O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.
O que é assim dado ao Outro preencher, e que é propriamente o que ele não tem, pois é propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama amor, mas também o ódio e a ignorância.
É também isso, paixões do ser, o que toda demanda evoca para-além da necessidade que nela se articula, e é disso mesmo que o sujeito fica mais propriamente privado quanto mais a necessidade articulada na demanda é satisfeita.
Mais ainda, a satisfação da necessidade só aparece aí como o engodo em que a demanda de amor é esmagada, remetendo o sujeito ao sono em que ele frequenta os limbos do ser, deixando que este fale nele. Pois o ser da linguagem é o não ser dos objetos, e o fato de o desejo ter sido descoberto por Freud, em seu lugar no sonho, desde sempre o escândalo de todos os esforços do pensamento de se situar na realidade, basta para nos instruir.
Ser ou não ser, dormir, sonhar, talvez, os pretensos sonhos mais simples da criança ("simples" como a situação analítica, sem dúvida) mostram, simplesmente, objetos miraculosos ou interditos.
Mas a criança nem sempre adormece assim no seio do ser, sobretudo quando o Outro, que também tem suas idéias sobre as necessidades dela, se intromete nisso e, no lugar daquilo que ele não tem, empanturra-a com a papinha sufocante daquilo que ele tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor.
É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental).
(...)
Com efeito, um dos princípios decorrentes dessas premissas é que:
- se o desejo efetivamente está no sujeito pela condição, que lhe é imposta pela existência do discurso, de que ele faça sua necessidade passar pelos desfilamentos do significante; e
-se, por outro lado, como demos a entender anteriormente, abrindo a dialética da transferência, é preciso fundar a noção do Outro com maiúscula como sendo o lugar de manifestação da fala (a outra cena, eine andere Schauplatz, de que fala Freud na Traumdeutung).
- deve-se afirmar que, obra de um animal presa da linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro.
Cenas do filme Hamlet, anos 40 |
(...) O desejo se produz no para-além da demanda, na medida em que, ao articuclar a vida do sujeito com suas condições, ela desbasta ali a necessidade, mas também ele se cava em seu para-aquém, visto que, como demanda incondicional da presença e da ausência, ela evoca a falta-a-ser sob as três figuras do nada que constitui a base da demanda de amor, do ódio que vem negar o ser do outro e do indizível daquilo que é ignorado em seu pleito.
(A direção o tratamento e os princípios de seu poder.In; Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1966]. p.633-5).