não tinha outro destino senão espreitar, no rosto da Lei por ele transgredida, o reflexo do desafio singular que ele lançara a Deus. Demoníaco, amaldiçoado, criminoso, devasso, torturador, lascivo, fraudador, charlatão, delituoso, o pervertedor era em primeiro lugar uma criatura dúbia, atormentada pela figura do Diabo, mas ao mesmo tempo habitada por um ideal de bem que ele não cessava de destruir a fim de oferecer a Deus, seu senhor e seu carrasco, o espetáculo de seu próprio corpo reduzido a um dejeto.
Embora vivamos num mundo em que a ciência ocupou o lugar de autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. E,sejam quais forem seus aspectos, ela aponta sempre, como antigamente mas por meio de novas metamorfoses, para uma espécie de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, crueldade, gozo.
Mas a perversão é também criatividade, superação de si, grandeza. Nesse sentido, pode ser entendida como o acesso à mais elevada das liberdades, uma vez que autorizaaquele que a encarna a ser simultaneamente carrasco e vítima, senhor e escravo, bárbaro e civilizado. O fascínio exercido sobre nós pela perversão deve-se precisamente que ela pode ser ora sublime, ora abjeta. Sublime, ao se manifestar nos rebeldes decaráter prometéico, que se negam a se submeter à lei dos homens, ao preço de sua própria exclusão; abjeta, ao se tornar, como no exercício das ditaduras mais ferozes, a expressão soberana de uma fria destruição de todo laço genealógico.
Seja gozo do mal ou paixão pelo soberano bem, a perversão é uma circunstância da espécie humana: o mundo animal está excluído dela, assim como do crime. Não somente é uma circunstância humana, presente em todas as culturas, como supõe a preexistência da fala, da linguagem, da arte, até mesmo de um discurso sobre a arte e sobre o sexo: "Imaginemos uma sociedade sem linguagem", escreve Roland Barthes, "eis que um homem nela copula com uma mulher, a tergo, misturando à sua ação um pouco de pasta de trigo. Nesse nível, não há nenhuma perversão".
A perversão não existe, em outras palavras, senão como uma extirpação do ser da ordem da natureza. E com isso, através da fala do sujeito, só faz imitar o reino natural de que foi extirpada a fim de melhor parodiá-lo. Eis efetivamente por que o discurso do perverso repousa sempre num maniqueísmo que parece excluir a parte de sombra à qual não obstante deve sua existência. Absoluto do bem ou loucura do mal, vício ou virtude, danação ou salvação: este é o universo fechado no qual o perverso circula deleitosamente, fascinado pela idéia de poder libertar-se do tempo e da morte.
Se nenhuma perversão é pensável sem a instauração de interditos fundamentais - religiosos ou profanos - que governem as sociedades, nenhuma prática sexual humana é possível sem o suporte de uma retórica. E é efetivamente porque a perversão é desejável, como o crime, o incesto e o excesso, que foi preciso designá-la não apenas como uma transgressão ou anomalia, mas também como um discurso noturno em que sempre se enunciaria, no ódio de si e na fascinação pela morte, a grande maldição do gozo ilimitado. Por esta razão - e é Freud o primeiro a avaliar seu lcance teórico -, ela está presente, decerto em diversos graus, em todas as formas de sexualidade humana.
A perversão, portanto, é um fenômeno sexual, político, psíquico, trans-histórico, estrutural, presente em todas as sociedades humanas. E se todas as culturas partilham atitudes coerentes - proibição do incesto, delimitação da loucura, designação do monstruoso ou do anormal -, a perversão naturalmente tem seu lugar nessa combinatória. Porém, pelo seu status psíquico, que remete à essência de uma clivagem, ela é igualmente uma necessidade social. Ao mesmo tempo em que preserva a norma, assegura à espécie humana a subsistência de seus prazeres e transgressões. Que faríamos sem Sade, Mishima, Jean Genet, Pasolini, Hitchcock e muitos outros, que nos deram as obras mais refinadas possíveis? Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios - isto é, perversos - aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?
Sejam sublimes que se voltam para a arte, a criação ou a mística, sejam abjetos quando se entregam às suas pulsões assassinas, os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos.
(In: A parte obscura de nós mesmos - uma história dos perversos. Elisabeth Roudinesco. Rio de Janeiro, Zahar, 2008. p.10-13).
Vejam a entrevista de Elisabeth Roudinesco no programa Saia Justa, da GNT, sobre o livro:
Entrevista de Elisabeth Roudinesco na Tv UOL: